Dos desfiles e das modas em tempos distópicos

As fashion weeks digitais abrem precedente para revisões e mudanças nos modelos de apresentações, sistema de produção e na própria estrutura da indústria.


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Muito se discute na indústria sobre o assunto “desfile”. Mesmo antes da pandemia, o formato já vinha sendo questionado – e por tantos motivos. Daí que as medidas de isolamento social adotadas no mundo cancelaram os eventos físicos de lançamentos de coleções (SPFW dentre eles). Nesta semana que passou, a London Fashion Week realizou sua primeira edição inteiramente digital, chamada #lfwreset, que é também uma maneira mais humilde de admitir suas limitações e o próprio momentum. Junta masculino e feminino, anunciando-se como “gender neutral”, pretendendo reforçar a ideia de comunidade e discutir o futuro da moda. A plataforma deles tem sido chamada de um “Netflix da moda”, uma vez que tem muito mais produção e curadoria de conteúdo do que qualquer outra coisa, com o suporte de empresas de tecnologia como Joor e Smartzer, que transforma tudo em interação e interfaces para compra.

Fato é que, mesmo com todo o desgaste da fórmula, ainda não inventaram nenhum modelo melhor do que um desfile para se apresentar uma coleção para mídia, compradores, público, sobretudo depois do advento do Instagram – e do stories. O desfile cria também oportunidades para networks, movimenta toda a cadeia e pode produzir conhecimento crítico sobre a moda e seus processos, essencial para o funcionamento da engrenagem, situando-a como manifestação cultural. Como se sabe, mas não custa lembrar, também faz girar trabalho para muitos profissionais, de camareiras a técnicos, modelos e stylists, jornalistas e fotógrafos, e uma fashion week agita também hotelaria, restaurantes, uber, táxi, além de o comércio em si.


Os desfiles reproduzem o zeitgeist e refletem a própria moda à volta. A maneira de as modelos desfilarem define também cada época: mais fervidas, em bloco e saídas random, nos anos 1980; duras e sisudas nos 1990; personalíssimas e diversas nos 2000. Há livros importantes sobre a história deles, como “The Mechanical Smile: Modernism and the First Fashion Shows in France and America 1900-1929”, de Caroline Evans, “The Fashion Set: The Art of the Fashion Show”, de Federico Poletti (ambos disponíveis para compra na Internet). De quando em quando, alguém retoma aquelas imagens da alta-costura antiga, com as modelos segurando plaquinhas com os números das roupas para as clientes e editoras acompanharem, um repertório visual icônico. Há livros dedicados a desfiles memoráveis, como um da Gucci e outro (bafo) da Balenciaga, da coleção de inverno 2018. Tem também o de Alex de Betak (também na Amazon), o poderoso diretor/produtor com suas superproduções caríssimas e megalônomas para as grandes marcas do alto luxo internacional, símbolos de uma era que, enquanto não houver uma vacina para a covid-19, não volta mais.

Como serão as próximas semanas de moda, se presenciais, digitais, com maquiadores de máscaras, se em vídeo, catwalk sem plateia, assentos separados em todas as fileiras, não dá pra saber por enquanto. Dessa semana de Londres, interessa acompanhar, sim, os novos modos de fazer com que consumidores possam interagir com as marcas e estilistas, colhendo ideias sobre os próximos tempos, a exemplo da apresentação via zoom de Nicholas Daley. Enquanto isso, aqui do Brasil, precisamos repensar não apenas sobre os modos de difusão e consumo. Mas a estrutura como um todo.

Esses dias, vimos a reabertura do comércio, com aglomerações irresponsáveis nas ruas e frenesi nos shoppings centers, além de relatos desconcertantes de situações de abuso e discriminação no mercado brasileiro. As modelos, no dia a dia de castings, shootings e catwalks, deram o start, como mostra a reportagem da ELLE. O mundo gira e clama por mudanças. É evidente que não temos mais como avançar, seja em formato, seja em conteúdo, sem rever a epistemologia racista y classista à moda estruturalmente associados. Cabe a todes nós agora quebrarmos e reescrevermos essas regras.

Comecei a cobrir moda no finzinho dos anos 1980, quando tudo o que tínhamos em São Paulo eram alguns eventos pequenos nos showrooms e lojas da cidade. No início dos anos 1990, começaram a acontecer “desfiles” nos clubes noturnos e, depois, Paulo Borges se juntava a Cristiana Arcangeli para mostrar num galpão em Pinheiros as coleções de Alexandre Herchcovitch, Fause Haten e Walter Rodrigues, até então completos desconhecidos da grande mídia, no pioneiro Phytoervas Fashion, embrião do calendário da moda nacional. Depois disso, cobri 20 temporadas de São Paulo Fashion Week e todos as edições do Fashion Rio, e por 14, 15 anos atendia às temporadas internacionais bianuais. Nesse tempo todo, escrevendo sobre desfiles, tive a oportunidade de presenciar momentos incríveis, cenas que nunca sairão da minha mente, sinapses das mais loucas que resultaram em verdadeiras epifanias. Não escrevo isso por deslumbre eurocentrista ou por saudosismo, mas para poder refletir de onde viemos e para onde queremos ir. Poderíamos ter feito e ainda podemos fazer muito mais, nas passarelas e nos backstages da vida. Aproveitando este momentum, podemos melhorar.

Sempre tive a sensação de excesso e de desperdício. Sempre achei que havia roupas demais, desfiles demais. Ao longo desses 30 anos, a velocidade se acelerou, levando o mercado e seus profissionais ao esgotamento. Em todos os sentidos. A mesma Internet que democratizou o acesso a essas imagens de moda nos desfiles fez com que o público ali presente se tornasse um monte de mãos e braços, dezenas, centenas de celulares apontados para a passarela. E assim acabaram os aplausos, a emoção escancarada e até dramática. Com as blogayras montadas para cliques e selfies, o frisson ganhou contornos de um nervosismo fake. No todo, um ambiente estéril e muitas vezes burocratizado. A repetição dos códigos, o ritual, já não fazia mais sentido. O imperador já estava nu.

Não por acaso, dois momentos me fizeram sentir algo diferente, especial, aqui mesmo em São Paulo: o desfile-performance-manifesto de Vicenta Perrota no GE de Karlla Girotto na Casa do Povo, e a virada de Isaac Silva, da Casa de Criadores para SPFW. O primeiro pela loucura criativa, pela desconstrução dos códigos, pela profusão e liberdade das corpas. Já no axé da Isaac, a emoção de uma plateia (e de uma primeira fila) que finalmente se via representada na passarela, e vice-versa. São acontecimentos como esses, também, que nos fazem refletir sobre os sistemas em que estamos inseridos. Ventos de utopia e da mudança, provocados pela moda, nesses nossos tempos distópicos…

Erika Palomino é jornalista da área de cultura e desde fevereiro de 2019 dirige o Centro Cultural São Paulo. Trabalhou por 17 anos na Folha de S.Paulo, onde foi editora e colunista da Ilustrada. Autora de Babado Forte e A Moda, foi consultora criativa da Melissa por 15 anos. Entre 2001 e 2009, manteve um site de comportamento e uma produtora de conteúdo (a House of Palomino). Erika também é editora e consultora de moda, com mais de 30 anos de atividade no mercado.

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