200 milhões de clitóris mutilados

Práticas atrozes como a mutilação genital feminina, ainda existente em dezenas de países, expõem a falta de motivos para celebrações nesse 8 de março.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Evoluímos de fato?

Mutilação genital feminina (MGF), é o corte ou a remoção deliberada da genitália feminina externa. E, apesar de ser uma agressão física que por si só já é extremamente dolorosa (muitas vezes feita sem nenhuma anestesia), são os danos emocionais e psicológicos que acabam sendo imensuráveis. Muitas pessoas não sabem, mas a circuncisão feminina, como também é chamada, acontece há mais de 2.000 anos e é praticada em muitas culturas e religiões, podendo causar problemas de saúde mental e física duradouros, incluindo infecções crônicas, problemas menstruais, infertilidade, complicações na gravidez e no parto.

Embora a prática seja conhecida, principalmente em 30 países na África e no Oriente Médio, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), ela também ocorre em alguns lugares da Ásia, da América Latina e entre populações imigrantes que vivem na Europa Ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Para se ter uma ideia, a Somália tem a maior prevalência de mutilação genital feminina do mundo (98% das mulheres passaram pelo procedimento cirúrgico), seguida por Guiné, Djibuti, Mali e Serra Leoa. Já o Egito tem o maior número absoluto de mulheres que foram mutiladas.

Acredita-se que são 200 milhões de mulheres vivendo essa realidade, mas, na verdade, esse número pode ser bem maior. Isso porque as estatísticas são baseadas em estimativas, e o fato é que muitas vezes as mulheres não falam abertamente sobre o tema por medo de críticas ou por medo de processos contra familiares ou membros da comunidade em países onde isso é ilegal. A prática, geralmente feita contra a vontade da mulher, é descrita pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como “um procedimento que fere os órgãos genitais femininos sem justificativa médica”.

Mas se a maior parte do mundo concorda que isso é uma barbárie, por que ainda acontece? A resposta não é simples. Assim como a cultura ocidental vem passando de geração em geração o conceito da supervalorização da juventude e de que a mulher madura não é mais útil ou desejável (isso sem falar no idoso, que é considerado um peso para a sociedade), a mutilação do clitóris também é uma questão cultural, uma verdadeira ignorância estrutural. Na maioria das vezes, essa prática passa por aceitação social, religião, desinformação, rito de passagem à vida adulta, além de também ser um modo de preservar a virgindade para o casamento e aumentar o prazer masculino. Ou seja, contanto que esteja bom para o homem, tanto faz o suplício a que a mulher é submetida.

O etnocientista francês Jacques Tourneau acredita que se trata de uma castração simbólica para dominar as mulheres e uma forma de retirar seu apetite sexual, diminuindo assim as relações extramatrimoniais. Resumindo? Manutenção da sociedade machista através do controle da sexualidade feminina.

Em uma entrevista concedida à BBC, Bishara Sheikh Hamo, da comunidade Borana, no Quênia, conta que foi submetida à mutilação quando tinha 11 anos. “Minha avó me disse que era uma exigência para todas as meninas, que nos tornaria puras.” Mas o que não disseram a Bishara era que ela passaria a ter ciclo menstrual irregular, problemas na bexiga, infecções recorrentes e, quando chegasse a hora, ela só poderia dar à luz por meio de uma cesárea. No caso dela, a mutilação genital feminina foi feita ao lado de outras quatro garotas: “Eu estava vendada. Depois eles ataram minhas mãos para trás, minhas pernas foram abertas e prenderam meus lábios vaginais. Depois de alguns minutos, comecei a sentir uma dor aguda. Gritei, gritei, mas ninguém podia me ouvir. Tentei me soltar, mas meu corpo estava preso.” Ela ainda afirmou que o procedimento é trágico. “É um dos tipos de procedimentos médicos mais severos, e não há higiene. Eles usam o mesmo instrumento cortante em todas as garotas. O único analgésico disponível era feito a partir de uma planta. Há um buraco no chão e uma planta nesse buraco. Então, eles amarraram minhas pernas como um cabrito e esfregaram a planta em mim. E depois na próxima garota, e na seguinte, e na seguinte…”. Hoje, Bishara é uma ativista antimutilação.

Existem quatro tipos de mutilação. A clitoridectomia, que é a remoção parcial ou total do clitóris e da pele ao redor. A excisão, que, além da remoção parcial ou total do clitóris, retira também os pequenos lábios. A infibulação, em que é feito um corte e o reposicionamento dos grandes e pequenos lábios. Em geral, essa técnica inclui uma costura para deixar uma pequena abertura pela qual passam menstruação e urina. O risco de infecção é tão alto e a abertura é às vezes tão apertada que é preciso abri-la para permitir a penetração no sexo ou o parto, causando complicações para mãe e para os filhos. E ainda existe uma quarta e última espécie de mutilação, que englobaria todos os outros tipos de mutilação, como perfuração, incisão, raspagem e cauterização do clitóris ou da área genital.

Segundo o relato de outra sobrevivente de mutilação (muitas morrem por hemorragia ou infecções causadas por condições precárias de higiene), feita também para a BBC, a blogueira e cineasta Omnia Ibrahimdo, do Egito, afirma que a MGF é angustiante, prejudica os relacionamentos das mulheres e como elas se sentem sobre si mesmas. “Você é um cubo de gelo. Não sente nada, não ama, não tem desejo”. Omnia diz ter lutado contra o impacto psicológico da mutilação genital durante toda a sua vida adulta. Ela afirma que sua comunidade a ensinou “que um corpo significa sexo e que sexo é pecado. Na minha opinião, meu corpo se tornou uma maldição. Eu costumava me perguntar sempre: eu odiava sexo porque eu fui ensinada a ter medo dele ou realmente não me importo com isso?”

Camila Faus e Fernanda Guerreiro são criadoras do @she____t. Uma plataforma de conteúdo feita para mulheres que acreditam que a idade dos “enta” rima com experimenta.

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