Sobre uma pseudoverdade que faz sucesso no instagram

E por que duvidar dela pode ser uma boa ideia.


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“Para ficar bem com alguém você precisa primeiro ficar bem sozinha/o/e”. Certeza que essa você já leu, disse, repetiu, ouviu ou escreveu por aí. Eu mesma já devo ter feito quase tudo isso. É uma frase sedutora. Mas será que ela traz uma coisa assim tão certa? Será que dá pra cravar assim, a seco? Determinar essa ordem?

Então, espera. O que seria estar bem consigo mesmo? Como avaliar se a gente está pronto para um relacionamento? Existe mesmo esse estar pronto? Estamos falando de etapas? Etapa 1, fica bem, se conhece, etapa 2, se relaciona?

E vamos acrescentar aqui algum contexto. Normalmente, essas frases aparecem acompanhadas por outros gritos de guerra. “Não aceite migalhas”, “não aceite menos do que você merece”. Particularmente não gosto desse combo. Sim, porque esse papo todo aparece em discussões sobre amor, sobre afeto. E esse amor meritocrático, muito correto, cheio de moldes, de tetos a serem atingidos, bom, ele me parece qualquer coisa menos amor.

Existe uma pressão pra todo mundo ter namorado, marido, como se isso fosse garantia de um certo sucesso? Sim. E, sim também, existe todo um arranjo social que faz uso dos relacionamentos como mecanismo de controle.

Mas a coisa não é só assim, outras variáveis estão em jogo. Estar sozinho, dentro desse novo discurso de capitalização dos afetos, também ganhou seu próprio lugar de sucesso. Relacionamentos avulsos. Dedicação total à carreira. Ode da autossuficiência, empreendedorismo de si mesmo num sentido muito amplo.

Nessa toada só poderiam se relacionar dois seres extraordinários que sozinhos superaram limitações, traumas, questões afetivas e, bum, estão prontos agora. Prontos pra exigir desse relacionamento aquilo que eles enfim merecem.

Estar com o outro é incômodo. O outro está sempre fazendo essa coisa insuportável que é nos lembrar de nós mesmos. O outro encosta, confronta e, nesse balanço, nos movimentamos. Com alguma coragem, questionamos nossos contornos.

Sim, tempo pra estar sozinho ajuda, é extremamente necessário. Saber que o outro não pode nos dar tudo e, em certo aspecto, não pode nos dar nada do que achamos que nos falta, é essencial. É bom poder ouvir a barulheira que mora no nosso silêncio. Mas não adianta vir com regra salvadora. Tem gente que não se relaciona há anos, faz análise, medita e ainda assim dá seus um milhão de jeitos de não se ouvir, de se abafar metódica e positivamente.

Estar com o outro é incômodo. O outro está sempre fazendo essa coisa insuportável que é nos lembrar de nós mesmos. O outro encosta, confronta e, nesse balanço, nos movimentamos.

Estar bem comigo, o que é isso? Uma vez que se alcança é permanente? Quem é esse ser mítico, a pessoa “plena”? Alguém que tenta lidar com um trauma, um luto, um padrão de sofrimento, essa pessoa tem de estar sozinha pra melhorar? Quem disse?

Quando começamos a nos perguntar por que sofremos, como sofremos e o que nesse sofrimento nos prende, minha gente, tudo e mais um pouco pode sair daí. E isso pode acontecer em muitas situações diferentes, em muitos momentos da vida. Quando dizemos que somos diferentes uns dos outros, poucas vezes estamos prontos para encarar a radicalidade dessa afirmação.

Sim, o capitalismo neoliberal é algo extremamente nocivo para os relacionamentos. As relações de propriedade, de administração de bens, muitas vezes estão regendo os afetos. Quer dizer, a gente cresce aplicando aos namoros e casamentos o que aprendemos sobre como o mundo funciona, segundo ideias ruins, cruéis e mortíferas no pior sentido. Os relacionamentos abusivos, não raro, se baseiam numa adesão total a essa ideia de propriedade, entre outros elementos. Se a pessoa é minha eu posso, no limite, matá-la. Das mais variadas formas, não só literalmente. Mas literalmente também.

Pessoas que estavam bem com elas mesmas também já entraram em relações abusivas com consequências graves. Pessoas analisadas já entraram em relações abusivas. Pessoas independentes. Todo tipo de gente. Ouvindo as histórias de quem escapou percebemos que a coisa pode ser bem mais sutil, os sinais menos óbvios. Há algo do sistema entranhado nas nossas relações.

