O universo da perfumaria está dando adeus ao termo “oriental”

Shalimar, Opium e Poison são alguns dos mais famosos exemplares de uma família olfativa que vive ampla revisão de nomenclatura.


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Por meio da história da perfumaria é possível espiar um pouco da história da humanidade: descobrir as diferentes formas pelas quais nossos antepassados se relacionavam com crenças, beleza e prazer, observar avanços tecnológicos que mudaram a relação do ser humano com a natureza, além de captar e admirar saberes ancestrais variados. Porém, em paralelo a todo o encanto, o perfume também foi uma testemunha de duras dinâmicas de poder ao longo dos anos, das quais faz parte a exploração de recursos em territórios asiáticos pela colonização europeia.

Recentemente, um debate na perfumaria vem ganhando força ao sublinhar que ainda há estilhaços dessas dinâmicas presentes no setor e que chegou a hora de aposentar a palavra Oriental, tradicionalmente usada para nomear uma família olfativa, de seu vocabulário.

Em 2021, algumas das principais instituições e vozes de língua inglesa na indústria anunciaram que deixariam de usar o termo para descrever fragrâncias. Nos Estados Unidos, a The Fragrance Foundation foi uma das primeiras a dizer que removeria a expressão por considerá-la “ultrapassada e ofensiva”. Ela foi acompanhada pela British Society of Perfumers, que, em agosto, publicou uma nota sobre a veia eurocêntrica e o potencial depreciativo da palavra.

Esse é um reflexo de décadas de discussões, dentro e fora do mundo dos perfumes, que deixa evidente a inadequação de um termo criado para reforçar a Europa como centro do mundo, uma única expressão que, quando usada, homogeiniza 60% da população global e coloca sobre ela uma carga de exotificação. “O termo ‘oriental’ em si é uma construção ocidental. Foi pensado como um contraponto ao Ocidente, uma forma de defini-lo através da comparação com as sociedades ao leste da Europa”, aponta Daniela Mazur, doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense, e pesquisadora focada em estudos asiáticos e Hallyu.

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Os críticos ao termo também alegam que ele tampouco é muito preciso ou útil para classificar perfumes e sugerem uma substituição completa. Mas, apesar das recomendações dos últimos dois anos, não é preciso ir longe para encontrar grandes marcas e varejistas que seguem utilizando Oriental em suas comunicações (e ainda adicionando a ele adjetivos como exótico, sensual e misterioso). É que apesar de parecer simples, a questão da categorização de famílias olfativas envolve imagens provocadas por cheiros que muitas vezes se ligam a preconceitos enraizados. A seguir, vamos abrir algumas das camadas que existem nessa conversa.

Reinventando a roda

Ao pesquisarmos sobre classificação de fragrâncias é comum nos depararmos com a imagem de uma roda com quatro palavras principais abraçando 12 outros termos. É a Fragrance Wheel, de Michael Edwards. Historiador e taxonomista, ele é o fundador do Fragrances of the World, um guia gigante e independente de classificação de perfumes. Sua roda, nascida em 1992, organiza mais de 15 mil fragrâncias em famílias e subfamílias de forma a destacar suas interconexões, ajudando assim o mercado a se comunicar com mais facilidade com consumidores – atualmente, é bem fácil consultar essa base de dados online, checar em qual lugar se encontra o seu perfume preferido e ainda descobrir similares.

A roda, que até dois anos atrás contava com a palavra Oriental dentre suas quatro principais categorias, não recebia uma alteração desde 1998. Por isso, quando em junho de 2021 Edwards publicou um comunicado avisando que trocaria Oriental por Âmbar, houve um grande burburinho na indústria. Com a mudança, as subfamílias que antes eram conhecidas como Floral Oriental, Soft Oriental e Woody Oriental viraram Floral Amber, Soft Amber e Woody Amber.

perfumaria oriental-ambarado

À esquerda, a Fragrance Wheel de 2016, que ainda contava com o termo. À direita, a Fragrance Wheel sem o termo, reformada em 2021. Foto: Divulgação

Para o especialista em perfumes e consultor Dênis Pagani, criador do site 1nariz, essa foi uma boa substituição. “A gente considera que o osso da família dos orientais é um acorde ambarado, que é o acorde dessa resina chamada lábdano mais a baunilha”, descreve ele. Essa resina vem de um arbusto do Mediterrâneo e tem um cheiro parecido com mel, própolis, meio defumado, quente e caramelado, capaz de dar um caráter doce e envolvente a um perfume. “E é uma retomada, na verdade. Havia casas de fragrâncias que nunca usaram oriental e por muito tempo se falou em perfumes ambarados. Eu não vejo problema e acho que é mais descritivo olfativamente.”

