Todo mundo precisa de terapia?

Sobre martelinhos, machadinhas e com quantas hashtags se paga um terapeuta.


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Ilustração: Mariana Baptista



No meio das discussões sobre reality shows, séries, política, beleza, consumo, paira uma estranha certeza geralmente articulada da seguinte forma: “precisa resolver na terapia”. Como será que funciona esse incrível martelinho de ouro psíquico que supostamente tudo pode consertar?

Terapia para lidar com sofrimentos psíquicos acompanhados ou não de sintomas físicos mais importantes, terapia para lidar com os relacionamentos, terapia para se dar melhor com os filhos, terapia para lidar com as exigências do trabalho, com o sofrimento e todos os males do mundo etc. Lidar como, será? Podemos trocar lidar por curar, arrumar, adaptar, qual é o lance em cada caso?

Em primeiro lugar, é preciso pensar que há um balaio de gato nisso que se chama terapia. Um psicólogo comportamental não está na mesma página de um psicólogo social, de um psicanalista ou de um arteterapeuta. Isso sem considerar a seara das terapias alternativas e as novas modinhas que aparecem a cada mês. Estamos tratando com conceitos, teorias e clínicas diferentes, ao menos se levamos a coisa pelo menos um pouco a sério.

E se você quer levar suas questões pessoais para alguém, tem direito de saber do que se trata nesse encontro. Não precisa e nem deve simplesmente obedecer uma demanda de mercado. Aliás, que saúde mental se organize como demanda de mercado é bem a cara da nossa situação social, ou seja, da ordem do desesperador.

Uma análise da circulação midiática desse assunto mostra que é assim que ele tem sido tratado, apesar dos bonitos e nada vãos esforços de muitos profissionais. Não se trata aqui de dizer que não se deve falar de saúde mental no Youtube ou onde quer que seja, evidentemente. Aliás, há excelentes conteúdos para serem vistos, ouvidos. E muita bobagem marqueteira também, muito influencer da área flertando com o posto de guru. Só que é preciso levantar um ponto mais grave: a terapia entendida como ponto de encaixe, como etapismo (agora que fiz/faço terapia posso ter uma relação saudável etc) e, em grande escala, como uma espécie de atestado, de carimbo de virtude.

Nesse sentido vale pensar na expressão corrente “a terapia tá paga” e suas variações, usada inclusive por profissionais. Paga no sentido de cumprir um roteiro, jargão emprestado das academias de ginástica, dos treinos, mas que não deixa de conversar com algo de uma troca que remete a dinheiro.

Uma troca que dá vantagem social. Por um lado é positivo, mostra que algo do estigma de procurar ajuda para sofrimentos psíquicos mudou. Antes era algo a se esconder, agora pega bem mostrar. Mas é bom verificar como mudou, que significados sociais se associam a essa ideia de performance e status.

Muita gente chega enganada aos consultórios esperando receber um plano de vida e se desinteressa ao se dar conta do que se exige delas. Dinheiro também, mas tempo, implicação, disposição para mexer em coisas difíceis de serem mexidas, para iniciar uma relação de parceria com aquele profissional. As variáveis são muitas, as garantias são poucas (falo disso mais à frente).

Há, claro, sempre lugares onde a entrega é totalmente articulada com as regras de consumo. Nomear melhor essa história de terapia e saber que não existe essa unidade se faz necessário para colocar as coisas no lugar que elas ocupam.

Muita gente chega enganada aos consultórios esperando receber um plano de vida e se desinteressa ao se dar conta do que se exige delas. Dinheiro também, mas tempo, implicação, disposição para mexer em coisas difíceis de serem mexidas.

Um exemplo importante. Ganhou força nos últimos meses uma discussão, muito pertinente, sobre a formação de psicanalistas. Há uma proposta de criar uma faculdade de Psicanálise, refutada com uma série de argumentos. Alguns ótimos, outros nem tanto.

Mas o ponto não é exatamente esse. A questão vai além. E tensiona os próprios contornos da Psicanálise, aquilo que de alguma forma dá conta do que ela é.

Há grupos, nos quais me incluo, que defendem a democratização e a popularização da Psicanálise. O que não quer dizer que acreditamos que todos precisem de análise, mas que defendemos o direito de que todos aqueles que desejarem uma análise, tenham acesso a uma. Só aí há uma penca de questionamentos possíveis. Vou elencar alguns poucos.

