E fora do baile, como está a moda?

O que as palavras-chave e looks da exposição do MET têm a dizer sobre a história do estilo nos Estados Unidos


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Em 1873, Mark Twain publicou um livro chamado Gilded Age, A Tale of Today. Algo como “a era dourada, um conto de hoje”, uma história atual. Gilded, no título, era uma piada com golden. Ou seja, dourado, mas basta o mais leve arranhão pra ver que não é ouro.

O livro, longe de ser um dos melhores do autor, era no entanto muito urgente. Falava já das enormes contradições de uma certa era de ouro anunciada pela expansão industrial nos Estados Unidos pós Guerra Civil. Ferrovias, prédios, fábricas, luxo e novos milionários de um lado. Corrupção, miséria, exploração e um dos períodos de maior desigualdade social na história do país do outro. Pois bem.

Gilded Glamour e White Tie foram o tema e o dress code escolhidos para o famoso baile do MET (Metropolitan Museum of Art) desse ano. O segundo de uma dupla pensada para falar sobre design estadunidense. Como se sabe, o baile arrecada fundos para o museu e está sempre ligado a uma exposição. Desta vez, a curadoria pensou em uma mostra em dois tempos. A primeira parte, de 2021, foi o léxico, um vocabulário de moda. A segunda, uma antologia histórica. Ambas, obviamente, poderiam ser organizada de muitas maneiras, o recorte dado vem de uma série de escolhas.

A escolha do período gilded, dizem, partiu de uma ligação direta do dourado da palavra com o glamour ostentado pela elite do período. Superficial, poderiam dizer. Mas moda é sobretudo sobre superfície, e, na linha de análise que sigo aqui, as superfícies são capazes de revelar tanto quanto as profundezas. De modo que qualquer coisa que tenha se planejado esconder aparece nesse registro das tentativas mais ou menos bem sucedidas de apagamento.

“Embora aquele tenha sido um tempo de extravagância para algumas elites, o trabalhador médio não tinha conforto. Negros norte-americanos enfrentavam uma pobreza extrema e condições muito duras nas fábricas”, escreveu uma repórter do Insider sobre o tema do baile. Do The New York Times a sites de celebridades, a escolha foi descrita como ” polêmica” e “insensível”. As reportagens citavam o enorme aumento da pobreza nos últimos anos nos EUA e os novos recordes históricos de desigualdade no país. O influenciador Brian Boy resumiu o espírito das críticas citando Maria Antonieta em seu Twitter: “let them eat cake”. Aquela anedota famosa. Ao ser informada de que os pobres não tinham pão, a rainha mandou que comessem bolo, um meme bem Europa antiga sobre alienação, política etc

O baile, no entanto, não é algo separado das atividades do The Costume Institute do MET. Embora Anna Wintour tenha uma cadeira e poder de decisão e veto, os temas gerais partem hoje da equipe do curador Andrew Bolton. Uma equipe grande, com especialistas etc O grupo é o porta-voz de suas escolhas, que são divulgadas em geral aos veículos interessados e publicadas nos canais de mídia próprios ligados ao museu e ao evento.

Patrocinadas pelo Instagram, as duas partes da mostra foram anunciadas como um esforço para rever certas percepções consolidadas sobre a moda americana, tirando-a do registro da praticidade e devolvendo a ela seu aspecto emocional. Isso seria feito, também, tratando temas mais políticos como gênero, raça e transparência/sustentabilidade.

Em retrospecto, gera certo constrangimento ver Bolton e Eva Chen, diretora de parcerias de moda do Instagram, falando sobre esse viés “inclusivo” (aspas minhas) no vídeo institucional da exposição pouco antes da inauguração da primeira fase. Para além das denúncias constantes de racismo e classismo nos algoritmos usados pela rede social, na edição de 2021 do baile integrantes do movimento Black Lives Matter foram duramente reprimidos pela polícia do lado de fora do prédio e impedidos de se manifestar.

Parte 1 – O Léxico

A ideia de compor um patchwork do estilo estadunidense é de fato muito interessante. Aproximar ideias de design, tecidos e efeitos similares feitos por pessoas diferentes, com propostas diferentes em diferentes tempos. Analisar os deslizamentos de um para outro.

Aliás isso explica o look de Rihanna e A$ap Rocky no ano passado. Eram complementares, a colcha e os retalhos. Ela toda de preto. Ele bem no registro artesanal da manta de patchwork, só que combinado à tecnologia de performance. O street nascido em NY muito bem representado em suas novas encarnações. Na mostra, porém, o hip-hop e sua estética são muito mal colocados apesar de sua importância gigantesca e fundamental para a renovação do estilo nos EUA (o look ERL de Rocky foi acrescentado à exposição agora em 2022, leia mais abaixo. Rihanna vestia Balenciaga).

