Foxy eyes: um convite para o diálogo

Cultura da beleza, autoestima e racialidade estão em pauta quando falamos dos tais "olhos de raposa".


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Ilustração: Gustavo Balducci



“Ainda estamos falando sobre essa polêmica?”, talvez você esteja se perguntando. Confesso que nem eu escapei do cansaço frente à questão dos tais “foxy eyes” quando o assunto se tornou trending topic – seja para quem compartilhava um novo tutorial de beleza, seja para classificar a tal prática como racista. Fato é que nenhum assunto ganha tamanha proporção na esfera digital se não toca em debates importantes. No entanto, a coisa complica quando os espaços para debater questões complexas precisam ter 240 caracteres. O imediatismo das redes sociais nos obriga a reagir de forma instantânea para criar relevância, mesmo que tudo seja aterrado em algumas semanas pela mesma timeline. E o quanto isso nos aliena das questões importantes que precisamos fazer como sociedade? Então, agora que os ânimos estão menos aflorados, que tal aproveitarmos a oportunidade para irmos um pouco além da superfície controversa dos “olhos de raposa”?

Este não é um texto lacração, mas um convite à empatia e à solidariedade feminina. No limite, as construções hegemônicas do belo estão profundamente ligadas com a história do patriarcado colonial e isso afeta todas as mulheres – em diferentes formas, mas com os mesmos fins.

Afinal, o que são esses “olhos de raposa”?

Primeiramente, podemos reconhecê-los como uma tendência de beleza. O objetivo é o “alongamento dos olhos” que, dessa forma, resultam em uma aparência dita sensual, misteriosa, “exótica”… Para chegar nesse efeito, existem dois caminhos possíveis: o da maquiagem e o da cirurgia. Em certa medida, a prática dialoga com a do contorno, que igualmente se propõe a modificar o rosto com uma combinação de cosméticos para produzir uma ilusão de ótica com efeito efeito de luz e sombra. No caso dos “foxy eyes”, há uma maneira específica de aplicar sombras e um delineado para alcançar esse resultado. Tem até quem raspe o final da sobrancelha ou grude adesivos no rosto para, literalmente, “puxar os olhos para cima”. Na busca pela versão “permanente” da tendência, aposta-se na intervenção não cirúrgica (com a colocação de fios de sustentação PDO e botox) ou na operação, de fato, cirúrgica (blefarosplastia). Desde o ínicio deste ano, a primeira tornou-se febre. Ainda mais quando celebridades como Kylie e Kendall Jenner, Kim Kardashian, Ariana Grande e Bella Hadid se tornaram as principais referências dos “olhos de raposa”.

Em paralelo, evidentemente, crescia o desconforto de pessoas amarelas em relação à tendência por causa da grande semelhança da técnica com as práticas de yellowface. E é aí que a discussão sobre apropriação cultural, discriminação racial e autoestima vem à tona. O assunto foi gatilho para o compartilhamento de diversos relatos sobre trauma, violência de gênero e preconceito vivido por pessoas asiáticas que manifestaram sua revolta e frustração nas redes sociais.

Caminhando pela história

O “Código Hays” foi um conjunto de normas aplicado aos filmes lançados nos Estados Unidos entre 1930 e 1968, que proibia a representação ou a apologia à miscigenação, revelando assim a segregação racial pulsante do país no período da Era de Ouro – racista – de Hollywood. Em contrapartida, com a ajuda de uma nova onda do Orientalismo na sétima arte, o interesse por enredos asiáticos no cinema se fez presente. Assim, para contornar as restrições morais, e como uma estratégia para atrair público, atores brancos renomados foram escalados para personificar personagens amarelos. Na caracterização, a fita adesiva entrava em cena para dar olhos “orientais” a tais atores que, ainda por cima, usavam próteses, maquiagens e figurinos estereotipados, e imitavam trejeitos culturais. O resultado são figuras de olhos puxados, dentes pronunciados e hábitos pouco convencionais: assim nasceu o yellowface.

Ao mesmo tempo, o mundo estava sendo atravessado por guerras mundiais, especialmente por aquelas que resultaram no mito do “perigo amarelo” como política discriminatória. No artigo “A blefaroplastia enquanto domesticação dos asiáticos”, publicado em 2018, a pesquisadora coreana-americana Angela Kim mistura dados históricos e relato pessoal, pois ela mesma, quando jovem, realizou a cirurgia que, até hoje, é chamada de “ocidentalização”.