Os acordes olfativos funcionam como na música. São combinações de duas ou mais notas que podem ser compostas por óleos essenciais e também matérias-primas sintéticas. Âmbar, na perfumaria, é um acorde (como dito acima, composto por lábdano e baunilha), e é preciso ter cuidado para não confundi-lo com a pedra âmbar (resina vegetal fossilizada sem valor aromático) e com ambergris/âmbar-cinza (secreção estomacal de baleias cachalote, material historicamente precioso na perfumaria, de cheiro mais marinho e salgado).

Apesar do extenso e influente trabalho de profissionais como Michael Edwards, não dá para afirmar que existe, de fato, uma classificação oficial de perfumes, representada por um órgão legal da indústria ou algo do tipo. “Ela é feita de nariz”, aponta Dênis desmistificando que ela parta da quantidade de matéria-prima utilizada em uma fórmula. “O que quero dizer é que ela está aberta a julgamentos e, nesse julgamento, pode haver discordância.”

Isso não significa que encontramos por aí florais sendo classificados como amadeirados, mas sim que é comum vermos fábricas, marcas, varejistas e especialistas escolhendo suas próprias palavras para falar de perfumes de formas mais descritivas, que vão além dessas divisões. Uma certa subjetividade linguística que o crítico Brian McCubbin defende ser bem-vinda neste texto e atesta que estará sempre presente na área.

No meio disso tudo, uma das principais reflexões sendo feitas hoje é sobre a divergência do nome da família dos orientais, assim como as dos chipres e fougères, em comparação a todas as outras, que falam mais diretamente de matérias-primas, como extratos florais, cítricos e herbais. Entender por que isso aconteceu pode nos ajudar a compreender o presente e traçar o futuro desse debate.

Os primeiros de suas famílias

“Entre as famílias olfativas, temos três que são consideradas acordes clássicos. Elas aparecem em torno do fim do século 19, que é quando a química orgânica se desenvolve e nasce a perfumaria moderna”, relembra Dênis sobre o momento em que o setor começou a se descolar das limitações do natural e partir para uma “aventura mais própria”. 

As famílias a que se refere o especialista são, exatamente, a dos Fougère, dos Chipres e dos Orientais. “O início dessas três famílias são acordes que foram se transformando ao longo do tempo de acordo com o gosto local e com a disponibilidade de matéria-prima”, acrescenta ele. Cada uma dessas famílias teve como pontapé inicial um perfume específico nascido na França: “Fougère Royale“, lançado por Paul Parquet em 1882 na Houbigant, “Chypre de Coty“, de 1917, e “Emeraude“, de 1921. Os últimos, obras de François Coty.

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Apesar do Shalimar da Guerlain ter levado o crédito, Dênis conta que o Emeraude é considerado o primeiro perfume Oriental. “O que acontece é que o [Pierre-François-Pascal] Guerlain parte dos acordes, refina, coloca o seu estilo e faz com que a Guerlain seja mais bem-sucedida em venda de fragrâncias do que a Coty”. Rumores dão conta, inclusive, que o Shalimar nasce como uma tentativa da Guerlain de recriar o Emeraude porque a esposa de Pierre era muito fã dessa fragrância.

Anúncio de 1924 do Emeraude, da Coty _ Public domain, via Wikimedia Commons

Anúncio de 1924 do Emeraude, da Coty. Foto: Domínio público via Wikimedia Commons

Na época, a indústria dos perfumes era importante, mas não excepcional, e Coty enxergava que havia muito espaço para crescimento. Ele acreditava que os frascos deveriam ser mais interessantes a fim de transmitir a potência do líquido que carregavam (daí sua parceria com o vitralista René Lalique), que os preços poderiam ser mais atrativos e que as fórmulas se beneficiaram de mais complexidade, indo além das flores, e incorporando ingredientes sintéticos para levar o perfume às massas.

