E SE… a crise climática afetar o artesanato brasileiro?

No semiárido, calor extremo tem impactado artesãs do Cariré, conhecidas por seu trabalho com palha da carnaúba.


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Às vésperas da 26ª Conferência das Partes (COP), que integra a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, é pertinente falarmos sobre justiça climática. Esse conceito não ganha espaço central nas discussões das COPs, mas é urgente que pessoas, de carne e osso, venham à mente quando falamos de crise do clima. Gases de efeito estufa (pendendo sempre para o cientificismo) e compensação de carbono (pendendo sempre para o mercado) normalmente são os grandes protagonistas no debate. Mas a verdade é que as mudanças climáticas também têm um efeito que deveria ser ostensivamente debatido: como estas aprofundam as desigualdades existentes e impactam primeiro e de forma mais brusca as pessoas que menos contribuíram para essas alterações.

Então, aproveito o momento para trazer a história das artesãs do Cariré, região do semiárido brasileiro, altamente vulnerável à desertificação, que já estão sentido na pele e no trabalho o aquecimento global. Em 2018, as mulheres que trabalham com esse saber ancestral, e têm uma longa trajetória de luta para mantê-lo vivo, conquistaram uma exposição no Museu da Casa Brasileira. Convido minhas leitoras e leitores a conhecerem a história dessas mulheres na reportagem da Vitória Régia da Silva e Flávia Bozza Martins.

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Em uma pequena comunidade do interior do Cariré (CE), conhecida como Muquém de São Pedro, nasceu, cresceu e vive a artesã Maria da Conceição, de 60 anos. Desde criança, aprendeu com a mãe e a avó o ofício do artesanato por meio do trançado da palha da carnaúba. Na região, a palmeira sertaneja do Nordeste, conhecida como “árvore da vida”, é uma das principais fontes de renda para a população local. Aos homens é reservado o corte da palha; às mulheres, o seu trançado. A prática é ancestral e passada de geração a geração. Porém as mudanças climáticas na região podem colocar em xeque esse conhecimento e a subsistência da população.

Segundo estimativa populacional do IBGE, o Cariré tinha 18.470 habitantes em 2020. A maioria, mulheres e pessoas negras. De acordo com o Censo de 2010, 28,5% da população do município eram extremamente pobres, 50% eram pobres e 72% eram vulneráveis à pobreza na época, e apenas 27% da população de 18 a 20 anos tinham ensino médio completo. Esse cenário de vulnerabilidade local e ausência de políticas públicas ajuda a entender as artesãs ouvidas pela reportagem, que destacam pontos positivos e negativos no semiárido a partir de seu modo de subsistência.

Os positivos estão relacionados ao cultivo da carnaúba, que se desenvolve bem na região, já que a palha é a principal fonte de renda da comunidade. Os pontos negativos se relacionam com a falta de água, o calor e sua influência na palha, que é impactada pelas mudanças climáticas na produção agrícola.

Aposentada, casada e mãe de três filhos, Maria reside com o marido e uma filha. Desde pelo menos os 10 anos, ela desenvolve suas habilidades com artesanato, mesmo antes de saber que era uma profissão. Esse status de artesã profissional só veio para ela em 2012, com a fundação da Associação dos Artesãos da Palha de Carnaúba de Muquém de São Pedro, mais conhecida por Mucaúba (junção dos nomes “Muquém” e “carnaúba”), que gera empregos e renda própria para a comunidade local.

Para ela, o artesanato e seu trabalho na associação são um importante complemento para a renda. “É uma ajuda muito grande. Como tenho 60 anos e sou aposentada, e meu marido não é aposentado ainda, vivemos do artesanato e da minha aposentadoria. O artesanato e a associação melhoraram muito a minha renda; eu e minha família melhoramos muito de condição”, diz ela, que foi a segunda presidente da associação, função que exerceu por quatro anos.

A Associação de Artesanato Mucaúba, fundada em 2012 com incentivo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e da Central de Artesanato do Ceará, uniu as mulheres em torno da arte. Especializada em trabalhar com a palha de carnaúba, recebe encomendas principalmente da Grande Fortaleza e do Centro de Artesanato do Ceará (CEART), visto que o mercado local não dá um bom retorno financeiro. No início, eram apenas 12 associadas, mas hoje esse número já dobrou (25) e continua expandindo. Em 2017, elas conquistaram sede própria, que abriga o maquinário utilizado nas costuras e acabamentos, um depósito, lojas e salas para reunião e produção.

