Em livro, Quentin Tarantino escreve sobre “Bambi”, “Taxi driver” e Almodóvar
Diretor mistura teoria, reflexões, experiências pessoais e crítica de filmes em "Especulações cinematográficas".
Quentin Tarantino sempre professou o seu amor à sétima arte das mais variadas maneiras: ator, diretor, roteirista, produtor e crítico. Mas não só. Na juventude, trabalhou em uma videolocadora e, já famoso, comprou salas de exibição históricas em Los Angeles por ligação afetiva ou para salvá-las da falência.
No ano em que completou seis décadas de vida – ele nasceu no Tenessee, Estados Unidos, em março de 1963 –, Tarantino ampliou essa lista com a publicação do seu primeiro livro de não-ficção cujo tema, claro, não poderia ser outro: Especulações cinematográficas.
Na publicação de 400 páginas, recém-lançada no Brasil pela Editora Intrínseca (R$ 89,90), Tarantino aborda teoria do cinema, reflexões, experiências pessoais e crítica de filmes. Tudo misturado em uma narrativa ágil e simples, marcas do diretor de longas como Cães de aluguel (1991), Kill Bill: Vol. 1 (2003) e Bastardos inglórios (2009).
O livro é a concretização de um desejo antigo do autor em escrever sobre um tema que domina e é apaixonado desde criança. Apesar de resgatar muitas experiências pessoais e ligá-las ao assunto ou película abordada, não se trata, em nenhum momento, de uma autobiografia. É um livro sobre cinema escrito por uma pessoa que entende e conhece o assunto como poucos. Com a bagagem adicional de décadas transitando pelos meandros de Hollywood e a conquista de duas estatuetas do Oscar por melhor roteiro original: Pulp fiction (1994) e Django livre (2012).
Os primeiros filmes que Tarantino assistiu
Em 2021, o cineasta causou polêmica ao afirmar que não ajudava financeiramente a mãe, Connie Zastoupil, por causa de rusgas ocorridas na infância. Connie, como toda mãe zelosa, ficava brava ao ver o filho se dedicar mais a roteiros imaginários do que aos estudos. Mas foi justamente pelas mãos de Connie que Tarantino entrou pela primeira vez no cinema, aos 7 anos, para assistir a um filme. E não era propriamente um filme direcionado a crianças, e sim uma sessão dupla com Joe: Das drogas à morte (1970), de John G. Avildsen; e Como livrar-me de mamãe (1970), de Carl Reiner.
“Embora tenha sido uma sessão memorável, uma vez que estou escrevendo sobre ela agora, para mim, na época, não passou nem perto de ser um choque cultural”, diz o autor, nos trechos iniciais do livro. Não parou por aí. Com menos de 10 anos, o pequeno Quentin, com frequência, era levado pela mãe e pelo padrasto, Curt Zastoupil, para assistir a outros clássicos da época, como O poderoso chefão (1972), M.A.S.H. (1970), Aeroporto (1970), Perseguidor implacável (1971). Nada apropriado para crianças. Mas, dizia Connie, era preferível levar o filho ao cinema do que colocá-lo para assistir a noticiários da televisão, na sua visão muito mais nocivos à mente do filho do que os filmões.
“Bambi se perdendo da mãe, ela levando um tiro do caçador, e aquele incêndio tenebroso na floresta mexeram comigo mais do que qualquer outra coisa que eu tivesse visto em um filme”
Houve algum filme daquela época, nos anos 70, que o jovem Quentin não soube lidar? Sim: Bambi. “Bambi se perdendo da mãe, ela levando um tiro do caçador, e aquele incêndio tenebroso na floresta mexeram comigo mais do que qualquer outra coisa que eu tivesse visto em um filme”, relata no livro. “Só em 1974, quando assisti a Aniversário macabro (1972), de Wes Craven, alguma coisa chegou perto daquela experiência”, completa.
Taxi driver
No texto, que às vezes flui de maneira um pouco caótica e com direito a palavrões nas partes em que demonstra indignação com o assunto, o autor discorre sobre a história e os bastidores de grandes produções das décadas de 70 e 80, além de especular sobre possíveis rumos diferentes que determinados filmes tomariam caso fossem mantidos os roteiros e escalações originais.
É o caso de Taxi driver, dirigido por Martin Scorsese, em que levanta a temática do racismo à frente e por trás das câmeras. O personagem principal, o taxista Travis Bickle, antológica interpretação de Robert De Niro, emerge um racismo muito velado em suas atitudes, segundo Tarantino. O diretor também especula sobre a troca de atores negros por brancos na escalação de alguns personagens vilões, como o cafetão Sport, interpretado por Harvey Keitel, para evitar conflitos raciais na época em que o filme foi lançado, em 1976.
“Taxi driver é um filme sobre um racista ou um filme racista?”, indaga Tarantino. “A resposta, claro, é a primeira opção. E o que o torna uma audaciosa obra-prima é o fato de ousar fazer essa pergunta à plateia e ainda permitir que cada um chegue à própria resposta”, completa.
Em um dos capítulos mais interessantes, Tarantino aborda a sua relação com a crítica especializada e confessa respeitar, de fato, apenas aqueles que apontam problemas em suas obras. Outra passagem memorável é quando destaca a admiração e influência de Pedro Almodóvar em seu trabalho.
“Os filmes dos meus sonhos sempre incluíam uma reação cômica a alguma coisa desagradável. Algo parecido com a conexão que os filmes de Almodóvar fazem entre o desagradável e o sensual”
“Os filmes dos meus sonhos sempre incluíam uma reação cômica a alguma coisa desagradável. Algo parecido com a conexão que os filmes de Almodóvar fazem entre o desagradável e o sensual”, diz Tarantino, que também aponta a influência do diretor espanhol nas cenas de violência em seus filmes. “Sentado num cinema de arte em Beverly Hills, assistindo às imagens coloridamente vívidas e provocativamente empolgantes captadas em 35 mm e projetadas numa parede enorme — provando que era possível haver algo sexy na violência —, eu me convenci de que existia lugar para mim e meus devaneios violentos na cinemateca moderna.”
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