E o final de Barbie, hein?

O cor-de-rosa e as áreas cinzentas do filme mais comentado do momento.


Coluna da Vivi a



Se eu vou comentar o final do filme Barbie? Claro que sim. Mas vamos por partes:

Barbarismo –
(bar.ba.ris.mo)
sm.
1. Estado rude de povos bárbaros; BARBÁRIE
2. Ação cruel, atroz; BARBÁRIE
3. Gram. Ling. Uso de palavra ou expressão em desacordo com as normas gramaticais, ou com erro de pronúncia, grafia ou significação.

Barbierismo –
(bar.bie.ris.mo)
sm.
1. Briga nas redes para insistir que há radicalismo feminista no filme Barbie
2. Ling. Uso de fórmulas como as mostradas no filme Barbie como sinônimo de feminismo ou luta social engajada

Sábado no cinema. Barbie, sessão das 14h quase lotada, filas imensas, muitos adultos com seus looks pink. Nesse mesmo complexo de shopping, o título ocupa 4 salas diferentes. Poltrona F6, ao meu lado um cara sozinho comendo fast-food, uma moça loira de casaco de pelúcia lilás-lavanda e duas moças negras vestidas de preto e rosa-choque. Vários idosos, pessoas jovens, algumas poucas adolescentes. “O filme do ano”, uma senhora diz_ a sessão ainda não começou.

Passei os últimos dias vendo uma série de críticas ao tão comentado Barbie. Do, convenhamos, menos-que-brilhante “é uma grande campanha de marketing”, à linha manjada “super lançamentos mainstream dominam os cinemas e ninguém liga”. O destaque, obviamente, fica para o completamente transtornado “é um filme que prega o ódio aos homens”. Para aderir a esse último a pessoa precisa estar imersa no mais viscoso fundamentalismo, do mesmo tipo que acha ok o bispo Edir Macedo dizer que proibiu as filhas de estudar para que elas não corressem o risco de ofuscar seus futuros maridos. Isso é coisa de quem chama menina de “fraquejada”. Fundo do poço é pouco, por favor.

Dito isso, vamos lá. Adianto que em algum ponto vou dar um spoiler do final, porque acho que será útil pro que eu tenho a dizer. Mas podem seguir lendo, eu aviso antes quando for chegar nessa parte.

Se o básico das críticas negativas são essas que citei acima (há outras melhores, certamente), a média das positivas também não ajuda muito quando insiste em uma desconstrução radical que não existe no filme. Até porque se somos praticamente obrigados pelo mercado a falar de uma determinada produção, isso já tem um peso conservador.

É verdade que: 1. o visual é muito bem realizado e bate forte no olhar e na memória de quem já teve ou desejou não só uma Barbie, mas qualquer um de seus cenários de ação (a casa, o carro, e até a ambulância; senti falta do salão e das Barbie Face e Hair, grandes cabeças nas quais era possível treinar penteados e maquiagem) 2. Os atores mandam bem, especialmente Margot Robbie, que é mesmo ótima 3. Há momentos inteligentes e divertidos. Continuando o 3 eu diria, mas nem tanto. Vou explicar melhor.

As piadas de Barbie são espertinhas. São bem pensadas para dar conta dessa tensão do filme, ou seja, de ter de sustentar Greta Gerwig em seu papel de diretora mulher considerada feminista, segurar a Barbie como ícone em desconstrução, localizar o Ken enquanto homem e não ofender muito ninguém, fazer um filme familiar descolado. Dá pra ver que todos se esforçaram demais para dar conta disso, e em grande medida conseguiram, foram super bem sucedidos. Mas a questão é que essa vitória também significa fracassar em tirar da coisa toda alguma novidade inspiradora.

Vou colocar de outra forma. Eu provavelmente teria gostado do filme se tivesse uns 20 e poucos anos, ou se ele tivesse passado no Supercine quando eu era adolescente. Teria adorado, achado bem divertido, teria achado incrível a diferença em relação a comédias em que as moças só querem casar, são meros enfeites etc. Consigo enxergar isso, o apelo pop, a veia Legalmente Loira de desconstrução. Ou seja, Barbie é muito melhor do que a avalanche de baboseira das franquias de filmes de herói/ação que abarrotam as salas de cinema todo ano, e isso já é um mérito inegável.

