A normalidade está em xeque na beleza

Aos poucos, a indústria de cosméticos está abolindo termos pejorativos que corroboram para um padrão inatingível e cheio de consequências negativas para a nossa saúde mental.





Em seu livro De Perto Ninguém é Normal, escrito há cerca de 20 anos, a antropóloga Mirian Goldenberg já discutia os efeitos em torno do conceito de normalidade. Afinal, o que é ser normal? “Esse ideal só serve para criar sentimentos de inferioridade, de inadequação e fracasso. É a ideia de que se existe um modelo padrão que pode ser atingido, você é a principal responsável por não estar dentro dele”, explica a pesquisadora.

Os efeitos estão por toda parte. Uma pesquisa global publicada recentemente pela Unilever mostrou que 62% das pessoas se sentem mais positivas em relação à beleza quando não há a palavra “normal” nos xampus, condicionadores e hidratantes e 56% das pessoas se sentem excluídas. “Se algo é normal, todo o resto é anormal. Isso faz com que a gente não se sinta incluído”, coloca a ativista Alexandra Gurgel, fundadora do Movimento #CorpoLivre.

É fato: toda exclusão gera uma rejeição. “O que faz uma pessoa se sentir rejeitada é uma crença limitante que está presente na vida de todo mundo, em menor ou maior grau. Quando a crença é de rejeição ou exclusão, afeta diretamente a autoestima, a identidade, como a pessoa se vê e o que ela sabe sobre si”, explica a psicóloga Fabiana Fuchs.

“Existem diversas formas de falar a mesma coisa. Então podemos, sim, ser menos agressivos, mais livres e menos impositivos”, Alexandra Gurgel

Foi exatamente esse sentimento que levou a gigante Unilever a extinguir, de uma vez por todas, o termo “normal” do rótulo dos cosméticos, propagandas e qualquer peça de comunicação. “Como companhia, entendemos que padrões sociais e culturais são prejudiciais aos indivíduos, causando danos à sociedade. Não são raras as situações em que a nossa indústria e muitas outras reforçam esses padrões. Por isso, estamos abraçando uma nova era de beleza, mais equitativa, inclusiva e sustentável. Não podemos manter padrões que discriminam, excluem e que criam ideais do que é considerado ‘bonito’ ou ‘normal'”, diz Juliana Carvalho, diretora da Unilever na categoria Hair.

O impacto social dessa medida é enorme. “Abolir essas perspectivas – mais até que apenas os termos propriamente – é considerar as diferenças e as múltiplas características que temos. É não buscar um padrão imaginário, mas ver as pessoas como, de fato, elas são e não como deveriam ser para atender um determinado perfil”, afirma Viviane Gonçalves Freitas, doutora em Ciência Política e coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).

Efeito manada

Uma atitude isolada é um começo, mas não o suficiente para acabarmos de vez com o problema. “O tamanho e influência da Unilever trazem a esperança de que outras marcas e a indústria como um todo faça o mesmo, portanto é um grande começo”, continua Alexandra. Mas ainda temos um longo caminho na luta contra os padrões e estereótipos de beleza.

A boa notícia é que essa não é a primeira medida significativa que vem sendo tomada pela indústria em prol da autoestima e quebra de padrões. Em 2019, o termo anti-aging (anti-idade) foi colocado em xeque e, aos poucos, as marcas passaram a substituí-lo por palavras mais amigáveis – afinal, é impossível impedir o avanço da idade e seria muito cruel esperarmos isso. Recentemente, ELLE mostrou em uma reportagem que as palavras “clareador” e “branqueador” também estavam sendo abolidas em todos os produtos de grandes marcas como L’Oréal, Unilever e Johnson & Johnson, uma vez que reforçam o conceito de pigmentocracia.

“Pensar que de perto ninguém é normal evita a comparação e faz com que a gente sofra um pouco menos, ajudando a nos libertar dessa prisão que existe por trás do conceito da normalidade”, Mirian Goldenberg

“Entendemos que o tema ‘diversidade e inclusão’, por toda sua amplitude social e riqueza, não pode estar restrito a uma área ou indústria. É algo maior, que precisa do envolvimento de todas e todos”, diz Juliana. Para ela, é inaceitável ignorar os números. De acordo com estudo da Unilever, 64% dos brasileiros concordam que a indústria da beleza faz com que algumas pessoas se sintam excluídas. Os principais motivos são: a edição de fotos e a pressão para comprar “produtos antienvelhecimento”. A maioria das pessoas concorda, ainda, que a indústria de beleza e cuidados pessoais tem um caminho a percorrer para representar diversos tipos de corpos (76%), diferentes faixas etárias (74%), diferentes etnias (73%) e pessoas da comunidade LGBTQIA+ (62%).

Desafio aceito

“É muito difícil para a indústria da beleza não focar na aparência e representar todo mundo sempre, mas é possível (e necessário) que a gente seja mais inclusivo, que tenhamos mais gentileza na comunicação e que a gente pense sempre em quem está ouvindo, o que cada termo pode causar às pessoas”, defende Alexandra. “Existem diversas formas de falar a mesma coisa. Então podemos, sim, ser menos agressivos, mais livres e menos impositivos”, completa.

“Do ponto de vista médico, entendemos como normal uma pele ou cabelo sem nenhum desequilíbrio fisiológico, como oleosidade demais ou de menos, ou, ao contrário, com excesso de ressecamento”, explica a dermatologista Denise Steiner, de São Paulo. De fato, a falta de equilíbrio nunca é benéfica em se tratando de saúde, mas é possível, sim, tratar do assunto com mais cuidado. “Falar em equilíbrio ou focar nos benefícios poderia ser uma solução”, opina Steiner. É exatamente isso que a Unilever se comprometeu a fazer. A partir de agora, os produtos focarão na proposta de cada produto (emoliência, nutrição, efeito mate, por exemplo) e não no tipo de pele/cabelo, visando não corroborar com esse sentimento de exclusão.

A retirada dos termos considerados pejorativos significa, portanto, um importante passo na liberdade corporal e no resgate de nossa autoestima. “Quando a gente tira palavras como ‘normal’, ‘branqueador ou clareador’, a gente não coloca como mérito um estereótipo, o tipo ou a cor de pele. Normalizar a pele seria padronizar. Tirar essas palavras significa, portanto, acabar com o padrão”, conclui Alexandra Gurgel. Ao abolirmos o termo normal, ninguém se sente anormal. Simples assim. “Pensar que de perto ninguém é normal evita a comparação e faz com que a gente sofra um pouco menos, ajudando a nos libertar dessa prisão que existe por trás do conceito da normalidade”, finaliza Mirian.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes