Roupa, rua e identidade

Sobre Jamel Shabazz e os registros do nascimento e discurso do streetwear.


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Ilustração: Mariana Baptista



Em 1975 Jamel Shabazz tinha 15 anos. Seu pai, um fotógrafo profissional, botou nas mãos do garoto uma câmera, presente que abriu caminho para o que seria uma das mais importantes coleções de imagens urbanas das décadas seguintes.

Morador do bairro do Brooklyn, em Nova York, Jamel começou fotografando sua rua, seus colegas e sua escola. Mas ele não estava em qualquer lugar do tempo. Entre os hippies e os protestos contra a Guerra do Vietnã, o rebote dos levantes do movimento negro, a violência policial e das gangues e o nascimento do hip-hop, suas lentes registraram manifestações culturais que foram parte de um período transitório e de muitos contrastes.

Especialmente entre 1980 e o ano 2000, ele circulou entre seu bairro, o Lower East e o Bronx botando em imagens, entre muitos outros recortes possíveis, o nascimento do que hoje chamamos de streetwear. Seus modelos são pessoas de todas as idades, em sua maioria pessoas negras, mas sobretudo os jovens.

Alguns manuais de estilo dirão que o streetwear surgiu na Califórnia entre o surfe e o skate. Não concordo. Alguns de seus elementos evidentemente estavam lá, como estavam na invenção da minissaia, na popularização do jeans pela juventude hippie e estudantes de várias partes do mundo, nos mais variados movimentos que envolviam adolescentes e música, do glam e mods britânicos, aos rude boys jamaicanos.

Em 1965 a skatista Patti McGee dá uma ideia do que estou dizendo: uma loirinha plantando bananeira num skate na capa da revista Life. A pose é nova, mas o look é comum, qualquer garota padrãozinho da época poderia usar. O próprio skate ainda é um ET na imagem que, de resto, é bastante cômoda para a sua época apesar da pose.

Se pensarmos em Venice e Laguna Beach, ali na metade dos anos 1970, nos Z-Boys, nomes como os skatistas Stacy Peralta, Tony Alva, Jay Adams, essa cena, etc, a coisa muda um pouco. Ali já estavam incorporados alguns itens de vestir que passaram a ser ligados à prática em si, ou seja, roupas que não necessariamente estavam no lugar de uniforme esportivo funcional, mas que davam notícias daquele universo, de como viviam aquelas pessoas. Quem era da cena e arredores usava certo look ou sabia do que se tratava, mas ainda assim era algo pontual, localizado.

É claro que o skate desde muito cedo em sua história não era visto exatamente ou somente como um esporte, mas sua cultura visual iria se consolidar de fato a partir dos anos 1980. Marcas pioneiras como a Stussy, por exemplo, vieram no meio daquela década. Camisetas com estampas específicas, bermudas, tênis, camisas de flanela, cabelos longos ou cheios_ o combo era algo de apelo quase que exclusivamente juvenil.

Nos bairros pobres de LA, os estudantes secundaristas sob a inspiração e o ativismo do Partido dos Panteras Negras fizeram grande e bonito nos protestos com adesão dos latinos e de parte dos colegas brancos que partilhavam da mesma situação econômica. O look era bem diferente. Algo mais prático, menos elaborado e, enfim, mais uniforme casual, o que fazia todo sentido nesse contexto. Isso mudaria nos anos 1980.

Já em Nova York a coisa se deu de outra forma. Na fronteira entre a disco e o hip-hop, com a descoberta para muitos, revalorização para outros, de elementos vindos de países africanos (sobretudo graças às ações de divulgação cultural e educação dos Panteras Negras e do movimento negro como um todo), o que surgiu em termos de roupa foi absolutamente inédito. Vale reforçar aqui que roupa casual não é streetwear, mas o lance é como o streetwear tomou a cena de forma a determinar o que seria a moda casual, no sentido do que as pessoas usariam em suas tarefas do dia-a-dia, fundindo e confundindo roupa de trabalho, roupa de esporte, roupa “de sair” etc.

Não falamos aqui de ineditismo por conta de cada peça, evidentemente, mas por suas combinações e jogos de códigos e deslocamentos. Os novos ídolos negros do esporte, o rap, todo o lance dos MCs, os símbolos de riqueza e como lidar com eles.

A primeira fase dos registros de Shabazz se concentra na área de Flatbush, no Brooklyn, entre 1975 e 1989. Ali viviam muitos afro-americanos, sul-americanos e caribenhos misturados a descendentes de imigrantes italianos, bem diferente da geografia humana hegemônica das áreas mais ricas de Manhattan. Há muitas evidências de que esse quadro tenha feito muita diferença.