No texto, a autora vai na raiz histórica desse tipo de procedimento na Coreia. Sua caminhada, nesse sentido, remonta os períodos de invasão americana no país com a Guerra Esquecida (1950-1953), sendo parte do projeto de dominação daquela território “neutralizar” a marca racial mais definidora de identidade: os olhos. Assim, médicos militares realizaram o procedimento da blefaroplastia em coreanos vendendo a cirurgia como um “ticket” para o sonho americano, enraizando um costume que, infelizmente, procede até os dias atuais. Em 2014, a Coreia do Sul foi o país que mais realizou cirurgias per capita no mundo. Fora isso, existe um mercado fortíssimo em toda a Ásia voltado a produtos de clareamento. Ou seja, a vontade de branqueamento (um fenômeno criado pela colonização) é um gosto amargo experienciado pela maioria das pessoas racializadas.

No caso dos “foxy eyes”, mesmo que a tendência não seja aplicada com a intenção de discriminar, a comemoração dos olhos alongados produzidos a partir de técnicas de yellowface remonta traumas do passado e, principalmente, dialoga com violências do presente: foram recorrentes, por exemplo, os relatos de meninas e mulheres amarelas que, desde muito jovens, foram empurradas à blefaroplastia no intuito de “corrigir seus olhos, deixando-os mais abertos”. Ainda por cima, é importante ressaltar que os “foxy eyes” mimetizam o ato de “puxar os olhos” como injúria racial. Tornar um fenótipo tendência acaba sendo um tapa na cara de toda pessoa que sofreu preconceito a ponto de querer negar seus próprios traços… De quebra, torna a racialidade um produto sazonal que hoje é moderno e amanhã será descartado.

Assim, mesmo que o k-pop seja um fenômeno global e o impacto da k-beauty tenha mudado o nosso consumo de cosméticos, há semelhanças entre o momento que vivemos hoje e o período das grandes guerras: ao mesmo tempo em que estamos no auge dessa cultura Hallyu, o sentimento anti-asiático com a nomeação de “vírus chinês” foi reforçado de uma forma já tão cotidiana devido à pandemia da Covid-19, que, mais uma vez, personifica-se esse “inimigo invisível” com uma face amarela.

Mesmo que seja um progresso o fato de etnias, raças ou culturas diversas estarem mais presentes no cinema, música e publicidade, precisamos nos perguntar se isso está, de fato, humanizando essas identidades e, principalmente, permitindo que elas descolonizem as ideias que têm sobre si mesmas, criando valorização, pertencimento e autonomia.

 

Diversidade para quem?

É interessante observar como a cultura pop ao nosso redor está cada vez mais multirracial. Isso é consequência da consciência social que, com o auxílio das redes sociais, trouxe questionamentos e demandas por maior representatividade de raças, corpos e gêneros. Na internet, são possíveis trocas culturais profundas que continuam moldando nosso comportamento. Desde os anos 2000, no entanto, a “beleza étnica” virou uma tendência. E, apesar da importância em ampliarmos nossos repertórios sobre o que pode ser considerado belo, temos um problema quando raça e etnia são tratados como artigos decorativos. Ou pior, quando renova-se outro padrão de opressão – principalmente para mulheres racializadas.

Quando Kim Kardashian “quebrou a internet” com seu corpo curvilíneo e traços armênios, ensaiou-se uma transformação na maneira como pensamos beleza, em comparação ao padrão anterior de mulheres brancas e extremamente magras. Contudo, rapidamente, outras camadas desse discurso foram reveladas: elas vão desde a apropriação cultural da estética negra até a realização de procedimentos estéticos como forma de “suavizar sua aparência étnica”.

Tanto Kim Kardashian quanto Bella Hadid são asiáticas. Constantemente, as duas comemoram sua ancestralidade e ainda são vozes importantes no combate a políticas anti-migratórias, na conscientização sobre refúgio, islamofobia e o direito à cidadania. Aliás, é urgente pontuar como houve um apagamento frequente das mulheres marrons em toda essa discussão sobre “foxy eyes”, quando, na verdade, elas também são centrais à questão: seja por causa da descendência armênia e palestina de suas principais referências, ou mesmo pela questão de apropriação cultural da pintura nos olhos feita por etnias do Oriente Médio, Sul Asiático e Norte da África.

Vale lembrar, por sinal, como ambas são comemoradas por serem birraciais. E esse padrão de “étnica, mas ainda ocidental” revela que quando a etnicidade não for diluída em padrões eurocêntricos, talvez, ela não seja considerada bela o suficiente. Ou seja, o que a princípio era uma chance de libertação e de comemoração à diversidade torna-se, então, opressão. Uma assimilação 2.0 para uma nova geração que, ainda por cima, pode testar suas “versões melhoradas” com a ajuda de filtros do Instagram.