Inicialmente, o grupo era formado por agricultoras que viram no artesanato uma forma de aumentar a renda da família apenas fazendo chapéu de palha da carnaúba. Com a necessidade de realizar outro tipo de trabalho e ampliar as opções dos itens fabricados, começaram a diversificar suas mercadorias. Hoje, têm apoio de empresas privadas e vendem bolsas, chapéus, viseiras, jogos para mesa, lixeiras, almofadas, revisteiros entre outros itens.

“No lugar que a gente mora sempre foi difícil emprego, a comunidade quase toda trabalhava de palha: as mulheres no artesanato, no trançado do chapéu com a carnaúba, e os homens na agricultura, fazendo roça, plantando. Sempre foi assim a vida da gente. Tudo isso vem da minha mãe, dos meus pais e avós. Agora já tem mais oportunidades de emprego, mas para quem mora no interior ainda não é fácil. Eu sou aposentada, trabalhei em escolas da prefeitura e adoro o que eu faço”, conta Maria.

Thais Silva de Almeida também aprendeu o trançado com a mãe, Maria do Socorro Nascimento Silva. Aos 21 anos, é estudante de Tecnologia de Alimentos no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e, durante a pandemia, aproximou-se ainda mais da associação, prestando serviço na parte administrativa e de produção. Diz que se considera também uma artesã e, ao olhar para o futuro, já enxerga um presente em que as mudanças no clima estão tornando o ofício das mulheres da região ainda mais difícil.

“Eu já consigo ver o impacto das mudanças climáticas, porque está cada vez mais quente, e a palha, por mais que passe por um processo de maturação no sol, quebra fácil quando está muito quente. Isso faz com que as artesãs tenham mais dificuldades de trabalhar com a palha nessa época, o que leva a um ritmo mais lento de produção”, explica. “Para nós, a chuva é comum no inverno, mas, ultimamente, está sendo presente na época da colheita e da secagem no sol, em agosto e setembro, períodos em que a carnaúba não pode molhar. Esse ano choveu nessa época, por conta das mudanças climáticas que bagunçam tudo e prejudicam quem colhe e quem trabalha com a palha”.

A comunidade de Muquém de São Pedro é um distrito de Cariré onde vivem pouco mais de 200 habitantes. Fica a 12 quilômetros da prefeitura do município de Cariré, na região norte do Ceará, e conta com cerca de 40 casas e uma igreja. A falta de perspectiva de trabalho formal na comunidade é similar a outros locais do semiárido cearense. Sem políticas públicas e programas de geração de renda, a vida gira em torno da palha da carnaúba. Para além da subsistência, o artesanato também garante que a comunidade continue existindo. “Realmente, precisaria sair daqui para trabalhar na minha área (tecnologia de alimentos), por isso, a associação para mim foi uma forma de crescimento, porque é uma renda que tenho dentro da minha comunidade. Não preciso sair daqui para conseguir um trabalho”, diz Thais.

Saber ancestral

O artesanato sempre esteve presente na vida das mulheres da comunidade, que aprendem a técnica de trançado ainda na infância, devido à convivência cotidiana, como uma forma de ajudar na subsistência da família. O saber ancestral se tornou fonte de renda para muitas da comunidade. Na família de Maria da Conceição, Raimunda Izidiane Nascimento Silva, de 25 anos, segue os passos da mãe. Ela trabalha na associação há mais de 7 anos. Nesse período, deixou de ser associada em 2014 e voltou em 2016, após sair da comunidade para ir trabalhar na cidade. Em 2019, casou-se e se mudou para Fortaleza, trabalhando de maneira remota na associação. Por causa da pandemia, voltou para a comunidade no ano passado. No momento, presta serviço à associação na parte de organização, produção e venda.

“O artesanato sempre foi parte da minha família e da comunidade. Desde criança, eu via meus pais e avós envolvidos com artesanato. Na época, era um meio de sobrevivência, e não arte. Hoje em dia, continua sendo nossa forma de sobrevivência, mas também é visto como profissão e arte”, afirma.