Quando falamos de nascimento de um estilo a data não é o único dado. Códigos organizados, riqueza de elementos e abertura a sutilezas, capacidade de influência, fluxo, modos de permanência. Ou seja, embora haja quase sempre algum grau de percepção imediata do que está rolando, para efeitos históricos analisamos isso em retrospecto. E é por isso que não dá para falar de streetwear nos moldes que conhecemos hoje sem a cena novaiorquina formatada a partir do final dos anos 1970.

Os looks da NY de Shabazz eram muito impactantes e a realidade é que até hoje, de forma geral, não puderam ser superados como imagem de base pelas maiores grifes do mundo. Não será exagero dizer que a moda mainstream tem feito de tudo nas últimas décadas para ofuscar ou se apropriar do que se consolidou naquela cena.

Remix, resist

Já havia tênis esportivos. Já havia jaquetas esportivas e de trabalho. Já havia alfaiataria. Já havia joias douradas. Já havia bonés e chapéus. Já havia casacos de pele. Mas não havia um cara de bucket hat, vários cordões e correntes dourados oversized com uma calça de alfaiataria, camiseta, colete de lã, óculos coloridos, uma jaqueta esportiva e tênis Adidas. É como pensar em uma nova arquitetura, em um novo tipo de composição, em um livro que tira as classes gramaticais de sua organização estabelecida. E era como se o mundo inteiro enfim existisse, com a inclusão de tecidos, peças e acessórios vindos de países africanos e latinos, por exemplo.

As combinações não espantavam por serem totalmente extraterrestres, mas exatamente por terem elementos estranhamente familiares. Agrupadas de forma diferente como que em busca de uma transformação. Em tamanhos e proporções diferentes. Usando logomarcas falsas em peças de design original e exclusivo. Misturando códigos “all american” com referências africanas. Foi um verdadeiro nó.

Na “história oficial” por muito tempo se vendeu os anos 1980 das cores berrantes, fluo, dos volumes, do power dressing e de um grupo muito específico: os yuppies. No imaginário mainstream a moda 80 é branca. O termo yuppie teria vindo dos yiipes, membros do Partido Nacional da Juventude, um grupo performático que organizou protestos contra a guerra do Vietnã. Aos poucos, como muitos dos antigos hippies e ativistas brancos, essa galera começou a ganhar dinheiro, se estabelecer em negócios de sucesso e deixou a política de lado. Mudando, inclusive, de roupa. Adeus folk, alô Ralph Lauren.

Mas o termo de forma mais geral se referia a uma ideologia dinheirista, de jovens dispostos a fazer seu milhão no mercado financeiro, a subir em carreiras executivas na base do custe o que custar. Em contraponto, falavam de um estilo de vida “saudável”, com comida fresca e selecionada, rotina de exercícios e cuidados estéticos.

Alguns manuais ilustrados da época mostram o look yuppie de escritório. Camisa social, terno risca de giz, gravata, botas esportivas de caçar pato, suspensórios, trench coat da Burberry. O look da garota yuppie é camisa, conjunto de saia e blazer careta, meia calça e… tênis esportivos nos pés. Estudantes das grandes e caras e racistas e classistas melhores universidades dos EUA. Prontos para subir ao topo.

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Reprodução

O contraponto a essa imagem é uma das fotos mais emblemáticas de Shabazz, um jovem de apelido Rude Boy posando em Flatbush na mesma época. Ele usa um sapato branco de iate tipo dockside, colete e calça de alfaiataria risca de giz em um tom de cinza azulado. Em vez da gravata cordões de ouro. Nos dedos muitos anéis. Cabelo na risca, Rude Boy parece um príncipe perto do povo de escritório. Mas eles são brancos crias da Ivy League ou egressos da classe média dispostos a ganhar um dinheiro que seus pais jamais sonharam em ter. Rude Boy é um moço negro e pobre do Brooklyn e sua apresentação elegante é chamada de ostentação. Um enigma sobre o ouro.

Aí é que está o ponto. Os meninos do skate e do surfe LA propunham algo como se retirar da briga, sonhavam talvez com um mundo à parte. Mas a periferia novaiorquina não. Eles estavam desafiando o jogo, seu lugar nele, ou seja, seu lugar também na luta de classes. Nada de verão eterno. A utopia de igualdade de direitos atravessada pelos códigos visuais de poder sendo mudados de lugar.

