Avisa lá,

Sobre o documentário Axé, hits de Carnaval e a necessidade de plantar amor.


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[Bamdamel Prefixo de verão plays softly in the background]

Quando você chegar
Quando você chegar
Numa nova estação
Te espero no Verão

E aí, minha gente brasileira, salve, mais um dia, mais uma semana, noite fria e chuvosa, segundona braba. Quanta coisa ruim nesses últimos dias, hein. Só pelo céu que nos protege, táloko. Acho que nesses tempos só sei falar com música segurando as pontas, então seguimos assim, mais uma edição de Só Você, por escrito ainda, mas falando de coração pra coração, numa voz que só a gente entende, de um em um, de dois em dois, de mil em mil, o importante é não deixar a roda fechar nem ficar surda.

Hoje vamos de Bahia, porque a locutora é uma apaixonada, e porque de lá vem a inspiração das músicas do dia. Já viram o documentário Axé – Canto do Povo de um Lugar? Ele é de 2016, mas estreou semana passada na Netflix. O filme fala sobre a gênese da chamada axé music no Carnaval de Salvador e de seu desenvolvimento até o início dos anos 2000. O próprio doc, que em si também foi alvo de críticas diversas (tipo só citar Dodô e Osmar), aborda questões sobre racismo, sexismo e péssima distribuição da grana, tretas capitalistas, tudo no contexto da cena. Vale aprofundar cada uma dessas questões, o que não vai rolar aqui, também não vou analisar o documentário.

Hoje, aqui e agora, é música em um recorte afetivo, uma defesa com elementos históricos, mas também uma ideia subjetiva, um chamado à base da força do Carnaval de Salvador. Clássicos da música popular que seguem vivos. Se você foi a qualquer festa, bloco, trio do Carnaval 2020 ouviu uma ou, provavelmente, muitas delas. Potente.

Pra começar, vamos falar aqui o óbvio. O Carnaval é preto. Os blocos afro que começaram tudo por ali, como o Cortejo Afro, são pretos. A música ali, com uma variedade impressionante de ritmos e gêneros que foram sendo recriados, é preta. É uma riqueza preta, vinda de África e aqui desenvolvida. Brancos participaram e ainda participam de forma digna dessa difusão. Os mais respeitados tiveram que estudar a música preta. Então, se sua carne é de Carnaval como diz sua camiseta, é bom que você seja antirracista em plena atividade.

E aí chegaram os negros
Com toda a sua beleza
Com toda a sua tradição
Com toda sua religião
Alguns foram obrigados a se converter cristãos, evangélicos
E outros seguiram, mantiveram viva sua história religiosa
Que veio da mãe África

Segura esse samba-reggae do Gerônimo Santana, um dos ícones do início dessa cena baiana, que manda essa letra na música chamada Sou Negão. Mas o que religião tem a ver com música? Nesse caso, tudo. O candomblé, a umbanda, as religiões de matriz africana são fundamento do Carnaval, da cena da música baiana. Instrumentos, ritmos, indumentária, tudo coligado com os terreiros, com os orixás. E é tudo tão precioso. No documentário, Gilberto Gil, Caetano, Tonho Matéria, Margareth Menezes, entre muitos outros, falam também sobre esse aspecto essencial da história.

Olodum, Ilê Ayê, Muzenza, Ara Ketu, Filhos de Gandhi, Timbalada, tudo a ver com axé. A famosa e muito regravada “É D’Oxum”, de Geronimo Santana. No superpop também tem. Psirico vai de Lepo Lepo, mas também chama no Ôpo de Xangô.

O gueto, a rua, a fé
Eu vou andando a pé pela cidade bonita
O toque do afoxé e a força de onde vem
Ninguém explica, ela é bonita

Essas vocês cantaram, com certeza, maravilhosa Daniela Mercury, cantora, pesquisadora, babadeira. Afoxé, termo de origem iorubá, traduzido como “a fala que faz”, “o enunciado que faz acontecer”, chamado também de candomblé de rua. Olha que coisa mais linda, ninguém explica. Voz, instrumentos e movimento, gente junta.

Eu clamo Olodum, Pelourinho

Eu não sei vocês, mas pra mim, o Olodum é um das coisas mais lindas do universo. Não digo só da música. Digo do mundo mesmo, de tudo. Um movimento social, pra começar. Que bota música nas mãos, nos ouvidos, no coração das crianças. A batida é de outro planeta e daqui ao mesmo tempo. De longe já é foda. Quem já ouviu de perto e ainda tem alguma coisa viva dentro do coração sentiu as veias bombando. Paul Simon, Michael Jackson, Spike Lee, geral pirou e ainda vai parar. Patrimônio mundial da beleza.

