A mãe tá on?

Sobre mulheres, crianças e o bebê de milhões.


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Tem uma moça andando com seu namorado em uma rua fria. Ela usa um jeans arrastando no chão, correntes de colar e um jaco aberto, que deixa ver sua barriga de grávida. Um casal jovem vai ter um bebê. Nada mais comum, menos notícia. A não ser pelo fato de ela se chamar Rihanna, e ele, ASAP Rocky.

Maternidade é um tema interessante, para dizer uma frase que não diz nada. Dá sempre briga, as unanimidades são difíceis e, quando acontecem, não raro são muito problemáticas.

Dizem que mãe só tem uma, o que é discutível, mas o que é uma mãe?

Rihanna agora vai ser mãe. Com sorte ela tem alguma pista do que é ser Rihanna, essa pessoa. Para o público, uma estrela, empresária bem-sucedida, voz ativa na luta antirracista, a que várias vezes se arriscou ao falar de causas pouco palatáveis, temas espinhosos. Rihanna que se veste de baseado. Rihanna com a bunda para cima, escrachada na cadeira, cara de poucos amigos. Rihanna piadista, Rihanna fogo no parquinho. É essa, entre outras, a que vai ser mãe. Como ela vai ser mãe, de que maneira isso vai transformar e ser transformado por essa vida que já existe, isso ninguém sabe.

Confesso que fiquei feliz com as fotos iniciais. Nada muito sagrado, nenhum supercenário, duas pessoas na rua, uma mãe, um bebê, um pai, em movimento, caminhando sabe-se lá para onde. O ensaio para alguma revista ou algo assim provavelmente virá, e claro que os dois não são só mais dois na multidão em vários sentidos, mas foi legal esse primeiro registro menos montado.

Às vezes temos a impressão de que a experiência compartilhada da maternidade foi engolida por um misto de idealizações (a santificada, a de luxo, a possível standard, a desconstruída, a que solta os cards com regras, a empreendedora da prole) e obsessão por performance de redes. Vale tudo, até espetacularização de sofrimento. Tem também competição do parto mais mágico, da vida mais orgânica, dos melhores looks, melhores festas, tudo freneticamente registrado nos stories. A criança mesmo parece que às vezes é só um detalhe secundário.

Mas, voltando à pergunta, o que é mesmo uma mãe? Pergunta difícil.

Bom, tem um dado básico: existe uma pessoa no lugar de filho.

Daí que se pensa bom, essa tal de mãe precisa responder de algum jeito, não de qualquer jeito, à existência desse filho. Filho, filha, filhe, isso não vem pronto.

Há quem teorize que tudo o que essa mãe for e fizer tem uma relação direta de causa e consequência para esse filho. Tem quem ache que cumprindo certas funções básicas fica tudo ok. Tem aquela piada clássica de que na teoria tudo “é culpa da mãe”. A piada comporta, claro, certo exagero, mas tem seu tanto de verdade, o povo adora culpar a mãe.

Talvez por isso milhões de pessoas recorram aos manuais e a versões revisadas, com sinal negativo ou viradas do avesso, das cartilhas de outras gerações. Opções que oferecem a promessa de que seguindo certos passos vai dar certo e, caso dê errado, sempre dá para culpar os autores, a má informação, uma aplicação incorreta que pode ser corrigida etc.

É claro que recorrer a nossos pais e avós, tanto para copiá-los como para negá-los, é comum e até certo ponto inevitável em diferentes níveis. Isso que vivemos como filhos/as/es nos afeta como pais de muitos jeitos. Nos afeta e pode se repetir, se reeditar, nas nossas relações, em como nos colocamos, nos relacionamentos em geral. A questão, me parece, é mais sobre como, de que forma.

Se alguém ama um filho, um ser humano a que se dá esse nome, filho/a/e, como é que chega a amá-lo se não pela via da maternidade ou da paternidade? Podemos odiar a própria vivência que nos leva a amar alguém (como quando alguém diz amo minha criança mas odeio ser pai/mãe)? O que será que se odeia nesse lugar? É certo que em cada colo pesam aí o tempo, a cultura, a política, a história.

No caso da mãe seria a sobrecarga, as exigências sociais, a solidão, a falta de rede? Pode uma maternidade se resumir à soma de infernos que envolve ser mãe em certas circunstâncias? E no caso do pai, o encarnado e o metafórico, brutalmente menos cobrado em muitos aspectos, exceto, mesmo que não em todos os casos, o de ser o “provedor”, o que rola? Se a figura paterna está decadente como dizem o que pode fazer diante disso um homem, um pai? Em que pé de seriedade estão as discussões sobre masculinidade, para além do marketing?