Coty seduzia a sociedade francesa embalando suas criações com histórias encantadoras, muitas vezes ligadas a contos de países distantes da França. Para o Emeraude, ele se inspirou em uma lenda persa sobre o poder de felicidade divina proveniente das esmeraldas. Indo na mesma onda, a Guerlain olhou para a mítica história de amor entre Shah Jahan, imperador mogol da Índia, e sua esposa Mumtaz Mahal, para desenvolver o Shalimar.

“Se colocar os dois lado a lado é possível ver as semelhanças, é muito claro como as coisas se cruzam”, sublinha Dênis sobre os dois produtos. “De fato, eles estão se inspirando nesse mundo que, para um homem de 1920, é misterioso, cheio de lendas, muito erotizado, e de onde vêm as especiarias. Faltava informação nessa época, existia muito mais espaço para a criação de mitos. Ou seja, prato cheio para a cabeça de um perfumista”.

3 Shalimar chegou a ser comercializado como N°90 nos anos 1920 até que uma disputa legal sobre o nome fosse resolvida _ Reprodução

Shalimar chegou a ser comercializado como N°90 nos anos 1920 até que uma disputa legal sobre o nome fosse resolvida. Foto: Reprodução

Levando isso tudo em consideração, podemos fazer a pergunta: se o que conhecemos como “fragrâncias orientais” está vindo de um acorde clássico relacionado a um ou dois perfumes específicos (assim como acontece com os Chipres e Fougères), será que temos como nos assegurar ao que estamos nos referindo? É o que indaga Clèmente Paradis, editor da publicação olfativa Nez e professor da Sorbonne Nouvelle, neste texto: “Quem realmente se lembra dos acordes originais? Quantos de nós, mesmo entre os perfumistas, experimentaram o Chypre original ou o Fougère Royale original para verificar se uma classificação está correta? É provável que hoje vivamos muito mais com a ideia desses perfumes, de seu lugar no cenário olfativo, do que com seus acordes fundadores.”

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Ou seja, dá para dizer que um perfume Fougère, Chipre ou Oriental se refere mais a uma metáfora que, dependendo de onde estamos, pode não significar muita coisa – a maioria dos brasileiros, por exemplo, não tem uma imagem clara de Chipre, uma ilha na região leste do Mediterrâneo, menos ainda de Fougère, palavra francesa para samambaia que, nesse caso, diz respeito ao cheiro do bosque úmido onde ela nasce – ou, no caso do Oriental, vir carregado de preconceitos

Pense no perfume Opium, de Yves Saint Laurent. Lançado para acompanhar a sua coleção de inverno 1977 inspirada na China, o nome escolhido causou revolta entre chineses-americanos, que demandaram uma retratação pública da marca pela insensibilidade à história do país. Afinal, ópio é uma uma substância que, no século 19 e graças à forte participação britânica, acabou destruindo muitas vidas. Na época, o estilista disse ao WWD que queria um perfume exuberante, pesado e lânguido, que evocasse “o Oriente sofisticado, a China imperial e seu exotismo”. Na mesma entrevista, ele declarou: “ainda hoje, tudo o que há de moderno na Europa na música, na cor, na arte, tem sido baseado no Orientalismo“.

Anúncio de 1977 do Opium, da Yves Saint Laurent, estrelado por Jerry Hall e fotografado por Helmut Newton_ Reprodução

Anúncio de 1977 do Opium, da Yves Saint Laurent, estrelado por Jerry Hall e fotografado por Helmut Newton. Foto: Reprodução

No comunicado da Fragrances of the World, eles anunciam que um dos motivos que os impulsionaram a eliminar a palavra é que a “sensualidade e fantasia” evocada pela forma como o “Oriente” costumava ser retratado não ressoa com as novas gerações, que estão em contato com uma imagem completamente diferente de cidades asiáticas globais como Xangai, Tóquio e Seul. Mas, como sabemos, há muito mais envolvido aqui.

Oriental para quem?

As criações de Coty e Guerlain estavam embaladas por um movimento artístico das elites na Bélle Époque que buscava inspiração na estética de países distantes da França de onde, por causa das rotas de exploração, vinham muitas especiarias, tecidos e objetos de decoração. Eram pinturas, peças de teatro, esculturas que retratavam cenas imaginadas, idealizadas mas extremamente planificadas de uma “outra” sociedade. Apesar de tais obras ressaltarem beleza e opulência, elas acabavam reforçando o lugar de poder do Ocidente, ajudando a justificar as explorações e a opressão imperialista sobre esses territórios já que eles eram também representados de forma bárbara, menos civilizada e estática. “Nesse momento, o Orientalismo era um dos últimos vestígios de um Romantismo que parecia não querer acabar, com seus clichês, fantasias, seu desapego da história material do mundo e sua vaguidão na qual Índia, Turquia e China se misturavam indistintamente”, escreve Clèmente em “Perfumery disoriented, part 2: Orientalism & colonial aesthetics“.

