O que pensamos sobre maquiagens “para homens”?

Jogamos a pergunta no nosso grupo no Facebook e o debate rendeu. Agora, conversamos com Lorelay Fox e o pesquisador Fabio Mariano para ir mais a fundo na questão da make-up masculina.


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Foot: Divulgação Chanel



Recentemente, a
Chanel expandiu a sua linha dita “para homens” de maquiagem. A Boy de Chanel, que antes trabalhava com produtos mais básicos (base, corretivo, lápis de sobrancelha com pente e esfoliante labial), chegou com algumas novidades mais ousadas. Agora, a marca também oferece um lápis de olho e um esmalte de unhas, ambos em preto. De imediato, já surgiu o debate na minha cabeça: será que, em 2020, ainda precisamos separar a maquiagem entre feminina e masculina? Levei a questão para o ELLE, o grupo (o grupo oficial da ELLE no Facebook no qual estamos sempre trocando figurinhas com quem nos lê) e a conversa rendeu! Foram quase 60 comentários e é sempre impressionante ver a dedicação do membros do grupo em escrever opiniões fundamentadas e bem desenvolvidas. A respeito da iniciativa da Chanel, a galera ficou dividida…

Primeiramente, como bem lembrou Airton Júnior em um dos comentários, isso não é novidade no mercado de beleza de luxo. Em 2008, a Jean Paul Gaultier também tinha
uma linha completa supostamente designada para meninos. “Se tivessem contratado modelos masculinos para representar a linha de maquiagem regular da marca teria sido uma atitude bem mais legal”, sugeriu Julia Lemos a respeito da Chanel. Muita gente concordou com ela: “Não acho que maquiagem tenha que ser dividida por gênero e acho meio doido que alguns homens precisam desse selo ‘for men’ para se permitirem comprar produtos de beleza.”

Kelson Santos (que trabalha no marketing digital da ELLE) destacou, nesse sentido, o trabalho de uma nova safra de marcas norte-americanas que não se importam com o gênero de seus clientes. A
Milk Makeup e a Fluide Beauty são alguns exemplos. Em suas campanhas, meninos, meninas e menines quase sempre estão contemplados. “A KVD adotou uma estratégia parecida”, completou Isadora Almeida. “Em todas as campanhas da marca sempre têm pelo menos um menino.” Apesar de aplaudir a proposta da empresa vegana, ela também aponta para o fato de que, talvez, o homem cis-hétero – que passou a vida inteira ouvindo que usar maquiagem era algo que atacava direta e profundamente a sua integridade – não esteja preparado para fazer essa transição tão facilmente.

“Eu gosto muito do Maquiagem de Homem [canal no Youtube do influencer Fabiano Okabayashi]. Por mais que o conteúdo seja meio ‘machão’, ele mostra um universo muito amplo de maquiagem mesmo sem entrar em elementos marcantes como sombra, batom vermelho, etc. Acho que é importante que esses meninos consigam se sentir confortáveis nesse ambiente para que, posteriormente, consigam, sei lá, usar um delineador colorido”, almeja Isadora. Aliás, o próprio Okabayashi tem se permitido ousadias como essa. Em sua nova foto de perfil no Instagram, ele está usando exatamente um traço neon em uma de suas pálpebras. Na legenda da postagem, o youtuber faz o convite: “Você pode usar isso quando e como quiser! Seja feliz!”

Em seu comentário, o também repórter da ELLE Gabriel Monteiro faz uma análise interessante: “Talvez não precisasse dividir por gênero e sim por necessidade. Acho que, no limite, essa é uma linha de maquiagem básica. Que pode ser usada tanto por meninas quanto por meninos. Quando saiu o primeiro drop, eu fiquei bastante tentado em comprar, parecia o conjunto ideal: reduzido e essencial. Acho que a Sallve, por exemplo, resolve isso de um jeito legal. Eu não entendo nada de cuidados com a pele, mas a marca tem uma comunicação tão boa que ficou fácil para mim me encontrar entre seus produtos. Talvez, em vez de chamar de ‘Boy de Chanel’, a linha pudesse ser ‘pacote básico, módulo um'”, brinca.

A leitora Marina Finkelstein Sant’Anna, por sua vez, acredita que o estigma social da maquiagem como um produto para mulher ainda ressoa. “Quando se fala da Chanel, estamos falando do consumidor do mercado de luxo e esse consumidor ainda é muito conservador. Acho que, se fizeram isso, foi porque sentiram que, assim, vão conseguir atingir esse cliente que, no fim das contas, ganha uma porta de entrada para o universo da maquiagem.” Ela cita, inclusive, a entrevista que a historiadora e diretora do Fashion Institute of Technology Valerie Steele deu à ELLE Brasil sobre o assunto: “Ela fala bastante dessa importância de olhar para diferentes masculinidades para conseguirmos superar a masculinidade hegemônica.”