(É melhor também que essa bomba de infinitas 3h sobre o homem da bomba, fato).

Também não esperava secretamente, como algumas críticas muito engraçadas, que a Barbie viesse para dar uma chulapada inesquecível nos padrões e se consolidasse como uma legítima boneca feminista. Digo engraçado porque, em muitos casos, parece que na superfície de enormes decepções estava uma esperança bem nutrida de que o filme da Mattel fosse uma crítica acachapante ao nosso mundo.

O que eu esperava, então? Uma saída afetiva pelo humor. Um final instigante. Uma trilha sonora incrível. Basicamente isso. Mas, pra mim, não rolou.

As piadas, como já disse, são muito Barbie Espertinha. Não arriscam um milímetro, são bem sem graça. A Barbie Estranha é meio chata (embora a casa dela seja muito legal). Os musicais são quase todos meio chatos também. O riso é enlatado, meio constrangido. Às vezes parece que a gente está em uma dessas festas moderninhas 30+ em que todo mundo se acha muito sabidinho irônico, rola uma certa mania de controle, uma nóia de imagem que não é culpa da Barbie.

Pra não dizer que sou a insuportável que não riu de nada (foi quase isso), eu gostei da piada com Orgulho e Preconceito enquanto filme pra ver chorando na pior. Mas até isso tem que vir com o “espertismo” da Barbie Depressão, que se transforma em mercadoria. É um saco isso, essa pseudomilitância da publicidade “autocrítica” instantânea. O que eu achei mais engraçado foi o gosto musical caricato do Ken depois de ter contato com o mundo hetero do red pill-mainsplainner. Quando os bonecos tocaram Push, do Matchbox 20, no violão, o povo rachou de rir.

Vou dizer pra vocês: eu amei muito minhas Barbies. E o que elas fizeram nas brincadeiras foi tão além. O salão de beleza desmontado virou de barco a moradia de extraterrestres (as personagens da coleção Moranguinho). As roupas foram montadas nas mais absurdas combinações, na falta de Kens, uma Barbie ciclista virou menino, enfim, aposto que milhões de crianças têm histórias assim e bem melhores que essas. Isso não aparece no filme em NENHUM momento.

Ignorar as crianças em um filme sobre uma boneca que está sendo acusada de tanta coisa, sob a esperança de uma redenção qualquer, mostra o quanto estamos na pior real oficial. Nós, os adultos.

Vocês podem dizer, ah, mas o filme não é pra criança. E daí? Não é em nome das meninas que estamos falando tanto de Barbie? Não são as crianças que crescem com a boneca malvada e blablabla? E crianças só podem ser ouvidas em filmes para crianças? A supremacia dos adultos é intimamente ligada com todas as demais: a do patriarcado, a branca, a hétero, a dos bilionários. Pensem nisso.

Sim, havia problemas sérios de representação na infância de muitos, o principal sendo a questão da raça. Talvez isso também tenha de ser considerado no sucesso da boneca, os adultos gostavam de entregar às crianças o que ELES viam como modelo, o que reproduzia suas crenças nocivas e algumas de suas fantasias sobre o mundo.

Mais tarde as Barbies negras vieram e, com elas, tantas outras, o que foi bem legal, importante. Evidente que essa importância existe, mas é limitada. O filme faz mais uma piada pré-fabricada com isso, já que a própria Barbielândia se sustenta na ilusão de que tá tudo resolvido com certa representatividade. Mas a história, especialmente quando a Barbie está no mundo real, não explora bem o quanto nossas fantasias nos dão coordenadas para entender e criar a realidade. Nesse sentido, é tudo apressado, o filme às vezes parece assim um grande processo de gestão de crise, com lições corretinhas que devem ser rapidamente mostradas.

