Com quantos dias se faz uma consciência humana?

A consciência nacional não será verdadeiramente humana enquanto cultivar a exclusão e a inferiorização da consciência negra.


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Dia de Zumbi dos Palmares é dia da Consciência Negra. Na minha infância, eu sempre recebia alertas efusivos dos adultos negros e negras da família, me alertando sobre a diferença social que eu carregava, expressa pela cor da minha pele. Na minha família havia todas as tonalidades que compõem a negritude. Uma autêntica família miscigenada e com relações internas conflituosas, como é a praxe de todas as famílias do mundo, mas que ganha contornos diferenciados quando marcadores sociais de raça e classe se aglutinam em seu cerne. Mais clarinhos contra mais escurinhos, entre piadas e trolagens, os laços familiares pareciam sempre muito frágeis.

Certa vez, quando eu havia acabado de presenciar uma discussão acalorada, onde essas diferenças de tons e valores financeiros eram usados como “armas” de disputa, um fato mudaria definitivamente a minha percepção sobre laços familiares marcados pelo racismo e a pobreza. Um conflito entre vizinhos, por motivos fúteis como uma bola que caiu em lugar errado, por exemplo, virou palco para uma manifestação explícita de racismo. Nesse momento, todo e qualquer conflito familiar dado pelas questões raciais desapareceu como cinzas em dia de ventania e a família brigou junto pela defesa do escurinho e do clarinho que haviam sido violentamente ofendidos pelas duras palavras de um senhor branco, ranzinza e mal-educado.

Muitas pessoas negras neste país dizem não se saberem negras. Ou ainda, vivem alheias aos problemas que o racismo acumula em suas vidas. Cada um lida de uma forma e isso é sempre muito pessoal. A consciência negra existe, ainda que disforme, inconclusa ou negligenciada por muitos que temem admitir o que o espelho lhes diz ou o que a branquitude aponta em maior ou menor escala. Mas a consciência humana, essa jamais houve no país. A consciência humana de que há uma consciência negra oprimida, silenciada, apagada e desvalorizada. A consciência humana de que há um uso maniqueísta e perverso do colorismo, como um instrumento duplo de proteção do narcisismo branco (que rejeita tudo que é diferente de si) e de promoção de um separatismo perigoso e estratégico dentro da negritude. A consciência humana que tenta minar a consciência negra, praticando todo tipo de violência física, espiritual, subjetiva e objetiva. A consciência humana que apagou histórias e deixou um abismo identitário na formação subjetiva da consciência negra. A consciência humana que se isenta da responsabilidade histórica de reparação, que herdou juntamente com todos os privilégios sociais do qual desfruta. E a lista não caberia em um artigo único.

Diante das fragilidades e fissuras que a consciência humana promoveu na consciência negra, muita coisa precisa ser reconstruída, em diversos níveis da existência negra. Os laços familiares, a autoestima e a autoconfiança, a esperança em um futuro melhor e a crença de que o amor é uma prática possível e desejável dentro da negritude. A consciência humana convenceu a consciência negra de que elas são coisas separadas. Chamamos isso de desumanização. Então, eu confio e reproduzo as palavras do insuperável advogado e geógrafo mais importante do mundo, Dr. Milton Santos, que disse que é preciso uma consciência NACIONAL. Uma consciência nacional que reconheça que a consciência é tudo, menos humana, enquanto cultivar a exclusão e a inferiorização da consciência negra. A consciência nacional é menos humana enquanto não sanar a ferida aberta do colorismo, enquanto não estancar os efeitos da pobreza, enquanto não expurgar a rejeição (in)consciente que produz uma resistência à presença da consciência negra como um dos pilares de formação da nossa sociedade. Temos um mês da Consciência Negra, um dia da Consciência Negra, mas eu pergunto: com quantos dias faremos brotar uma consciência verdadeiramente humana, absolutamente e efetivamente, contra o racismo da sociedade brasileira?

Que cada um possa responder com o corpo, a alma e a consciência que entende que deve buscar ser, de fato, humana.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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