Borgen pergunta: o que quer o feminismo hoje?
Série dinamarquesa expõe fragilidades e dilemas da luta feminista e das mulheres que chegam ao poder.
Apesar das últimas notícias relacionadas ao questionável aumento de preço de uma das mais acessadas redes de streaming, a Netflix, afirmo que é necessário, sobretudo para nós, mulheres, refletir sobre o status atual da luta feminista, tendo como pano de fundo a série dinamarquesa Borgen.
Adam Price, curiosamente, é o homem por trás da pergunta que dança com certo cinismo nas entrelinhas de cada capítulo de Borgen (que significa “castelo”, em dinamarquês, ou como é popularmente chamado o suntuoso Palácio de Christiansborg, com sua arquitetura barroca/neoclássica e neobarroca, onde se localizam os três poderes da política dinamarquesa), um dos melhores dramas políticos de todos os tempos: o que quer o feminismo hoje? Ou ainda, qual é a luta do feminismo atualmente? Porque, se colocarmos uma lupa sobre a luta feminista, pelo menos no Brasil de 2021, a apatia é alarmante.
Ainda não entendemos os conceitos básicos, como sororidade e empoderamento, por exemplo, e estamos no centro de um looping de discussões vazias, que deixam claro que também não conseguimos enxergar o machismo como estrutura, haja vista as mobilizações em torno de um caso famoso de violência doméstica, cuja única solução proposta foi focada no número de seguidores que o agressor ganhava. Evidente que não podemos ignorar as mobilizações que ocorrem fora da mira das mídias, hegemônicas e (semi) espontâneas, como as redes sociais. Mas as iniciativas sérias definitivamente se enfraquecem em meio a gritos de “Pega ele!”.
No âmbito estritamente do fazer político a coisa é ainda mais decepcionante. Sequer cogitamos disputar a terceira via do poder institucional e festejamos efusivas o posto de “vice”, que está longe de ser um avanço, pois é apenas a reprodução política do modelo familiar patriarcal: homem em primeiro e mulher como suporte ou parceria.
Ao que parece, estamos contentes com a suposta representatividade corporativa de um pequeno nicho de mulheres que ocupam espaços de poder e decisão no ambiente corporativo privado e nos apresentam um pseudo poder com verniz de meritocracia, no melhor estilo self-made woman ou “você também pode”.
Mas vamos supor que nossos avanços estão na mesma proporção dos países europeus ou até mesmo latinos (vide Argentina!) e que conseguiremos tomar o poder institucional via eleições em 2022. Daí cabe a provocação de Adam Price, corporificada pela fictícia primeira-ministra, cujo caminho de ascensão é menos interessante do que a sua permanência no poder parlamentar.
Em três temporadas de dez episódios cada, acompanhamos a trajetória de Birgitte Nyborg (vivida pela excelente Sidse Babett Knudsen), a líder idealista do Partido dos Moderados e a primeira mulher dinamarquesa a ser alçada ao posto de primeira-ministra da monarquia parlamentarista dinamarquesa.
Uma curiosidade interessante é que, um ano após a estréia da série, em 2010, a Dinamarca teve, de fato, a primeira mulher a ocupar o posto de primeira-ministra: a líder do Partido Social Democrata, Helle Thorning-Schmidt. Sim, a série não é nova e também é curioso que, em pleno 2020 pandêmico, a Netflix tenha tomado a sábia decisão de não só incorporá-la na sua quase desinteressante grade de programação, como também bancar uma quarta temporada, que já foi anunciada para 2022.
Apesar de regimes políticos distintos, o fazer político em Borgen, quando confrontado com o jeitinho brasileiro, nos parece, vergonhosamente, uma utopia. Não sei até que ponto isso é real, mas a chefe de Estado na Dinamarca, de acordo com a série, vai ao trabalho de bicicleta, não tem empregada doméstica e, apesar de ter um caráter amadurecido, vive em meio a crises quase existenciais quando seus valores políticos são confrontados com a realidade nem sempre inofensiva da real democracia dinamarquesa. Birgitte recua e faz verdadeiros malabarismos para mediar interesses seus, do seu partido, de seus pares parlamentares e do seu eleitorado.
Mas o ponto forte da série é que, ainda que pareça despretensioso, o diretor Adam Price usa as fragilidades do feminismo para confrontar o status da luta das mulheres na atualidade. Assim como a diretora do filme francês Eu não sou um homem fácil, Eléonore Pourriat, Price traz uma pergunta fundamental para as mulheres que se posicionam como feministas, atuantes ou não: como podem as mulheres conviverem e sobreviverem depois de tomarem o centro do poder masculino, se não transformarem o cenário e a ideologia patriarcal enraizados no senso comum?
Birgitte é uma personagem, mas poderia ser qualquer uma de nós, já que uma das metas para atingir a equidade é a justa distribuição de poder. Mas se não estamos confrontando esse modelo de poder, não poderemos muito, ainda que ele esteja conosco. Isso fica muito evidente já de início, quando Birgitte assume o posto e configura seu governo com maioria masculina, inclusive os cargos mais próximos, tanto o de conselheiro pessoal (Bent Sejrø, vivido por Lars Knutzon), como o de assessor de imprensa (Kasper Juul, vivido por Pilou Asbæk).
