E se… a gente fosse além do “consumo consciente”?
O "consumo consciente" é uma faceta do comportamento individual bastante explorada na moda e tende a ignorar que, enquanto falamos sobre consumir de forma mais consciente, governos e corporações fazem acordos para, exatamente, aumentar o consumo.
Há alguns dias, um artigo intitulado “Pare de dizer às mulheres que elas têm síndrome de impostora”, escrito por Ruchika Tulshyan e Jodi-Ann Burey para a Business Harvard Review, tem colocado em cheque a visão individualista e o discurso neoliberal por trás da ideia de que mulheres são responsáveis por se sentirem incompetentes mesmo quando fazem coisas extraordinárias. O texto alerta para o machismo, o racismo, o sexismo, a misoginia e outras tantas formas de violência estrutural que afetam a vida – e, obviamente, a autoestima – das mulheres.
Essa é uma boa discussão, e segue a mesma linha do debate sobre “ativismo narcisista”, levantado após os acontecimentos no mais recente Big Brother Brasil, e pode se estender até o consumo consciente ou sustentável. Todos os exemplos servem para sustentar a afirmação de que, enquanto sociedade, tendemos a ignorar os problemas estruturais e individualizar soluções e responsabilidades em se tratando de questões socioambientais.
Para se ter uma ideia, o relatório Pulse of The Fashion Industry, lançado em 2017 pelo Global Fashion Agenda, entrevistou profissionais das maiores e mais reconhecidas empresas de moda do mudo, com níveis hierárquicos distintos. Entre as diversas perguntas contidas no questionário, havia a seguinte: “quais grupos de atores têm maior poder de influenciar a agenda de sustentabilidade da sua companhia?”. Agências reguladoras e políticas públicas apareceram em primeiro lugar, com 36%. Pressão dos consumidores apareceu apenas em terceiro lugar, com 30%.
No começo, eu me impressionava com como as pessoas eram rápidas em ignorar dados e informações sobre a problemática da narrativa atual sobre consumo ético. Mesmo em poder de informações capazes de comprovar que outras estratégias são necessárias e, às vezes, mais eficazes, o consumo ético era sempre colocado como ação central para mudanças significativas rumo à sustentabilidade na moda. É muito difícil fazer as pessoas mudarem de ideia quando esta já está concebida e é frequentemente repetida pela opinião pública. O alerta de que passar o cartão de crédito não vai “salvar o planeta” aterroriza muita gente.
Hoje, eu já consigo entender que estamos presos nessa espiral trabalho-consumo, em que o narcisismo é regra e nos faz enxergar tudo a partir da lógica do mérito e do poder. Afinal, o neoliberalismo não se resume a uma ideologia econômica, mas a uma “nova razão do mundo”, capaz de moldar a nossa existência, adentrando sem parcimônia nossa subjetividade e nossa forma de se relacionar conosco e com nosso entorno.
Ao olhar para políticas relacionadas à mudança do clima, a pesquisadora MacGregor aponta: “a frequente responsabilização do indivíduo, que se dedica a destacar a mudança de comportamento individual em vez de questionar as formas institucionais de exploração ambiental, tem servido para afastar a sociedade da atuação cidadã e do debate público e democrático sobre as implicações da crise o clima e políticas de contenção, mitigação e adaptação”.
O “consumo consciente” é uma faceta do comportamento individual bastante explorada na moda e tende a ignorar que, enquanto falamos sobre a necessidade das pessoas consumirem de forma mais consciente, governos e corporações fazem acordos geopolíticos para ampliar a produção e aumentar o consumo, principalmente em regiões com mão de obra barata e legislação ambiental enfraquecida.
Cada vez que nos esforçamos para responsabilizar indivíduos, estamos esquecendo que estes vivem dentro de uma estrutura que busca frequentemente, e de forma violenta, moldar e determinar o comportamento do todo.
Halina Szejnwald Brown, professora de ciência e política ambiental na Clark University e autora do report Fostering and communicating sustainable lifestyles: principles and emerging practices para o Programa Ambiental das Nações Unidas, nos lembra: “Todos os sistemas, o mercado, as instituições, tudo está calibrado para maximizar o consumo. A indústria de marketing e publicidade inventa novas necessidades as quais nem sabíamos que tínhamos”. No ensejo, a autora Kendra Pierre-Louis alerta para um dos efeitos colaterais do discurso do consumo ético: “ao posicionar sustentabilidade ambiental como uma escolha de mercado, semelhante a escolher um leite batido ou não, nós rebaixamos a urgência da nossa atual situação ecológica”.
Um dos motivos que nos leva a passar mais tempo falando de produtos e sobre quais produtos consumir do que tentando entender e buscar soluções mais pragmáticas para as questões socioeconômicas que impactam na saúde do planeta e na vida das pessoas tem a ver com o fato de que, antes mesmo do neoliberalismo, estamos sendo moldados para resolver problemas por meio do consumo.
O outro motivo pode ser a nossa dificuldade em mudar somada à sensação de impotência, o que nos leva a acreditar que “a corporação certa, o político certo, a filantropia certa, a tecnologia certa, o produto certo aparecerão e consertarão tudo”. Nós só precisamos comprar o tal produto, apoiar a tal empresa e esperar todo o resto acontecer enquanto continuamos pensando e vivendo da mesma maneira.
Dizer que consumo consciente não vai resolver os graves problemas sociais e ambientais que enfrentamos não é o mesmo que dizer que todos devemos comprar sem pensar ou desconsiderar totalmente o impacto das nossas escolhas de consumo. É apenas dizer que devemos ir além. Cada vez que nos esforçamos para responsabilizar indivíduos, estamos esquecendo que estes vivem dentro de uma estrutura que busca frequentemente, e de forma violenta, moldar e determinar o comportamento do todo.
E se… a gente colocar o “consumo consciente” no seu devido lugar ao contextualizar o debate e lembrar que nossas escolhas de consumo não são “naturalmente” nossas? Pode ser que ao seguir por outra rota, consigamos romper com a ideia de que viemos ao mundo apenas para fazer prosperar o capital por meio do nosso trabalho e do nosso consumo, seja ele verde/ético/sustentável ou não.
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