Isso pede que haja analistas disponíveis. O que em grande parte dos casos implica em atender sem receber pagamento. Mas não na lógica da caridade. Há grupos se articulando a movimentos sociais, por exemplo. E nesse caso é interessante pensar e estudar como se organizam os fluxos, como a partir de um movimento alguém chega a pedir uma análise. São caminhos que em geral fogem da lógica de “a terapia tá paga”, do status e da caridade. E que de alguma forma podem se relacionar a vínculos pensados a partir de luta por direitos, de bem-estar social etc.

Há grupos de formação de psicanalistas das e nas periferias. Há um grande esforço contra o elitismo não só do acesso para quem busca uma análise, mas também na formação. As caras de quem atende e pensa a Psicanálise também estão mudando, e essa mudança não é feita sem uma série de tensões.

Psicanalista precisa estudar, fazer uma formação teórica, precisa fazer análise, precisa estar sempre em supervisão: digamos que esse é o combo básico. Quem nos autoriza não é um diploma superior, embora as escolas de Psicanálise, seja por ciclos, passes ou o que for, acabem fazendo um pouco esse controle. O bonito disso é que embora o processo do consultório seja algo solitário, ele só é possível dentro de uma comunidade de pares. Só que uma comunidade não é a mesma coisa que um clube ou uma associação.

Democratizar a Psicanálise não é algo neutro ou que pode ser empreendido com neutralidade, é algo todo atravessado pela ideologia. Daí as discussões pegarem fogo, porque estão em jogo lugares de poder. Por exemplo, os maiores teóricos da Psicanálise deixaram claro que a exigência inicial de que um psicanalista fosse médico obrigatoriamente não se sustentava. Assim como nada sustenta que um psicanalista seja obrigatoriamente psicólogo. Embora alguns dos melhores psicanalistas o sejam. Mas se você quiser, por exemplo, se candidatar à maioria das vagas públicas na saúde mental como psicanalista, só consegue se for psicólogo ou médico. Ou seja, temos uma questão aí.

Se pensarmos em um projeto popular de saúde mental, um que envolva o Estado e mais pessoal disponível, é muito justo que haja alguma forma de validar a formação dos psicanalistas em geral. Como fazer isso é uma questão em aberto.

A formação teórica é importantíssima. A Psicanálise tem uma história, um processo de desenvolvimento. Esse processo obviamente está em pleno curso, está vivo. Há sim muita resistência a novas contribuições epistemológicas, e isso faz parte do tensionamento. O que não é igual a obedecer uma espécie de lei não escrita que proíbe toda e qualquer mudança, que desmerece o que é feito aqui.

De qualquer forma, é preciso que haja rigor teórico nessa formação, é extremamente necessário sim ler os textos clássicos, os textos formadores, boa parte deles é nada menos que genial, brilhante mesmo. Inclusive porque seguem válidos, relevantes aqui e agora. E em respeito a essa construção também se faz importante ler o que vem de mudança, o que faz o baile seguir. Assim como é essencial acompanhar o que se passa na prática clínica, ouvir as notícias do front, trocar, escrever, discutir, movimentar.

Há ganhos fantásticos, por exemplo, com a inclusão do racismo nas discussões psicanalíticas, algo que já tem sua própria tradição com os escritos de Fanon, Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza e tantos outros nomes que partiram também eles de conceitos freudianos, lacanianos. Há nessas obras continuidade e aplicação, mas também críticas, revisões, esforços, quedas, quebras e novas construções. Não um eterno e estéril apontar de dedos nem pura reverência.

No campo dos estudos de gênero, de uma outra forma, as mudanças também estão em ebulição nessa sentido. Ou seja, a obsessão pelo binômio descarte e manutenção, quando fechada sobre si mesma, é uma besteira, beco sem saída. O foco necessário e criativo parece estar na transformação.

Vale reforçar ainda sobre a formação, que ela não deveria ser obtida somente por aqueles que têm mais de um salário mínimo por mês para investir, de saída. Isso não é detalhe, está no cerne da desigualdade. A formação é constante, permanente, precisa ser sustentável inclusive nesse sentido.

Voltando ao que citei lá em cima sobre garantias. Vou restringir o que vou dizer em seguida à Psicanálise, porque é que estudo, pratico e acompanho com mais afinco. Posso estar errada, mas me parece que a garantia que analistas podem dar é na realidade um compromisso ético, responsável. De se dedicar à formação, à troca constante com seus pares, de não se fechar em clubinhos nem dar as costas às questões de seu tempo, de não tiranizar. Um compromisso amplo com a escuta.