Apesar de muito segura e correta, Nyborg em alguns momentos deixa transparecer, na sua relação com outras mulheres, que a teoria freireana é tristemente real: o hospedeiro do opressor está em nós, mulheres, e se não levarmos isso a sério, nenhuma luta será bem-sucedida.
Quando Nyborg vê em suas mãos a oportunidade de abrir espaço para outras mulheres, é confrontada pelo sistema que, com frequência, trabalha na base da tokenização ou da figura única. Ou seja, mudar o protagonismo sem alterar o cenário faz com que o protagonista atue apenas como coadjuvante.
Apesar de muito segura e correta, Nyborg em alguns momentos deixa transparecer, na sua relação com outras mulheres, que a teoria freireana é tristemente real: o hospedeiro do opressor está em nós, mulheres, e se não levarmos isso a sério, nenhuma luta será bem-sucedida.
Mas o ponto mais agudo do confronto entre a euforia feminista por um suposto avanço e a realidade ainda completamente dominada e pautada pela masculinidade patriarcal se dá no enfoque do núcleo familiar da primeira-ministra. Ela vê sua vida pessoal virar do avesso à medida que se consolida como grande liderança política, mesmo com todas as conspirações machistas dos colegas do parlamento e do partido objetivando a sua queda.
Num primeiro momento, o marido parece muito evoluído e é peça central para a ascensão de Nyborg ao poder, dando conta da vida doméstica de maneira desprendida e orgulhosa dos feitos da sua esposa.
Mas, no decorrer da trama, as coisas se deterioram, com o dedicado marido Phillip sucumbindo aos apelos do falo (como metáfora de poder, como cunhou a psicanálise lacaniana) de Birgitte. Isso denuncia que homens, por mais que se esforcem, ainda têm um longo caminho para dissociar a ideia de poder atrelada à imagem masculina. Isso também significa que o lugar das maiores batalhas feministas por emancipação é dentro do nosso próprio lar, não por acaso, o espaço onde a violência se consolida e nos ameaça com maior frequência e intensidade, como atestam os índices de violência doméstica.
Em um episódio emblemático, a primeira-ministra se sai excepcionalmente bem em uma importante negociação, que envolve duas masculinidades pautadas pelos valores patriarcais, graças a qualidades que costumam ser desprezadas e associadas à ideia de fragilidade feminina, tais como humildade, ponderação e afetividade. Em casa, no entanto, ela se depara com uma crise de proporções desastrosas, que se inicia com a “guerra fria” entre o falo de Birgitte e o falo de Phillip, o marido em crise existencial com sua masculinidade.
O lugar das maiores batalhas feministas por emancipação é dentro do nosso próprio lar, não por acaso, o espaço onde a violência se consolida e nos ameaça com maior frequência e intensidade.
Em muitos momentos, a tendência é criticar a atitude de Phillip com o argumento de que, se fosse uma mulher, se sacrificaria pelo bem-estar da família e o sucesso profissional do marido. Mas a pegadinha aqui é: por que ainda acreditamos que temos que suportar tudo para manter um relacionamento?
Borgen diz claramente através da relação em decomposição de Phillip e Birgitte que o patriarcado há muito deixou de ser somente objetivo para se tornar também subjetivo.
O feminismo não pode pleitear uma revolução que não passe pela reflexão profunda sobre a ideia hierárquica de poder, que divide a sociedade entre “nós e eles”. Tampouco pode se deixar levar por uma ideia perigosa de igualdade ou equidade que não confronte as dinâmicas sociopolíticas que ditam as regras opressoras.
O poder está nu? Não, definitivamente, não está. Ele usa terno cinza ou azul marinho, gravatas sóbrias. Ele se comporta com polidez na aparência para esconder as trapaças e jogos escusos, ele caminha inescrupuloso e narcisista, em um ambiente que sabe que é seu, porque foi ele mesmo, o poder, que o criou. Ou seja, o poder é masculino, em gênero, sexo, ideias, articulações, consequências e ressonâncias. Mas as mulheres estão aí, “à cata” dele, perseguindo uma divisão ou tomada que tem sido articulada pelo feminismo há décadas.
Para muitas mulheres, o entendimento de que esta atmosfera austera e pouco comprometida com a honestidade das ações ou com a compatibilidade entre discurso e prática não cabe em um mundo transformado ainda não amadureceu. Mas Borgen deixa um alerta importantíssimo para todas nós que ainda menosprezamos o empoderamento como condição primordial para reverter as perdas que temos sofridos há séculos:
Não há chances para o triunfo da transformação social proposta e articulada por mulheres, se outras possibilidades de exercício de poder, menos viciadas, mais íntegras e participativas, não forem criadas simultaneamente à tomada do poder sociopolítico.
Para isso, é preciso coragem e entendimento profundo das estruturas que foram construídas no passado e ainda ditam as regras do nosso presente e, possivelmente, futuro.
Essa é a pedra no sapato de Birgitte Nyborg e de todas as mulheres em todas as partes do mundo.
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