Para cada look o time de curadoria atribuiu uma palavra-chave, que fica exposta acima da peça. Chama a atenção de cara o aspecto água-com-açúcar desse vocabulário. Palavras mais, digamos, contundentes, não foram usadas. Como se a moda se fizesse só de otimismo e aceitação. Isso, evidente, vem da ideia de hashtag mas também da limitação falsa e publicitária de que as emoções e associações menos fofas devem ser evitadas e escondidas. É tudo bem palatável.

Apesar das promessas de um novo olhar, é difícil de despetrificar certas visões de mundo. Então estão lá os looks dentro de caixas brancas iluminadas, cápsulas clean com um certo take sobre o que é o futuro. Para destacar as peças sem interferência, um fundo neutro, nada muito diferente do padrão geralmente usado para expos de moda.

Mas se o fundo aceita até certo ponto a ideia de neutralidade, uma palavra sobreposta a um look e a um significado escolhido pela curadoria a partir dos já determinados pelo dicionário, isso faz alguma coisa, monta uma construção, organiza uma transmissão.

Houve um esforço da curadoria para destacar o trabalho de jovens criadores negros, que de fato estão há tempos dando as cartas contra a mesmice nacional. E que palavras será que alguns dos mais destacados entre eles ganharam na curadoria?

Vejamos Christopher John Rogers, um dos nomes quentes do momento. Ele vestiu Sarah Jessica Parker no baile agora em 2022. Há alguma semelhança entre o look desse ano e outra de suas criações que está na exposição.

Segundo Rogers, o vestido de SJP foi inspirado nas criações de Elizabeth Hobbs Keckley, estilista da mulher de Lincoln e primeira mulher negra a criar roupas para a Casa Branca. Filha de uma mulher escravizada com o homem que a escravizou e estuprou, Elizabeth trabalhou para seu pai biológico desde os 4 anos de idade. Só soube de quem era filha depois de adulta. Escreveu suas memórias em um livro chamado Trinta Anos Escrava, Quatro Anos na Casa Branca.

Rogers propôs essa tarefa difícil, criar espaço para Elizabeth no contexto da festa e dos conflitos que ela envolve. Ele, um homem negro nascido na Luisiana, onde, segundo suas palavras em entrevista ao Refinery, nunca pôde muito ser ele mesmo.

Na expo, seu look é um super vestido de baile que num vídeo institucional o curador compara em “shape, cor e tamanho” às criações de Charles James na década de 1950. Faz essa aproximação, de fato possível.

Mas é preciso um apagão intenso para não ver que em ambos os vestidos de Rogers o elemento que destoa e que, ao destoar, cria, é a estampa xadrez. Xadrez e shape que estão, pasmem, em uma das mais conhecidas e icônicas criações de Elizabeth Hobbs Kecley.

Não se trata aqui de excluir James mas de situar a presença dita e evidente de Elizabeth. A palavra escolhida é: exuberante. Que eles definem como “qualidade da exuberância, ser desenfreadamente alegre e entusiasmado”. Roger tem mesmo o componente da alegria, mas não só. Seu olhar é muito mais complexo, e o dicionário, amplo. Um vestido de quilos fechado até o pescoço em tafetá xadrez pink é o look do qual estamos falando. Enfim, não vamos pegar no pé a esse ponto, mas também não vamos ignorar que se trata do curador de um museu multimilionário e do que se autointitula o “maior evento da moda”. Ok.

Telfar Clemens, criador que foca sua comunicação e criação na questão pós-gênero, é descrito no vídeo como alguém que diz em suas roupas: ” isso não é para você, é para todos”. No sentido de que as roupas seriam para qualquer pessoa que as queira/possa usar. A palavra escolhida: autodeterminação.

Engraçado, porque essa escolha ressoa com algo muito comum hoje em dia, algo que tem adquirido feições extremamente crueis. A saber, essa ideia do empreendedorismo de si mesmo nos mais variados níveis. Gênero no nosso mundo ainda mata e mata muito. Não porque as pessoas não saibam quem elas desejam ser e não se autodeterminem o suficiente, mas porque toda autodeterminação passa sempre e necessariamente pelo social, e o social, inclusive e de formas específicas no recorte dos EUA, tem problemas seríssimos com o gênero e suas relações derivadas. O pós-gênero, em última instância, fala das possibilidades pensadas junto com o direito de não se autodeterminar nesse terreno e em tantos outros. Fala da possibilidade de dar outros contornos a isso que chamamos de uma pessoa, de indentidades, de total.

