Do que a memória é capaz?

A memória não é um depósito de velharias e seu potencial criativo é quase um superpoder


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“Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita (…)”. Uma série de acontecimentos me fez pensar nesse trecho escrito por Lélia Gonzalez em seu texto fundamental Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira.

Já citei esse escrito em colunas algumas vezes, ele é um desses momentos em que alguém consegue fazer uma síntese tão poderosa sobre um assunto complexo que o resultado passa a ser uma espécie de guia. Não porque não tenha defeitos ou responda a todas as questões, mas porque é capaz de uma contribuição importante na renovação de perguntas necessárias. Nesse texto, Lélia propõe uma certa dialética entre memória e consciência para analisar a construção do racismo no Brasil, principalmente no que se refere às subjetividades, ao modo como cada um de nós é afetado, sofre e reproduz esse racismo, ao jeito que somos falados por esse racismo. Existe aí uma correspondência com o que a psicanálise entende como consciente e inconsciente, embora Lélia tenha feito uma escolha de termos que tem lá suas intenções.

Mas hoje gostaria de destacar isso que ela diz da memória e de sua relação com o que não foi, mas pode ser escrito. O que pode ser escrito tem algo de muito especial: não é um lugar de depósito nem simplesmente de lembrança cronologicamente localizada, mas um lugar capaz de transformar o passado e mudar os rumos das coisas. A memória de Lélia Gonzalez é memória viva.

Nos últimos dias li nas redes a fala emocionada de uma pessoa que perdeu um irmão na pandemia. A história, sabemos, não é única. Foram mais de 700 mil pessoas mortas por Covid só no Brasil. Nesse número estão filhos, irmãos, pais, amigos, avós, companheiros, namorados, gente querida. Mais de 113 mil crianças e adolescentes ficaram órfãos por conta dessas mortes. No caso específico que estou citando, a pessoa lamentava o fato de o irmão ter confiado nos remédios sem nenhuma eficácia que foram sistematicamente “receitados” pelo então governo federal, da forma mais irresponsável e cruel possível. Essa pessoa não julgou seu irmão, mas fez uma tentativa de escrever o que não está ainda escrito e reconhecido nessa história.

Para além de comemorar a decisão que tornou Jair Bolsonaro inelegível por oito anos, _um marco importantíssimo e incontestável no reconhecimento de seu papel não só, mas também na incompetência criminosa na condução da pandemia_ essa pessoa falava da necessidade de pensar a escolha do irmão. Ou seja, por mais que ele fosse um adulto capaz de se informar, houve um contexto, houve uma campanha de desinformação e fake news, houve algo muito sério que precisa ser registrado.

Segundo o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), o consumo de cloroquina e hidroxicloroquina cresceu 358% durante a pandemia, e a produção chegou a 2,02 milhões de caixas, alta de 113% em comparação a 2019. O faturamento das empresas com a droga foi de R$ 91,6 milhões em 2020, ante R$ 55 milhões em 2019 (alta de 66%).

Líder do mercado nacional de cloroquina e derivados com o Reuquinol, a Apsen foi responsável por 85% do total vendido de cloroquina e hidroxicloroquina na pandemia. O crescimento das vendas elevou em 17,6% a receita, que superou a casa do R$ 1,034 bilhão. Em 2018, a Apsen registrava lucro de R$ 696 milhões.

A Apsen assinou dois empréstimos com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), presidido por Gustavo Montezano, amigo de infância dos filhos de Bolsonaro. O total dos financiamentos bateu R$ 153 milhões, sete vezes o que a empresa havia conseguido nos 16 anos anteriores somados. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército, a mando do governo, aumentou sua produção desses medicamentos em 12 vezes. Empresários da base aliada receberam permissões de produção, impostos zerados e uma série de benefícios que foram detalhados na CPI da Covid. Do SUS aos planos de saúde privados, o kit inútil se espalhou junto com as mortes. Isso sem contar as inúmeras lives e aparições públicas em que o ex-presidente e seus aliados sugeriam os remédios com as caixinhas nas mãos, dizendo inclusive que estavam fazendo uso da medicação.