 

O mito da beleza em tempos de pandemia

Outra camada intrigante dessa discussão é: como uma pandemia influencia a maneira que enxergamos a beleza? Os “foxy eyes”, enquanto técnica, existem já há um bom tempo. Curiosamente, o seu boom veio em sincronia com o “novo normal”.

Para além de pensar os desafios da indústria de cosméticos, meu convite é para refletirmos sobre como esse trauma coletivo, que evidencia nossa vulnerabilidade, e pode provocar um efeito rebote na busca por imortalidade. O quanto o entendimento e a aceitação de nossa própria finitude pode produzir um backlash na busca por juventude desenfreada? Porque, vamos ser sinceras, a maioria das pessoas adeptas aos “foxy eyes” não está em busca de “olhos asiáticos”, apenas; mas é um público atraído em particular pelo efeito lifting, ou seja, rejuvenescimento facial instantâneo e (quando make) não cirúrgico. Em tempos nos quais mulheres de 30 anos se sentem envelhecidas, o culto ao “forever young” nunca foi tão popular. Ainda mais quando a iminência do fim torna-se uma assustadora presença cotidiana. Esse “efeito Lolita” (no qual mulheres são infantilizadas e meninas hiperssexualizadas) está enraizado em nossa cultura machista. Por isso, vale relembrar um trecho do livro O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contras as mulheres, publicado em 1991, pela escritora feminista e jornalista Naomi Wolf:

“O envelhecimento na mulher é ‘feio’ porque as mulheres adquirem poder com o passar do tempo e porque os elos entre as gerações de mulheres devem sempre ser rompidos. As mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas, e o mito da beleza mutila o curso da vida de todas”, Naomi Wolf

Segundo Wolf, encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres. E, como vimos anteriormente, não se trata de qualquer beleza. Assim, somos tomadas pelo contínuo sentimento de insuficiência, quando os padrões para sermos considerada bonitas são ora inalcançáveis (como voltar no tempo), ora contraditórios (como ser “étnica, mas nem tanto”). Nossos corpos se tornam produtos consumidos de forma acumulativa, e continuamos reféns de um “lugar de mulher” que não apenas tem classe, mas também raça.

 

Solidariedade feminina

Apesar de toda essa discussão sobre os “foxy eyes” não ser exatamente confortável, partindo de uma perspectiva social, podemos considerar esta uma mobilização superprodutiva. Ela engrossa o caldo das discussões sobre raça, gênero e identidade no Brasil e no mundo. Mas também percebo como a polêmica só ganhou essa dimensão por causa das tretas em várias redes sociais.

A real é que a competição feminina nunca esteve tão em alta nesses tempos de “fada sensata sem defeitos”. E para contornar essa armadilha, é preciso que consigamos coletivamente transformar culpa em autocrítica. A união entre mulheres não pode ser apenas um tema publicitário que logo desaparece no feed. Para que isso não aconteça, é preciso de diálogos que não sejam descartáveis ou efêmeros – ainda mais quando estamos em meio a uma pandemia e atravessadas pelas violências do “velho normal”.

 

Enfim, esse texto é um convite. Um convite ao diálogo e à empatia, para que caminhemos juntas na compreensão dessas variadas problemáticas envolvendo tendências e padrões de beleza. Por mais inocentes que esses temas possam aparentar, não raro, eles podem estar repercutindo opressões.

Quando localizamos as questões históricas e culturais que nos trouxeram até aqui, percebemos como somos semelhantemente atingidas por uma diversidade de opressões. Isso posto, talvez, os questionamentos finais sejam: Como as mulheres brancas podem apoiar mulheres racializadas a terem autonomia em suas próprias vozes, principalmente na busca por um senso de valorização? Como amarelas podem fomentar uma solidariedade asiática junto às marrons de forma que ambas sejam aliadas para negras e indígenas? Como todas nós podemos nos opor à cultura do rejuvenescimento, quando nossa espinha arrepia ao som do “tic-tac” no relógio? De fato, não iremos sempre concordar. Mas com escuta, generosidade e respeito, podemos encontrar um terreno comum. As transformações que desejamos levarão alguns anos, por isso desejo que não tenhamos medo de envelhecer juntas e dialogar, pois essas pautas transformadoras vão nos acompanhar para além do feed ou da timeline. O pessoal é político, mas a mudança não será individual.

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