Agora o viés do trabalho. Heron Preston, um cara extraordinário, que tem seu trabalho autoral e participações em times como os da Nike e de Kanye West. O look escolhido foi feito a partir de peças de brechó, uniformes das equipes de limpeza pública de NY. Fala de reciclagem, mas especialmente da importância dos trabalhadores na cidade.

A palavra selecionada: responsabilidade. Sem dúvida a mais séria de toda a mostra. Quem puder entre no site e veja onde estão as palavras, digamos, mais suaves e sonhadoras, mais emocionais. Mas nem vamos tão longe, vou citar duas palavras mais ligadas a espírito de cooperação, que tem a ver com trabalho. Associação, no sentido de interesses em comum, é um uniforme da Ivy League versão Tommy. Não uma fraternidade estilo Beyoncé no Beychella, aquele look herdeiro de Harvard mesmo. Já comunhão é pra um look estilo cheerleader, Perry Ellis. Mas responsabilidade é pra quem limpa a sujeira. O trabalhador de base se responsabiliza enquanto outros podem se divertir e, sei lá, sonhar.

O look escolhido para o icônico, icônico, icônico e brilhante Dapper Dan é um casaco de couro estilo trench estampado com a logomarca Vuitton. A legenda explica que ao contrário dos demais a peça foi incluída porque mostrava não a transformação de materiais ou silhuetas, mas pelo “reuso de um conceito”. O conceito de status. Ou seja, na letra miúda está dada a diferença e importância do que fez Dapper Dan em seu concorrido ateliê no Harlem. Eu reorganizaria toda a mostra a partir disso.

Dan ganhou realness, segundo o MET, a “capacidade de ser real”. Pararam por aí, o que parece uma falta de comprometimento, de coragem. Acho que faltou ver um Paris is Burning, um Pose, um Ru Paul’s Drag Race que seja pra melhorar essa definição com , nas palavras do curador, mais emoção. Realness não pode ser desconectado do contexto dos balls, das drags. Tem a ver com conceitos difíceis como passabilidade, com ser capaz de se misturar. Como pessoa pobre, como pessoa trans. Mas como “passar” se o passável é branco e você é negro? Daí muita, mas muita coisa foi pensada e criada. No fim a palavra é uma boa escolha, mas o texto curatorial fez o favor de usá-la para em seguida achatá-la, tirar dela seu poder.

E a grande palavra dos EUA, a que o lado oficial do país mais repete? Liberdade. Ficou para o wrap dress de Diane Von Furstenberg, aquele que serve fácil porque é todo aberto e se amarra conforme o corpo. Mas essa não é uma visão mega utilitária de liberdade? Não era pra ser emocional? Acho que falta consistência e ousadia ao conjunto, não pelo viés dos criadores, mas pelo dos curadores. Não à toa, no baile, a estátua da liberdade até mudou de look num rápido piscar de olhos, mas continua tendo a cara da Blake Lively.

A parte do léxico da mostra ganhou 70 novos looks e 19 novas palavras neste ano. Elas não estão no material oficial de mídia ainda e não foram incluídas nessa análise. Algumas peças atingiram seu tempo máximo de exposição e tiveram de ser recolhidas para que não houvesse danos. Entre as novidades estão a capa patchwork da ERL, usada por Rocky, que agora abre a exposição. E um novo vestido de Virgil Abloh, uma peça comissionada pelo MET e que foi usada para fechar o desfile de homenagem da Off White depois de sua morte.

Parte 2 – A antologia histórica

Em outra parte do MET, conhecida como Period Rooms, na ala americana, fica a parte dois da exposição. Ainda não tive acesso a vídeos com os tours completos de cada sala, mas há fotos e informações do próprio museu.

Os Period Rooms são exemplos de interiores históricos, retirados inteiros de construções ou recriados. Os da “american wing” são de propriedades nos Estados Unidos. Cineastas como Martin Scorcese, Sofia Coppola, Tom Ford e Regina King estão entre os nove convocados para criar cenas com manequins dentro de cada ambiente, relacionando-as com roupas e designers específicos.

Está super divertida a recriação da Batalha de Versalhes pelo designer-diretor Tom Ford. A guerra fashionista de 1973 foi um evento beneficente para reformar o palácio de Luís XIV, no qual designers americanos “enfrentaram” colegas franceses numa histórica batalha de looks. É uma das piadas internas mais queridas pelos fashionistas.

Outros encontros são menos animados por conta das circunstâncias, mas não menos instigantes e criativos. Regina King, por exemplo, levou trabalho de Fannie Criss Payne para o Richmond Room, saído de uma casa rica da Virginia. Fannie, embora quase nunca creditada, costurou para a elite local e assinava seus vestidos por dentro com uma faixa com seu nome.