“Oriente e Ocidente são conceitos que abarcam duas grandes abordagens: uma geográfica e outra de poder”, aponta Daniela Mazur. “O mundo dividido através de questões geográficas baseadas no Meridiano de Greenwich não dá conta das complexidades políticas e históricas que travam os jogos globais de poder há séculos”, acrescenta ela.

Uma das mais importantes publicações que trata desse tema é Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, lançada em 1978 pelo palestino-estadunidense Edward Said. Como explica Daniela, Said nomeia como Orientalismo o processo ideológico e de dominação que aplicou estereótipos, exotismos e preconceitos culturais e raciais contra sociedades ao leste da Europa. “O Ocidente seria o ‘nós’ e o Oriente seria o ‘eles’, em um processo a favor de generalizar e estereotipar esses povos como ‘forasteiros’, ‘misteriosos’, ‘bárbaros’ e até mesmo ‘perigosos’, considerados como ‘atrasados’ frente ao levante da construção de um ideal de modernidade europeia”, destaca ela.

Mudar a nomenclatura de uma família olfativa, é bom ressaltar, é só uma parte da discussão e ela não é suficiente para lidar com problemas sérios de exploração nas cadeias de produção que acometem trabalhadores de países que até hoje sofrem as consequências do colonialismo. O mercado global dos perfumes ainda é bastante moldado pelas antigas rotas de especiarias e há muito a ser feito para fazer jus ao passado e ao trabalho presente de quem se dedica ao cultivo e coleta de matérias-primas.

Um fim às generalizações

Mesmo hoje, quando lemos as descrições de fragrâncias classificadas como orientais, não é difícil encontrarmos palavras como misterioso, sensual e exótico junto a elas. A última, que significa “não-comum”, além de carregar uma carga negativa, é a que parece mais incompatível com um mundo globalizado. Faz sentido que um perfume de uma maison francesa feito com especiarias cultivadas em países asiáticos ganhe incomum como descrição uma vez que ele também será vendido na Ásia?

Dênis resume que não há nomenclatura perfeita e sugere aproveitarmos o momento de revisão para olharmos outras famílias, como a dos Aromáticos (na Fragrance Wheel de Edwards ela equivale aos Chipre), uma palavra bastante genérica para falar de perfumes. “O que ajuda mesmo, o melhor substituto à experiência real, é um bom texto, uma boa fala. Na dúvida, o que fica mais claro é uma descrição mais sensorial, imagética, que te aproxima daquilo”, reflete ele.

Essa ideia tem a ver com que Daniela diz sobre as possíveis substituições de Oriental no uso geral. A fim de responder a problemas difíceis com respostas simples, “asiático” tem surgido como uma opção de substituição inquestionável. Apesar de ser um termo melhor que Oriental, já que está relacionado a uma questão geográfica continental e não agrega diretamente os problemas do Orientalismo, ele continua sendo generalista para descrever “a pluralidade de indivíduos e culturas que formam esse imenso espaço delimitado enquanto Ásia”.

“Por que não usarmos termos que dêem conta de suas especificidades e reais características, respeitando suas sociedades e culturas, em um processo essencial de afastamento de generalizações e estereótipos?”, incentiva ela.

É preciso sensibilidade e proatividade para se desfazer de expressões enraizadas, e apenas o tempo dirá se as mudanças que estão sendo propostas serão adotadas. Mas há exemplos a serem seguidos. Michael Edwards está impulsionando um movimento na perfumaria. Aqui no Brasil, o manual de redação do jornal Folha de São Paulo desde 1998 apresenta um direcionamento de onde talvez possamos tirar algo. No verbete, ele traz: “Oriental – Não use para pessoa ou coisa quando uma qualificação mais exata for cabível: chinês, vietnamita, malaio etc. Veja preconceito.” O que faltou dizer, no entanto, é que a não ser que estejamos tratando de imperialismo, uma qualificação mais exata é sempre cabível.

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