Muitas vezes o estranhamento está exatamente no deslocamento mínimo, em que a fronteira do gosto é ditada obviamente pela cor da pele e pela posição de dominação ou não atribuída a ela. Um é chique, elegante, adequado; o outro é exagerado, exótico, inadequado. Estão até hoje tentando alcançar Rude Boy, que infelizmente perdeu a vida assassinado. A foto de Shabazz não o fez imortal, mas fez marca de sua passagem, de sua presença. Bom mesmo seria que ele pudesse ver com seus próprios olhos onde chegou. Sua fotografia está em livros, museus, cursos.

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Rude Boy fotografado por Jamel ShabazzFoto: acervo do Smithsonian National Museum of African American History and Culture, cortesia de Jamel Shabazz

O streetwear que nascia ali mereceria uma tese completa sobre o realocamento de cada item. A cultura dos DJs e do sample tem tudo a ver com esse pensamento e forma de expressão. O grafitti e o pixo também, com sua modificação de elementos mais fixos da cidade, como muros; e móveis, como trens, também migrou para as roupas. A questão da marca que, para além da grife e muito acima dela, falava sobre deixar registros e rastros de passagem no mundo e no espaço público. Lembrando que estamos falando de populações que sofriam com o projeto racista de aniquilação por todos os lados.

O boné do tiozinho baseball, tantas vezes reaça, racista. A boina tipo flap cap que já foi símbolo de britânico do povo e depois virou coisa de intelectual acadêmico. O bucket hat que parece o pileus greco-romano, usado por trabalhadores e pescadores. Parece tanto o chapéu de “safári” quanto o shape principal dos chapéus Fulani de Burkina Faso, Mali e Níger. O rapper Kendrick Lamar resgatou esses últimos em um de seus vídeos.

Existe uma tensão e troca de papéis que sempre tem a ver com classe social. E com raça, na maioria das vezes. São construções que se repetem trocando de lugar, existe sempre uma disputa, que pode ter vários atravessamentos.

As duck boots dos yuppies foram recriadas por Kanye West na Yeezy. Mas a própria inclusão delas no look veio dos periféricos que elegeram os tênis como calçado que poderia acompanhar uma calça social. Foram eles, junto com atletas negros do basquete por exemplo, que deram a marcas como Nike e Adidas o status que elas têm hoje. O visual yuppie foi criado com essa lógica roubada. Ou seja, uma roupa de trabalho com um calçado esportivo. No caso, um esporte que fala da aristocracia, como caçar patos, mas também oferece algo de um elemento “rústico”. O rústico, aliás, na moda, nada mais tem sido do que uma romantização do pobre. O próprio ato de caçar patos por esporte (e com todo um aparato visual e de instrumentos, armas, criados etc), ao invés de comê-los como fazem os pobres, dá conta dessa divisão.

Kanye e seu parceiro, Virgil Abloh, cuja carreira e morte nos faz repensar essa história, pegaram a moda literalmente pelos pés. Nesse contexto, podemos pensar a Yeezy Runner Boot como um terceiro passo. 1. a duck boot dos yuppies. 2. a duck boot de Kanye, desenho muito parecido, materiais e cores diferentes. 3. A Yeezy Runner Boot que guarda uma certa semelhança com a primeira, não exata mas como uma lembrança que se fez um borrão, e coloca sobre ela um design novo, algo futurista, com marca forte, algo que não nega de onde partiu, mas reconhece que na partida havia um elemento seu, e eleva esse elemento ao protagonismo.

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A Yeezy Runner Boot.Foto: Divulgação

Não é nenhum exagero dizer que o mercado de luxo levou décadas deformando e seletivamente apagando as origens pobres e negras do streetwear para poder usá-lo melhor, dobrá-lo para caber em suas caixas. O streetwear do Brooklyn, do Harlem, bom, aquilo tudo tinha um valor criativo, um senso próprio de luxo. Aquilo operava fora dos passos e das temporadas de moda, tinha seu próprio tempo.

A explosão do mercado sneaker foi o ponto de contato preferido do mercado. O basquete e mesmo o rap logo entraram no circuito publicitário. Logo em termos, na verdade, pois sempre houve tentativa de apagamento racial. Bem-sucedida em geral, até o fortalecimento das novas gerações dos movimentos sociais. Cantoras, rappers e grupos, jogadores da NBA, muitos foram modelos, mas demorou para que parte dos lucros chegasse até eles. Já os “populares” comuns que de fato consolidaram o streetwear ao adotá-lo na vida, nas ruas, no dia-a-dia, mal recebem os créditos.