Tudo isso influenciou diretamente muita gente que confiava no governo. Por mais que possamos dizer, nossa, mas era óbvio que ali não havia nenhum cuidado com a população, para muita gente não era. E houve um esforço midiático, investimento público, fake news patrocinadas, tudo o que, aliás, resultou em lucros milionários. Um dos laboratórios envolvidos na CPI, a gigante EMS teve a capacidade de falar em “procura espontânea”. Imagine se não fosse.

Se juntarmos a isso os absurdos dito sobre as vacinas, as vacinas não compradas e a campanha diretamente contra a vacinação, o cenário só piora. Me compadeci desse irmão que, em um post entre milhões, tentava, nas encruzilhadas vivas da memória, olhar para o que havia acontecido com uma pessoa amada e jovem que morreu nessas condições.

O Brasil não pode passar sem esse exercício, que não é simples ou sem dor, mas certamente transformador.

Em abril deste ano, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Sílvio Almeida, anunciou a criação de um grupo oficial para acompanhar a implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade.

Cito aqui a Agência Câmara de Notícias: “Criada por lei em 2012, a CNV investigou violações aos direitos humanos praticadas pela ditadura militar no Brasil (1964-1985). Além das conclusões, apresentadas em 2014, o relatório final do colegiado fez uma série de recomendações ao país, como a responsabilização civil, criminal e administrativa dos envolvidos, sem direito a anistia.

A conclusão do documento lista 434 mortos no período e outras 210 vítimas ainda desaparecidas. No total, 377 agentes do Estado são apontados como responsáveis pelas violações de direitos humanos.”

O compromisso do ministro com esse trabalho tão fundamental é outro exemplo da importância da memória, que até no título da comissão dá notícias de sua relação com a emergência de uma verdade. Essa verdade não é idêntica a algo que estava escondido e foi revelado, mas ao que podendo ser escrito também tem uma dimensão de criação. Os mortos, as perseguições, a tortura, a censura, a barbárie saem do registro oficial e mentiroso da Ditadura como boa ordem. Documentos às vezes são vozes que enfim podem falar. Relatos de época, depoimentos de sobreviventes e seus familiares, há uma riqueza de presenças que precisa ser considerada e, como quer garantir Silvio Almeida, transformada em prática social.

Isso se contrapõe, por exemplo, à pavorosa iniciativa, bastante comum no governo anterior, de homenagear torturadores e apoiadores da Ditadura, seja os ligados diretamente a crimes de assassinato e tortura, seja os que os acobertaram e silenciaram sobre eles.

A mesma memória é capaz de nos ajudar a defender a inconstitucionalidade do chamado Marco Temporal e escrever na vida a presença fundamental dos povos indígenas, sua história antes e depois da chegada catastrófica e traumática dos colonizadores. O marco quer limitar as demarcações dos territórios indígenas às terras que já estavam ocupadas ou em disputa em 1988, data da promulgação da Constituição.

Essa data é uma arbitrariedade que tenta apagar todo o histórico de lutas dos povos indígenas passando pelos invasores colonizadores, pelas condições dessa colonização e pelos séculos de seus desenvolvimento, pela formação dos latifúndios que desemboca nos gigantes do agronegócio, grandes patrocinadores e defensores do Marco Temporal. Se pensarmos só o mínimo, veremos o quanto nos enxergamos pouco como um país indígena, assim como nos vemos pouco como um país negro, o quanto o colonialismo e sua descendência capitalista ainda nos enjaulam, furam nossos olhos e nos adoecem.

Nos vermos como país indígena ou negro não nos exime de lutar contra a segregação e contra a desigualdade, a favor de políticas de reparação, nos vermos como país negro e indígena é um dos fundamentos da luta. Nos escrever como país negro e indígena é incontornável para a luta. O Marco Temporal é mais uma tentativa de apagamento, mais um jeito de impedir que a memória escreva e seja escrita. Isso tem nos custado o impagável. Populações e florestas dizimadas, a cada dia respiramos com mais dificuldade em tantos sentidos.

Lélia luta com unhas e dentes em seu texto, como lutou em sua vida, a favor desse reconhecimento, de sua potência curativa. A cura não é só ir contra o que adoece, é criar corpo de cuidado, de saúde.

Nos ver como um país fundamentalmente construído por indígenas e negros vai na contramão do apagamento e também de tentar se apropriar indevidamente de cotas ou se colocar contra elas (como está acontecendo nos EUA, o país que cada vez mais se compromete com o atraso), vai na via contrária de tentar tirar proveito, de sugar mais um pouco de sangue. É construir com outras formas de fazer conhecimento e de organizar.

