Primeiro foi a água de uma enchente. Depois o fogo. Mas, antes de tudo, o descaso. Não um descaso qualquer, um do tipo sórdido e anunciado, o tipo mais covarde. Aquele que primeiro enfraquece, depois tira todas as defesas, destrói as ferramentas, os recursos, promove a insegurança, certifica-se da vulnerabilidade e então espera a primeira faísca pra chamar de acaso ou de qualquer outra mentira.
Em chamas, com seus antigos cuidadores demitidos ou afastados, o galpão da Cinemateca Brasileira só pôde contar com ajuda de estranhos: os bombeiros, que fizeram o possível onde seria necessário algo como voltar no tempo.
Um milagre.
Entre filmes e muito material histórico da produção nacional, imagens e registros de um tempo que jamais será novamente, muito se perdeu. Uma perda assim meio parente da extinção, definitiva do ponto de vista material. Empobrecidos, inconformados, ficamos com a obrigação e a vontade de falar, de passar os dedos e os olhos pelas marcas do que foi apagado, de construir ali algo de outro que crie memória.
Vida para além do “aqui jaz”.
Leio que estava no galpão queimado parte do acervo de Glauber Rocha, não os rolos de filme, mas desenhos e anotações, cartazes originais de suas produções, obras que ele colecionava e outros itens talvez já danificados pela enchente. A família do cineasta tentou reaver as caixas, saber do estrago, mas acabou sem receber nem mesmo notícias confiáveis.
Apenas o ódio oficial como herança.
Museus, livros, acervos, registros, impressionante como o fogo tem destruído coisas nos últimos anos. Uma queimada cultural aos moldes das que vêm consumindo florestas, pessoas, futuros.
Corro o dedo pelos flashes da rede mais próxima, chamas expostas em detalhes, somos populares à distância, atônitos confinados, testemunhas oculares sem calor. Alguém escreve sobre o frio daquela noite na cidade, fazendo piada tensa sobre o governo e o climinha europeu à moda dos anos 1930. Outro diz que, em termos de moda, abril de 1945 foi insuperável quando pensamos no período.
Humor contra o terror. Porque dói.
É certo que nem a guerra nem a moda se transformam do dia para a noite e que, como disse Glauber em uma frase inqueimável, inafogável, “sem linguagem nova não há realidade nova”.
Um processo.
Tentam a todo custo, esses e tantos outros antes deles, destruir a inspiração que nos encoraja ao novo, impedir o ponto de inflexão que botará seus projetos de mundo de cabeça pra baixo. Por isso trabalham apagando memórias de todas as maneiras, e vêm armados até os dentes com uma burocracia nuclear, exterminadora. Somos o país do luto, cansado de chorar.
Mas eles não param.
Dou o play em Terra em Transe no You Tube, alguém postou o filme com legendas em francês. Repito amarga: “climinha europeu”. O travelling de abertura mostra o mar de Eldorado e um canto do candomblé para Ewá, linda orixá também chamada de senhora das possibilidades.
O intelectual bunda-mole Paulo, interpretado por Jardel Filho, perdeu das possibilidades as melhores e se entrega a uma espécie de sacrifício inútil. Faz poesia para as câmeras no deserto, sozinho, vazio. Poderia tão mais se tivesse se juntado ao povo em vez de tapar bocas e abrir os ouvidos a milionários, brutamontes, covardes e políticos fascistas. Um burguês triste em uma trama sem herói.
Imagino.
Durante o incêndio uma nota crepita e tira do papel a carne do escrito. O fogo lhe arranca um grito, a frase arrependida de Paulo: “não se muda a História com lágrimas”.
Repito.
Choraremos mesmo assim. Porque também é preciso. Mas se vamos lutar contra fogo e coisas muito piores, isso não há de bastar. Uma câmera, um cartaz na rua, na mão; uma voz, uma ideia na cabeça: uni-vos!
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