Como fica o amor nessa zona?

Não sei responder nada disso. Mas tenho mais perguntas talvez pertinentes.

E como ficam as crianças, essas que chamamos de anjos enquanto aceitamos um mundo que, sabemos, pretende fazer da vida delas um inferno? Como ficam aquelas em nome de quem, e contra a sua vontade, sem o seu conhecimento, se cometem as piores atrocidades? Se diz tudo sobre uma criança menos que ela é capaz de falar por si mesma, não como miniadulta ou como papagaio, mas de acordo com cada momento de sua vida, de acordo com suas possibilidades.

Escutar as crianças em suas diferentes experiências de uma infância se faz mais do que necessário. Quem diz são as que têm essa chance de serem ouvidas e os adultos que estão com elas nessa batalha.

A criança e sua mãe se conhecem pelas vias incertas e sempre insuficientemente traçadas de uma maternidade. E enquanto falamos em anjos, seres de luz e outras pataquadas, também acusamos as crianças, ainda que veladamente, de exigirem que uma mulher seja aniquilada para dar lugar à mãe. A criança é apontada como culpada, como o ser que faz com que a mãe inviabilize a mulher. Mas, ao contrário, nessa relação, a criança não está sempre marcando a necessidade de uma separação dentro dessa transformação?

Uma criança reivindica atenções, evidente, e em um primeiro momento ela precisa de cuidados constantes. Mas o que a escuta mostra é que desde muito cedo elas fazem esforços para serem ouvidas, brigam por seu espaço, comunicam alegrias e sofrimentos. Elas buscam entornos, objetos, elas buscam outros rostos, outras vozes, o pai ou seus substitutos únicos ou múltiplos. Elas marcam a necessidade que a mãe saiba oferecer também sua ausência, que não esteja sempre ali asfixiante e asfixiada em seu desejo, que não a engula, que tenha outros interesses e paixões significativos. Crianças lutam como podem, falam como podem, inclusive com o corpo. Elas respondem bem mesmo fora do timing ideal de algumas teorias, são capazes de dar respostas diferentes às mesmas situações, de criar novas rotas com seus parceiros de viagem.

Na minha análise uma maternidade possível é bagunçada e comporta improvisações, o que não quer dizer sem regras ou limites, o que não quer dizer absolutamente sem responsabilidades ou sem consequências, o que não quer dizer sem disputas de poder, o que não quer dizer sem frustração e tristeza, o que não quer dizer sem peso. Mas que também não quer dizer sem alegria, sem carinho, sem prazer, sem momentos de muita entrega ou de puro deleite.

É preciso, evidente, que uma criança possa passar por experiências que mostrem a ela que viver é bom, gostoso. É preciso que ela seja respeitada. Só que essa é uma luta que jamais pode ser cobrada exclusivamente das mães, passa pelos pais ou correlatos, pelas famílias em geral, nos mais variados formatos e extensões, e pelas instituições, nos confronta como sociedade, como uma sociedade brutalmente desigual, brutalmente racista, sexista e classista, que cada vez mais tenta reduzir as dinâmicas da vida a questões de mercado e economia.

Se, como dizem os psicanalistas ingleses, o bebê e sua mãe precisam de um bom ambiente, esse ambiente não pode deixar de ser o mundo. Mudar o mundo, transformá-lo, é criar bom ambiente comunitário, social. O resto, em geral, é mais gestão de privilégios e aplicação de ideais de cartilha do que qualquer outra coisa. É claro que não vamos esperar o mundo mudar para cuidar de nossos filhos, e é certo que um ambiente social igualitário não garante saúde e mar de rosas. Mas o cuidado de nossos filhos tem de passar pela luta. Luta política, trabalhista, luta para que arte não seja algo separado da vida mas algo que organiza e alimenta a vida, luta por alguma poesia do e no dia-a-dia, luta para que o bunker, o sucesso individual, o mata-mata do dinheiro não sejam a única saída.

No fundo, essa coisa de viralizar a comemoração de uma gravidez fala de alegria em dois registros, e os memes que surgiram ontem mostram isso. Um registro trata de uma mulher muito admirada, de um cara supercool, de um casal lindo no auge do romance, de vida nova chegando, de uma certa promessa de felicidade no caos. Outro mostra, e isso está na maioria das montagens, o futuro bebê comemorando o fato específico de que vai nascer rico e herdeiro, livre ao menos de parte significativa dos problemas da maioria.

Em um tempo como o nosso, dinheiro parece a única segurança possível. Não é e não pode ser. Ou, como li em um tweet divertido, precisamos criar um mundo melhor para o bebê da Rihanna.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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