Nos ver como um país fundamentalmente construído por indígenas e negros não é diminuir a importância de brancos, incluindo os imigrantes e seus descendentes. É entender que muitos grupos foram reconhecidos, respeitados e beneficiados enquanto aqueles que sofreram as mais duras penas e ainda assim criaram, arrisco dizer sem medo, o que há de mais bonito na nossa cultura, seguem massacrados. Música, Direito, Psicanálise, Literatura, Geografia, Filosofia, Artes Plásticas, movimentos sociais e organização popular, enfim, não há uma área em que isso não se mostre, a excelência sempre abafada, diminuída.

Sim, há contribuições de todes e muitos, mas indígenas e negros e seus descendentes, além de tudo o que já foi citado em termos de destaque intelectual e organizacional (os quilombos são aqui a grande referência), estão presentes também nos primeiros cuidados de muitas gerações de pessoas brancas. O contrário não se deu. Por exemplo, como bem lembra Lélia em seu texto, de 1984, a chamada mãe preta foi mãe de milhões, por séculos, e ainda continua sendo dentro das casas ricas e privilegiadas, as mesmas que ainda cultivam os quartos de empregada. E isso diz muito sobre o que o racismo faz de nós.

Um branco não deixa de ser branco porque reconhece a herança, o trabalho e a presença negros em sua história pessoal e na história do país. Mas talvez aí um branco promova uma rachadura nessa identidade, talvez por essa rachadura passe algum sol capaz de revelar que o melhor que temos a fazer é criar caminhos que não sejam esse do privilégio branco. O privilégio branco não solta a mão da supremacia, é par do discurso dominante, do discurso da dominação e da desigualdade. O privilégio branco é morto e mortífero, mata o diferente e corrompe, torna desprezível o que se vê como seu destinatário de direito. O branco precisa se questionar radicalmente em muitos sentidos e colocar em ação suas responsabilidades consigo mesmo e com o coletivo.

O racismo sustenta a transformação da diferença em miséria. E se toda diferença vira miséria, não importa o que se faça, a tendência é uma linha de produção de onde só entra e sai o mesmo. Os bilionários patrocinadores de genocídios, guerras e destruição ambiental são as grandes faces da miséria, sua definição, sua mais perfeita tradução, com seus foguetes e submarinos inúteis, suas caridades de fachada, sua tecnologia impotente, com seu falso poder, que não passa de um poder-devastar.

A memória nos chama a outro tempo.

É nossa obrigação ouvir esse chamado, mas também é nosso direito, vem no passo dado por nosso desejo, faz nosso compromisso com a criação de, como diz a canção, “uma realidade menos morta”.

Pode ser difícil fazer esse movimento em um país em que o racismo é tanto negado quanto praticado a céu aberto, escancarado às escondidas, por assim dizer. Mas não fazer esse movimento é da ordem do insuportável porque não há aí uma possibilidade de neutralidade. Não fazer esse movimento é se aliar aos crimes do passado garantindo sua permanência, sua reprodução tirânica, é sustentar apagamentos, criar miséria e desigualdade em cadeias cada vez mais brutais.

Comece pela sua vida. De onde você veio, como será que as consequências do racismo impactaram sua família, sua realidade, sua percepção de quem é você?

A recente, embora nada inédita, tentativa de criminalizar movimentos sociais se alinha com o retrocesso e com o avanço da maldade, do lucro acima das pessoas. A organização em movimentos sociais aproxima,cria solidariedade e ameaça aqueles que compactuam com os modelos da barbárie. E é por isso também que é necessário apoiar esses movimentos, participar dos que estão se formando e dos que virão. Participação cria pertencimento, registra responsabilidades, forma vínculos.

A memória não traz de volta os mortos, mas dignifica sua existência e suas batalhas, faz delas semente, rizoma, micélio e germinação. Aos vivos,a memória que escreve um mundo melhor aparece como incremento de vida, como promoção de saúde coletiva, como criação envolvida no processo de luto e de luta, como encontro com um corpo que brota, como uma espécie de renascimento.

Isso de ser linguagem ainda vai nos levar além.

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