Rola também um problema de roteiro que, de novo, tem a ver com ignorar as crianças. A Barbielândia funciona porque as crianças do mundo real brincam com as Barbies. Isso é explicado em uma cena de contexto. Uma adulta entediada e deprimida no mundo real se conecta com sua Barbie por meio de pensamentos de morte e imaginando uma boneca “gente como a gente”, que tem mau hálito e celulite. Aí a Barbie Estereotipada começa a dar defeito lá na Barbielândia. Tá… Mas e todas as outras crianças que estão brincando com todas as demais Barbies? Elas são assim tão sem imaginação nenhuma, brincam tão certinho que a ordem é mantida? É legal pensar que as crianças estão representadas nas Barbies, que são negras, têm os mais variados shapes, são trans, são pessoas do mundo. Mas elas só brincam de profissão? As brincadeiras são só sobre ser médica, presidente, ganhar o Nobel? Isso é bem papo de adulto…

O ponto fora da curva são as crianças que brincaram “muito pesado” com suas bonecas, e aí conhecemos a Barbie Estranha, com cabelo cortado e cara rabiscada. Sim, quem não se lembra delas, mas, nossa, que falta de imaginação, que falta de curiosidade. Quer dizer, que tipo de brincadeira terminava ou começava em descaracterizar uma Barbie?

Se os adultos tivessem o interesse em ouvir como as crianças brincam em vez de dizer o tempo inteiro como elas devem brincar e o que deve significar um brinquedo, talvez as coisas fossem bem diferentes. Só fui sentir esse papo de Barbie como modelo de corpo depois de adolescente, na real já era quase uma adulta. E tudo isso partia do olhar adulto. Nas minhas brincadeiras, a Barbie era outra coisa.

No filme, tanto na Barbielândia quanto em LA, a Barbielândia humana, foram os adultos que inventaram e construíram “A” Barbie. Aqui na nossa realidade, também. E seguimos impondo nossas baboseiras sobre as brincadeiras das crianças. Mas nem ousem achar que estou entrando na lenga-lenga de defesa de uma certa “inocência” infantil, fetiche de uma galera muitíssimo suspeita. As crianças podem ser brutais em suas brincadeiras, podem ser doces, cruéis, poéticas, podem dizer coisas muito contundentes, podem dizer de enormes dores e das maiores alegrias e, se não atrapalharmos demais, podem ser acima de tudo criativas. Porque elas brincam para viver, é um jeito de existir, é uma construção viva. É isso que gostaria de destacar aqui.

Evidente que não podemos desconsiderar a experiência, por exemplo, das meninas negras, que até os anos 80, quando foram lançadas as primeiras Barbie negras, não se viam representadas na boneca. Isso evidentemente só se fez notar porque os demais brinquedos e outras instâncias da vida dessas crianças também foi impactada pela violência simbólica e apagamentos do racismo, entre outros problemas graves. Mas o que eu gostaria de reforçar, no sentido do parágrafo acima, é que ninguém nasce racista e que a percepção de ser alvo do racismo também não é imediata. Ou seja, há uma grande liberdade que pode ser exercida inicialmente pelas crianças, a liberdade de não transformar toda e qualquer diferença em desigualdade e humilhação.

Uma pena todo esse potencial ter ficado de fora, já que o próprio roteiro propõe uma ligação entre as brincadeiras do mundo real e a Barbielândia, para depois só usá-la pontualmente a partir da imaginação de uma adulta, mesmo que essa adulta esteja brincando com a boneca da filha e que seja interessante o fato de ela se expressar por meio de desenhos sobre um brinquedo.

E agora, spoilers…

Existe uma ideia legal no filme, que, vejam só, é sobre o Ken. É bem legal a forma como o Ken vai percebendo que é muito ruim o lugar para o homem tanto no mundo real quanto na Barbielândia (de mero adereço a macho escroto dominante armamentista, um dos padrões mais baixos da nossa sociedade capitalista). Faz um caminho invertido, sai do básico do carinha desconstruído de sempre, é uma novidade.

A resolução social da Barbielândia para a reinserção dos Kens é tosca e corrida, mas, enfim, está na média geral da história e não diminui o impacto da ideia. O que eu mais gosto: a confissão do próprio Ken sobre sua decepção e tédio com o reino dos machos. Ele não gosta de ser enfeite, mas também não curte ser o macho alfa, quer algo diferente.

(Sim, tem um certo problemão de inversão simples, uma impressão de que o male gaze é só um female gaze invertido, ou vice-versa, mas deixa isso pra outra hora).

Agora, minha análise sobre o melhor e o pior da última parte do filme, em dois pontos:

1. As Barbies são “colonizadas” pelas técnicas patriarcais recém-adquiridas pelos Kens e, para tirá-las do transe, são organizadas sessões de conversa. Ok, o jeito que isso rola é bobão e automático, palestrinha. Mas passa a ideia bacana de que pode existir uma rede de solidariedade, inspiração e, uau, até uma organização política entre mulheres (com ajuda do Allan, que fica sendo a figura do homem aliado, capaz de ouvir e de auxiliar sem querer dizer o que precisa ser feito).