Para isso precisamos considerar, não só, mas também coisas como implicações políticas e condições materiais.

Garantia de resolver a vida e, sei lá, impedir que você se apaixone de novo por alguém que te trata feito lixo ou não quer nada com você, infelizmente, não tem. Mas é possível iniciar um trabalho que parta, por exemplo, de uma questão como essa.

Não dar garantia não quer dizer que estamos falando de algo que não pode ser demonstrado. Mais de um século de clínica e casos relatados estão aí para dar conta disso. Formalizações teóricas também. Isso não supõe um mundo de certezas fixas imutáveis, mas que há sim bases teóricas e práticas desenvolvidas, e que as contradições internas estão organizadas, digamos, em um diálogo em movimento.

Garantia de resolver a vida e, sei lá, impedir que você se apaixone de novo por alguém que te trata feito lixo ou não quer nada com você, infelizmente, não tem. Mas é possível iniciar um trabalho que parta, por exemplo, de uma questão como essa.

Quando disserem pra você que uma análise ou outra terapia é “só uma conversa” desconfie. Uma conversa às vezes ajuda demais, precisamos urgente de mais conversa, de solidariedade. Mas se eu digo terapia ou Psicanálise é porque quero dizer algo de mais específico.

Vou contar um causo.

Minha avó era benzedeira. Das boas, contam na família que por onde ela ia, lá no interior de Minas, faziam fila. Certa vez, chegou à casa dela uma criança que estava demorando para andar. Havia certa constatação de que ela não tinha problemas motores, perninhas e braços firmes etc. A mãe disse à minha avó que achava que o menino tinha medo de andar. Daí lá foram os três pra um pequeno curral da cidade, e seguindo o rumo do cocho ia minha avó com a machadinha falando em forma ritmada as palavras dela junto com as da mãe, acompanhando com o movimento de cortar “o medo de andar”. O que ela ia variando com “o medo de Fulano andar”. Vejam que para além da ação, do ritmo e do instrumento, essa reorganização das palavras dentro da reza cria uma confusão que levanta a questão sobre de quem é o medo, do menino, da mãe, de outra pessoa etc. Na dúvida é corte pra geral, a machadinha ia cantando numa boa.

Deu alguns dias o menino andou. A mãe voltou feliz etc. Não vou discutir aqui o porquê. Meu ponto é que minha avó era benzedeira, e estava claro entre as duas do que se tratava. As benzedeiras como ela têm um lugar de sabedoria de ervas, de palavras e de acolhimento amplamente registrado no Brasil. São maravilhosas e fizeram, onde podem ainda fazem, muito por suas comunidades, em regra com grande influência das culturas africanas e dos povos indígenas brasileiros. Não preciso dizer, nem mesmo por analogia, que minha avó era terapeuta ou analista, como se benzedeira fosse algo menor. Benzedeira é outra coisa com sua própria tradição, suas próprias questões.

E nada impede que psicanalistas aprendam com elas e vice-versa. Se Lacan se aproximou da antropologia, dos artistas surrealistas, se foi estudar ideogramas chineses e trouxe tudo para a construção da Psicanálise, não faz sentido que nós não possamos olhar para o tupi, para as benzedeiras, para os itãs e mitos iorubás. Não estou dizendo que necessariamente sairá daí alguma grande renovação, mas parece um dever investigar, se interessar, viabilizar pesquisas e articulações nesse sentido. Criar envolvimento com a escuta desse país, como dizia Lélia, em sua amefricanidade.

Infelizmente, minha avó morreu antes de eu nascer, muito jovem, com doença de chagas. Suas rezas e inspiração, porém, me chegaram por meio da minha mãe e tias. E antes que alguém se atreva a apelar para o clichê do povo “supersticioso”, vale dizer que ela contou com sua família e comunidade para ir à capital com todas as dificuldades para buscar tratamento médico por diversas vezes. O ponto é que governos e categorias que se aliam no abandono de certos pontos do mapa e dos povos das margens, com tudo que isso pode significar, são coisa que vem de longe.

O lugar do cuidado é um lugar de responsabilidade e de encontro em muitos sentidos. Um lugar de abertura de possibilidades e de transformações. Corporativismo, defesa de privilégios, elitismo e lógica de mercado não combinam com isso, obviamente. Mas, enfim, aqui e ali tem sempre gente que confunde grife e estilo.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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