Viagem no tempo

Nem Chanel, nem Jean Paul Gaultier, contudo, foram os primeiros a propor uma maquiagem masculina. Na antiguidade, os egípcios e os persas utilizavam a pintura do rosto para denominar status, poder e diferenciação de classe social. É o que explica Fabio Mariano da Silva, pesquisador do grupo Inanna – Teorias de Gênero, Sexualidades e Diferenças da PUC-SP. “É claro que, naquele momento, não havia uma discussão a respeito da sexualidade pois esse tema aparece com a divisão dos corpos e as questões de gênero a partir do século 18”, diz ele, que é também professor de cursos de Educação Continuada na PUC-SP como “Masculinidades Contemporâneas” e “O Estado e o Corpo”.

Nos salões literários da França do século 17, os homens que faziam parte do Preciosismo – um movimento literário e social das mulheres (as Preciosas) – faziam uso da maquiagem. E iam além ao também vestirem roupas (saltos e perucas inclusos) que remetiam aos códigos da feminilidade. Fabio aponta que a ideia era romper padrões: “Tratava-se de uma política de apoio à equidade de gênero. Embora pouco discutida, ela repercutiu na forma como um padrão de masculinidade foi desenhado especialmente em países como os Estados Unidos que repeliam um modelo de homens com comportamentos tidos como femininos – eles rechaçavam a suposta feminilidade dos homens europeus.”

Para a drag queen, pensadora e youtuber Lorelay Fox, esse repertório histórico é fundamental para o desmantelamento do que se entende por masculinidade hegemônica. “É preciso falar sobre isso, entender de onde vêm esses ideais. A masculinidade, hoje, tem uma função social. Ela se opõe a tudo o que é considerado feminino ou que não seja ela mesma, criando assim, uma suposta figura de dominância que rege a sociedade como um todo.” De acordo com ela, existe um impasse entre a pressão que os homens sofrem para exercer essa masculinidade hegemônica e a impossibilidade de atingir esses estereótipos na vida real. “É palpável desde a infância: ‘homens não choram, não demonstram sentimentos, só brincam entre si, não podem cuidar da casa, não brincam de boneca’… Desde pequenos, somos levados a excluir da nossa mentalidade uma série de questões que nos tornariam mais humanos e que promoveriam um convívio melhor na sociedade. Saber cuidar da casa e brincar de casinha vai te tornar um ser humano melhor, um pai melhor, um marido melhor… Um homem melhor.”

E se abrir para a maquiagem? Também ajuda? “Embora esteja completamente associada a traços de feminilidade, acredito que a maquiagem em si seja pouco efetiva como marcador para aprofundamento de discussões a respeito de masculinidade”, opina Fabio Mariano. Ele acredita que a maquiagem pode ser um sinal de avanço, já que, em certa medida, os homens rejeitam a feminização arduamente, mas que existem outros temas mais urgentes e necessários.

“A despeito de mudanças no comportamento pessoal e social dos homens, muitos movimentos têm feito um chamado para que outras masculinidades sejam reconhecidas e visibilizadas. São grupos que têm questionado o papel dos pais, falando de uma paternidade responsável não só do ponto de vista econômico, mas também afetivo”, diz o professor.

Lorelay também fala da importância de uma nova educação: “E se a gente começasse a pensar nisso desde cedo? Se a gente coloca em patamar de igualdade a questão de gênero, desde criança, dentro de casa e das escolas, vamos acabar fazendo uma grande transformação. É por isso que é tão importante falar de gênero nas escolas. Não tem nada a ver com transformar todo mundo em gay. Nada disso. A gente quer discutir o papel que as pessoas têm na sociedade. Por que o seu pai sai para trabalhar e a sua mãe fica em casa lavando louça? Isso é discutir gênero!”

Fabio também retoma os valores do movimento dos homens negros – pretos e pardos – no sentido do rompimento do silêncio imposto pela branquitude. “É preciso valorizar essas existências. O mesmo vale para os movimentos de homens gays, trans, asiáticos, gordos e assim por diante. É preciso romper com o pacto estabelecido entre homens que não falam e não agem contrariamente à violência contra si, contra as mulheres e contra a sociedade.” Ou seja, a adoção do uso da maquiagem, diz o professor, não significa muita coisa se ela não vem acompanhada de uma reflexão sobre a importância do cuidado de si e do outro. “Os homens precisam reconhecer a possibilidade de outras masculinidades mais plurais e saudáveis.”

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