Letras enormes que a galera decorou. Pique Black is King da Beyoncé, histórias sobre Egito, sobre Madagascar, Olodum contra o apartheid, onde quer que seja. Margareth Menezes, rainha, deusa, voz que movimenta as águas, chamando no Êeeeeê, Faraó. Margareth, que é uma estrela no mundo todo, aquela que um dia eu vi cantar pra Iemanjá e chorei, a que deixou David Byrne com a cara no chão diante de sua potência, e que aqui deveria ser mais reverenciada. Gente do céu, ela é demais. Marinêz, a bela, talentosa chiquíssima vocalista da banda Reflexu’s, cantando sua versão de Madagascar Olodum, super linda, que vendeu milhões de cópias. Marinêz, como muitas e muitos outros artistas dos 80/90, não receberam a grana que mereciam pelo sucesso que fizeram, pela alegria que levaram a milhões de pessoas. A concentração de renda é racista, um vírus destruidor mesmo, onde quer que esteja causa danos seríssimos.

Mas, já profetizou Chiclete, “a esperança é uma flecha de fogo que faz arder o meu coração”.

E esse coração, minha joia, como é que tá esse coração, conta pra mim. Tá dose, meu povo, quem tem juízo, quem tem amor, tá numa situação difícil, muita tristeza. Mas mais triste é quem tá por aí dizendo que tudo bem, passando por cima dos outros.

Moçambique, hey
Por minuto um homem vai morrer
Sem ter pão nem água pra beber
E lá vou eu

E lá vamos nós, recado da Bamdamel, é mel aliás que faz falta. Muito veneno na Babilônia. Gente invadindo terreiro pra separar criança de mãe. Gente atacando criança vítima da mais cruel violência. Espírito opaco, sangue que é puro amargor, palavra que faz mal. Gente que não sabe o que é Carnaval, tão até comemorando que pode ser adiado. Não adianta, meu bem, vai acontecer, mesmo que atrase, que mude a data. Como diz a música do Muzenza pro Marley, “adeus não, me diga até breve”. Esse é o reggae, proteja seu coração. Não com cimento, com vontade de viver. Alô paixão, alô doçura, sonhando em cada esquina, vai pegando as letras.

Nem o mar tem o brilho encantante
como o dos teus olhos
Minha pedra rara

Machuca memo, Ivete, eita Ivete, que loucura minha irmã. Essa é a única pedra que a gente quer no peito, diga aí. Agora até animei, vamo mais um pouco. Esquece o gatilho, não importa se você tem ou não tem agora. Bote essa semente aí nesse corpo, nessa ideia, bora plantar. Dá esse desejo de amor pro passarinho espalhar. É urgente, meu povo.

Eu vou nas asas
De um passarinho
Eu vou nos beijos
De um Beija-Flor

No tic tic tac
Do meu coração
Renascerá
No tic tic tac
Do meu coração
Renascerá

Uma das minhas músicas preferidas da vida inteira. É um dia de sol por dentro, brilha muito, Timbalada, mimar você, aquela loucura toda. Não dá pra esconder o que eu sinto por você, Ara. Aquelas que já emendam um hit no outro. Mas é isso, amor chama amor. Sei lá. Só sei que o Ara Ketu é bom demais e que inconscientemente a gente dança.

Então, gente boa, segure o reggae, não sossegue, se entregue a essa viagem louca. Se tiver Netflix veja o documentário, mas antes clique ali embaixo na listinha que eu fiz. Espera uma hora boa, ligue no talo e dê essa meditada. Como diz Saulo, se permita 50 centavos de som que sejy. Seguimos no bloco da solidariedade, dos bons encontros, no fortalecimento da luta preta, dos movimentos sociais, sim. Com axé. Axé que se você não acredita tem no mínimo que respeitar, a música ensina isso de uma forma muito bonita. Eu acredito. E, como a coluna é minha, peço passagem com respeito e agradeço a Exu pelos Carnavais que já foram, que ele abra caminho aos muitos que certamente virão.

Haja amor e fé no bloco.

Só você é um oferecimento

Um beijo,

V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

Ilustração: Marcela Scheid

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