O trabalho com artesanato é uma importante fonte de renda, mas ainda não é suficiente para conseguir se manter completamente, conta ela: “No momento, ainda precisamos ter outros meios de renda fazendo bicos. Como uma limpeza, cuidar de uma criança. Não tem nada fixo. Eu já trabalhei em outras áreas, como babá, garçonete, recreadora e professora. Meu marido também trabalha fazendo bico”.

Pandemia

A pandemia de Covid-19 afetou completamente o trabalho das artesãs, que viram sua renda diminuir com as restrições impostas pelo isolamento social e pela crise sanitária, econômica e social. Sub-representadas entre trabalhadores formais (43%), as mulheres são maioria no setor de serviços, um dos mais afetados pela crise, como mostrou reportagem da Gênero e Número. Nesse universo, tanto no campo quanto na cidade, a questão racial é mais um indicativo de vulnerabilidade.

Segundo a pesquisa “Sem parar: o trabalho e vida das mulheres na pandemia“, realizada pela Gênero e Número e pela SempreViva Organização Feminista (SOF) em maio de 2020, 40% das mulheres responderam que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco. Sendo que a maior parte das que têm essa percepção são mulheres negras (55%), que afirmaram que tinham como dificuldades principais o pagamento de contas básicas ou do aluguel.

O estudo também mostra que 61% das mulheres que estão na economia solidária (iniciativas de desenvolvimento social e econômico de forma conjunta, como cooperativa e associações) são negras. Elas também são maioria, em comparação às brancas, entre as que veem a produção e a distribuição como processos a serem compartilhados, porque precisaram criar estratégias de cooperação contra as estruturas de gênero e racial que as marginalizam. Não por acaso, todas as mulheres ouvidas nesta reportagem são negras.

Segundo Maria da Conceição, durante a pandemia o trabalho diminuiu um pouco e, na maior parte do tempo, elas trabalharam de casa. “Mesmo assim, ainda trabalhamos muito, porque surgiu a demanda por máscaras durante a pandemia. Para encomendas normais diminuiu muito, porque fechou tudo e quase ficamos paradas. Foi um fracasso durante a pandemia, mas agora está voltando ao normal e voltamos a trabalhar na sede”, conta.

Para as mulheres que vivem e conseguem manter suas famílias nessas regiões, a vulnerabilidade do trabalho, cada vez mais exponenciada pelas mudanças climáticas, não é o único desafio. De acordo com Valquíria Lima, coordenadora da Articulação do Semiárido (ASA) em Minas Gerais, em associações e cooperativas mistas há uma luta para as mulheres se firmarem, conseguirem espaço e visibilidade. “Está enraizado uma cultura machista que é muito pesada, principalmente para as mulheres do campo. Se pegar um retrato das associações e organizações mistas, ainda existem poucas mulheres na presidência e nos lugares de decisão. Já nas associações só de mulheres as relações mudam e se consegue perceber o quanto esse trabalho, visibilidade e importância das mulheres se torna bem mais diferenciado na família, comunidade e política”, explica.

Apesar da existência e do crescimento de organizações só de mulheres no semiárido, Valquíria reforça que ainda existem barreiras para seu desenvolvimento, comuns a todas as mulheres, sendo que muitas começam dentro de casa: “Na relação com o companheiro, de aceitar que ela não está mais reservada à vida privada, mas à vida pública. São vários os desafios cotidianos que as mulheres têm que enfrentar para estarem onde estão, seja no campo ou na cidade”, reflete.

Por isso, diz Thais Almeida, é tão necessário o trabalho que é feito em Muquém de São Pedro. Na comunidade que resiste às intempéries e ao descaso do poder público, as mulheres se fortalecem e, ano após ano, reafirmam sua história no semiárido cearense: “Na associação, buscamos que as mulheres tenham uma renda, sejam independentes financeiramente e que não fiquem ao léu na sociedade. Para mim isso é fundamental porque, desde muito nova, minha mãe me ensinou que eu posso ser o que eu quiser, independentemente de qualquer coisa, e que é muito importante termos um lugar na sociedade”, finaliza ela.

Reportagem por Vitória Régia da Silva e análise de dados por Flávia Bozza Martins. Este texto faz parte de uma série de reportagens sobre como as mudanças climáticas estão afetando as mulheres no semiárido brasileiro. A série é resultado de uma parceria entre o Modefica e a Gênero e Número. Você lê esta reportagem em primeira mão aqui, na ELLE, e pode ler as outras reportagens da série aqui.

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