(Fiquei pensando em que tipo de conversa tiraria do transe as mulheres que estão dizendo que Barbie é um filme de ódio aos homens e contra a família. Complicado.)

Agora o que não curti. Aviso de novo, aqui vou contar o final.

Barbie Estereotipada viveu e mudou demais pra continuar na Barbielândia. Chorou, sofreu, vislumbrou a falta e flertou com a morte, soube do amor. Em sua viagem de descoberta estilo Mágico de Oz, nossa heroína ficou mais complexa e decidiu, com todos os riscos assumidos, virar gente.

O que ela faz? Qual é sua última cena, o final que abre as portas de seu novo destino, o que o roteiro resolve destacar para dar conta dessa nova vida, da aventura de ser humana? Ela ganhou uma vagina e está indo ao ginecologista.

Greta disse que foi um jeito de dizer para as meninas que ir ao ginecologista não é motivo de vergonha, que até a Barbie faz isso, e vai acompanhada dos amigos etc. Ok, legal, a mensagem é boa, válida, e Margot Robbie é tão carismática que até nos anima para deixar os exames em dia.

Não estou dizendo de jeito nenhum que isso é ruim, mas vou dizer porque achei o pior da parte final.

No conjunto, sinceramente, precisa muito esforço pra seguir esse salto explicativo. O corte é brusco e não tem a Greta lá explicando. Porque, no contexto das piadinhas internas, o que o filme coloca é que a Barbie antes não tinha genitais (ela mesma diz isso em uma passagem cômica destacada).

Tudo bem falar de vagina, ótimo ter vagina, celebrar vaginas, usar canecas e camisetas com vaginas rebeldes ou sorridentes, cuidar da saúde vaginal. Tudo ótimo, mesmo, chega de tanta vergonha, de esconder absorvente, menstruação, de criar tabus sobre educação sexual escolar. Mas o filme é sobre uma jornada de desconstrução, de humanização, de quebra de paradigmas, de se tornar mulher. E é assim que ela termina/começa, na anatomia?

Ok, é uma possibilidade viável, mas, como diria certa vilã fashionista: “groundbreaking”.

Eu teria pelo menos, sei lá, feito a Barbie na Flórida, falando de menstruação numa escola (o governador fascista, futuro candidato à presidência dos EUA, está apoiando uma proposta de lei para proibir educadores de abordar o assunto com os alunos, isso é nosso mundo real no momento).

Enfim, não se trata só da Greta porque, afinal, ela não fez todas as escolhas sozinha, ela é bem-intencionada, bem galera, tem esse jeitinho Frances Ha, tem talento (e dizem que o director’s cut dela, ou seja, a versão que ela entregaria sem interferências, é mais legal, a gente gostaria que vazasse). O roteiro é dividido com seu parceiro Noah Baumbach, tem a Mattel no meio, o estúdio, Hollywood detesta as mulheres, todo esse baile que conhecemos.

Mas a visão do filme também é marcada por outra mão não-creditada e não menos grudada na cola patriarcal/colonial: a do feminismo liberal/branco, esse que tem crescido como linha auxiliar do que pretende combater, e que às vezes arrasta a gente de volta pra caixa junto com boas intenções.

Trocando em miúdos, Barbie tem sim seus bons momentos, traz boas pistas para discussões relevantes sobre o papel de homens e mulheres, vai ganhar merecidos prêmios de figurino e direção de arte, Margot é ótima, e eu recomendaria tranquila como programa pro meu eu adolescente. Por outro lado, o filme dá várias bolas fora ao ignorar as crianças e o papel da fantasia na realidade, ao se grudar a uma certa cartilha da descolândia padrão, e não rolou pra Vivian de hoje.

O saldo é positivo, sem grandes uaus.

Fiquei pensando aqui com meus botões pink. Não sei se chamar o filme de feminista é um tipo de barbarismo de linguagem ou se o próprio feminismo liberal e branco sofre de um caso específico e grave de barbierismo. Dadas as minhas pesquisas, eu votaria na segunda opção.

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