A designer, uma mulher negra que foi escravizada, ocupará o ambiente de uma casa que foi de senhores de escravos. King, que divide a curadoria do baile de 2022 e ganhou um Oscar de atriz coadjuvante em 2019, não foi à festa por conta de uma recente e triste perda familiar. Ela disse que sua proposta é colocar Fannie em um lugar de conforto, como se aquele fosse seu ateliê, um lugar de reconhecimento de seu talento.

Anne Lowe, que fez o vestido de noiva de Jackie Kennedy e foi invisibilizada por décadas, estará no Revival Renaissance room pelas mãos de Julie Dash. Chama atenção que as convidadas negras tenham se esforçado para destacar designers negras cujo trabalho foi esquecido. Os brancos não. Curadoria?

O que chama a atenção é mesmo a dificuldade real de fazer certas operações num museu. Agora os museus do mundo se declaram todos eles inclusivos, decoloniais. Sob protestos e desmentidos de artistas de todos os cantos. Falar é mais fácil do que de fato botar em curso algo desse tipo.

Por exemplo, os rooms do MET não mostram a vida de gente pobre. Há essa ideia de que pobreza em museu só se for muito antiga. Ou deslocada, tipo peças soltas, utensílios de trabalhadores. A Casa Grande aparece em seu interior muitas vezes lindo e luxuoso. A senzala não. Geraria que tipo de mal estar a presença desses interiores? Que dificuldades isso colocaria? Como isso pode ser endereçado?

O site do MET é extremamente bem feito e não esconde informações sobre cada local. Em cada room há o menu “people”, onde se lê sobre os antigos donos, muitos deles senhores de escravos. A gilded age, aliás, dos Astors e afins, foi turbinada à escravidão e ao que veio depois dela, com mão-de-obra de ex-escravizados explorados. Acuados pelas leis brutais de segregação racial. Uma violência que aparece logo.

Ali é possível inclusive aprender muito sobre a roupa dos escravizados. Sem dúvida os relatos mais detalhados sobre o que vestiam estão não em imagens, não tão numerosas, mas em anúncios de jornal com descrições absolutamente minuciosas seguidas de recompensa para quem encontrasse os fugitivos. Eram anúncios oferecendo dinheiro para quem achasse os que fugiram. As roupas eram um modo de tentar reconhecê-los.

Há que se falar também que muitos senhores compravam panos e obrigavam as pessoas escravizadas a costurar suas próprias roupas. Em geral as pessoas que trabalhavam em plantações e fora da rotina mais íntima dos brancos. Normalmente o tecido era de uma cor só. Ao que, sobretudo as mulheres, acrescentavam retalhos achados ou conseguidos, contas, pigmentos naturais ou o que pudessem ganhar para dar um toque pessoal, um ponto de dignidade, de presença.

Coisas como essa não são moda estabelecida, mas estão nas bases da indumentária do país. Assim como tudo o que veio dos indígenas dizimados. Isso precisa ser visto, olhado, pensado. Não somente como lamento e reconhecimento histórico necessário, não como token ou apenas fetiche, mas como potencial de transformação. Inclusão não é essa palavra tola e vazia da publicidade, é uma chance de cura pela criação. Não se inclui a partir de uma decisão de elite, não se faz com agora eu deixo, agora eu te convido pra estar aqui no meu mundinho. Incluir implica em desfazer, desmanchar e reorganizar a partir de novas bases comuns.

Os EUA foram muito melhores em reconhecer o trabalho dos imigrantes europeus do que de seus povos originários e dos afro-americanos. Hollywood é uma das provas disso. A moda também. Embora haja, e tem havido, muitos avanços em ambos, há muito o que fazer.

E, para realmente levar à moda o que ela precisa para fazer esse trabalho de redescobrimento, é incontornável ampliar horizontes, dissolver certezas e ser capaz de abordar as cristalizações racistas não de palavras específicas mas dos arranjos desse léxico, os que parecem “neutros”.

PS: Quando o MET vai fazer uma exposição reversa a partir da leitura criativa, disruptiva e nada menos do que genial das roupas da elite que o hip-hop fez a partir de NY e muito além? Taí a Rihanna que não deixa dúvida do poder desse babado

PS2: Virgil Abloh dizia que o streetwear morreu, o que tem um certo sentido. Eu diria que ele se transformou no que hoje chamamos de alta-moda, como mostrou a Off-White, como mostra a Balenciaga, como mostrou Virgil na Vuitton. Como têm mostrado em maior ou menor grau todas as maiores grifes do mundo. A palavra da Off-White na mostra, antes do revamp desse ano, foi reciprocidade. Já passou da hora de repensar os termos dessa troca. O que a rua ganha?

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