Talvez uma das coisas mais brilhantes da geração NY tenha sido seu uso da pirataria. O que Virgil Abloh defendeu na última década de sua vida em versão modificada. O que Dapper Dan fazia em seu ateliê couture no Harlem era uma pirataria de logomarcas. Ele as usava em roupas de sua autoria e design. Ou seja, eram chamadas de “falsas” tão somente porque as logomarcas não eram autorizadas por suas casas de origem. Dapper Dan as usava como estampas, uma visão interessante de que o status da roupa não vinha do design extraordinário das casas mas de seu carimbo. Pagou o preço com o impedimento legal de suas atividades e falência. Só foi “resgatado” nos anos 2010 depois de muita pressão, viralização nas redes e insistência dos movimentos.

Design comum

Já Abloh falava muito de open source. Ou seja, de socializar, abrir, tornar comuns, modelagens e designs, para que eles pudessem ser usados livremente. Seu desejo, a partir do que podemos entender de suas falas, era tirar um pouco o peso da grife, da logomarca e botar mais peso no design. Para depois tornar esse design acessível. É de fato algo notável e que ele ia desenvolvendo como podia, mas essa coisa toda esbarra tanto nas questões macro quanto nas micro. Sabemos também, obviamente, que não é tarefa fácil desmanchar o fetiche do nome das grifes.

Mesmo a Balenciaga com Demna Gvasalia tentou fazer algo com a pirataria criando peças inspiradas em modas populares prévias que podiam, por exemplo, ser refeitas facilmente pela indústria da cópia. De fato, os camelôs e sites passaram a vender Balenciaga a rodo, sem que a maioria dos consumidores soubesse sequer da origem dessa casa de luxo, do seu criador ou de seus atuais estilistas. Demna e sua trupe cresceram na URSS em queda, onde o genérico e a cópia tinham status bastante peculiares e onde as marcas até certo ponto eram ao mesmo tempo banidas, odiadas e desejadas.

O interessante nesse momento é notar que todas as casas de luxo optaram nas últimas temporadas a um retorno ao luxo tradicional, às imagens tradicionais de luxo. Algo como um basta ao streetwear, um limitador de sua influência no que ela tem de questionadora.

O street é, como diz o nome, das ruas. E as ruas nunca foram das elites, embora ela detenha seus mecanismos de controle. A elite é dos castelos, bunkers e condomínios. Vai de um lugar a outro, não fica, não habita a rua. A não ser em espaços determinados, como lojas, shoppings e parques. A rua é por excelência o lugar do povo.

Na moda, a rua, como lugar do povo, foi sempre também uma vitrine da influência da elite. Se a moda nasce copiando reis e rainhas em versão menos rica, é para espalhar sua presença por lugares por onde eles não circulavam. Funcionava na corte e ia se tornando desejo de usar nas classes mais pobres e subalternas. Por séculos, a elite colocou restrições ao uso de tecidos, materiais e até cores reservadas aos ricos. Se abriu mão disso, foi para que seu controle passasse batido, diluído, se tornasse algo presente e naturalizado, cuja força, no entanto, pudesse ser evocada quando necessário.

Como ocorre agora. Do preppy e realeza-street da princesa Diana às imagens de capas de revista clássica dos anos 50 e 60, a coisa está tendo um pico rápido. Bem na hora em que um mundo destroçado pela pandemia começa a ver a que ponto as desigualdades chegaram: tudo muito cru, fome, ossos, vida e morte.

Quando a moda veio da rua, ou seja, quando a elite se apropriou deliberadamente das criações dos subalternos, isso foi feito sem grandes casos e créditos. E aconteceu sistematicamente. O streetwear, de novo, é ímpar aí. A briga de códigos foi pensada de forma tão complexa e sedutora que os radares pifaram. Era algo que desafiava as ideias de dentro e fora, de meu e de seu. Falava de algo comum a partir de apropriações criativas feitas pelos subalternizados. E era visualmente irresistível.

A questão da negritude está fervendo de novas e brilhantes discussões no momento. No que se trata da questão cultural, a moda tem capítulos a contribuir nesse tema, especialmente pelo movimento do streetwear. Se o negro é um conceito colonialista, o negro que se recria em contraponto a esse conceito não é o mesmo, é algo que reage ao colonizador e se recusa a ser definido naqueles termos. Ou, como colocou brilhantemente James Baldwin, “não sou seu negro”. Ou seja, não sou aquele que você quer definir e aprisionar em sua definição.

Há muito aí a discutir, inclusive no sentido das questões de apropriação, mas especialmente do que obras como a de Frantz Fanon apontam no sentido de uma sociedade que, porque de fato igualitária em termos de direitos e lugares sociais, poderia ser desracializada. E o que isso implicaria em termos de identidade.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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