Em vez de dar às pessoas só uma lista de regras de como não entrar, também podemos pensar em desenvolver ferramentas pra sair antes que a coisa fique feia. É possível. É claro que há casos extremos, de violência brutal sistematizada, que vem de muito cedo. É claro que essa violência da propriedade está lá na raiz da coisa toda. E é por isso que, em vez de nos isolarmos em bunkers de segurança afetiva, temos de abrir caminhos coletivos enquanto lutamos para mudar o mundo.

Pessoas que estavam bem com elas mesmas também já entraram em relações abusivas com consequências graves. Pessoas analisadas já entraram em relações abusivas. Pessoas independentes. Todo tipo de gente. Ouvindo as histórias de quem escapou percebemos que a coisa pode ser bem mais sutil, os sinais menos óbvios.

A comunidade é muito pouco abordada nesse sentido. É uma pena e uma tragédia que isso ocorra. Um relacionamento não é uma posse nem um marcador de status. Pode ser visto assim, mas não é naturalmente isso. Muito se fala de relacionamento aberto, mas há tantos também nesse formato que, mesmo assim, reproduzem parâmetros de propriedade, de uma maneira mais diluída, à moda de um aluguel moderninho.

Um relacionamento inscrito numa comunidade é diferente. Há uma rede de pessoas envolvidas, os problemas e aprendizados se espalham, deixam de ser motivo de vergonha ou de algo que precisa ser mantido em cofre. A comunidade não impede que haja abusos mas abre mais espaço para que eles sejam ouvidos a tempo, oferece oportunidade de lidar com isso. A comunidade mete a colher e enriquece os conflitos sem tirar a liberdade. A comunidade é uma praça aberta para o exercício público do amor.

Agora, fora do âmbito do abusivo. Quem se isola e protege seu universo pessoal esperando por uma vida feita só de relacionamentos prontos e maravilhosos… Sei lá, pensem bem. Relacionamentos meia-sola têm seus bons momentos. Não aprendemos só na glória. Não vivemos só no auge. Somos ofendidos e também ofendemos e sabemos que, até o limite do respeito, podemos consertar, rever, perdoar, não perdoar, comemorar uma reconciliação ou um belo pé na bunda. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, aprendendo. O amor constrói limites mas exige abertura e alguns passos no escuro.

Relacionamentos meia-sola têm seus bons momentos. Não aprendemos só na glória. Não vivemos só no auge. Somos ofendidos e também ofendemos e sabemos que, até o limite do respeito, podemos consertar, rever, perdoar, não perdoar, comemorar uma reconciliação ou um belo pé na bunda.

O amor não exige sofrimento mas o inclui. Fugir de todo o sofrimento é um problema. Insistir na repetição dolorosa de um sofrimento também. Somos complicados. E precisamos uns dos outros. Como namorados, amigos, ficantes, amantes, platônicos, vizinhos, companheiros, crushes de DM, paquera de busão, rivais, admiradores, colegas, irmãos, camaradas.

Mais do que advogar por esse ou aquele formato de relacionamento, de decretar que pra crescer é preciso estar assim assado, penso que precisamos pensar sobre as grandes molduras, as grandes amarras desse mundo como ele está. E as frases edificantes muitas vezes atrapalham mais do que ajudam. Não precisamos de novas fórmulas, mas de abertura radical para novos afetos.

E a chave pra abrir esses novos caminhos passa pelos relacionamentos. Por sua presença na trama que tece as comunidades e também nas experiências de cada pessoa. Cada história carrega o social, mesmo sendo minha, sua. Cada história tem também o potencial de modificar o social exatamente porque, embora seja minha ou sua, não está isolada do mundo.

Do modo como vejo, o ponto em uma relação não é se você está recebendo o que merece, coisa que você deveria cobrar do seu patrão talvez (sem nunca receber o suficiente porque, né, quanto vale um pedaço de tempo de vida?). De repente a questão é mais pra o que essa relação me faz criar? Ela me abre horizontes ou me deixa presa reproduzindo sempre o pior de mim? Tem criação inclusive nos momentos destrutivos ou é tudo água parada? O que eu vivo com ela?

A gente passa tanto tempo querendo escrever as respostas em pedra, mas o amor, parece que ele gosta mesmo é de perguntas.

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