E se… nossas roupas fossem livres de veneno?

Iniciativas de sustentabilidade na moda derrapam no uso massivo de agrotóxicos na produção de matérias-primas.





Em 2017, o Brasil se tornou o maior mercado de agrotóxicos do planeta, movimentando um total de 8,8 bilhões de dólares (algo como 48,4 bilhões de reais). Enquanto seguimos com recordes de aprovação de novos rótulos, a pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo Larissa Bombardi anunciou, em carta aberta, que está deixando o país após sofrer insistentes ameaças de morte por sua pesquisa de 2019, publicada na Europa e intitulada “Atlas geográfico do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia”. Uma das publicações mais importantes em se tratando da análise sistemática de dados sobre uso de agrotóxicos no país, o Atlas chama a atenção pelos volumes expressivos utilizados nas commodities produzidas no Brasil que fluem no mercado internacional e faz alerta à comunidade internacional sobre os danos desse processo de intoxicação.

O anúncio da saída de Bombardi do país acontece em meio à nova ofensiva da bancada ruralista para aprovação da PL 6299/02, conhecida popularmente como PL do Veneno. Em meio ao pior momento da pandemia, os parlamentares que ocupam o Congresso veem a “oportunidade de resolver isso de uma vez”. “Isso” é a flexibilização no processo de aprovação de novos rótulos, mudanças nos critérios de avaliação de toxicidade e a possibilidade de comercialização dos rótulos com uma avaliação de segurança da própria empresa produtora do petroquímico.

A vontade de aprovação da PL – que afetará amplamente não só a vida e a saúde dos trabalhadores rurais e das comunidades próximas às plantações, bem como da população como um todo – sem diálogo com a sociedade civil e desconsiderando os alertas de entidades importantes, como a Anvisa, sinaliza o caráter unilateral da proposta, algo que deve deixar todos nós em extremo estado de alerta.

O veneno e a moda

Mas o que a moda tem a ver com tudo isso? O algodão é a quarta cultura que mais consome agrotóxicos no Brasil e é responsável pelo maior volume médio utilizado por hectare (28L/ha), ficando atrás, inclusive, dos mais famosos soja (12L/ha) e milho (6L/ha). Entre os agrotóxicos de destaque utilizados na cotonicultura está o glifosato, que corresponde a mais da metade do volume de agrotóxicos comercializados no país. Apenas o Estado do Mato Grosso consumiu cerca de 38 mil toneladas de glifosato em 2014. Em 2018, um estudo feito com mulheres expostas ao glifosato em Uruçuí, no sul do Piauí, região de cultivo de soja, milho e algodão, estimou que uma em cada quatro grávidas da cidade sofreu aborto espontâneo e que 83% das mães tinham o leite materno contaminado.

O país é o segundo maior exportador de algodão do mundo. Tamanha produção (e terra e renda) está centralizada em pouco mais de 300 empresas. Talvez a virada de narrativa inesperada é que esse algodão é considerado sustentável pela indústria da moda, e recebe a certificação internacional de boas práticas BCI (Better Cotton Initiative). O Brasil é responsável por 30% do volume total de algodão BCI produzido no mundo, com cerca de 75% de plumas e 1,12 milhão de hectares certificados (ou 1,12 milhão de campo de futebol). É em cima dessa certificação que a Abrapa (Associação Brasileira dos Produtores de Algodão) embasa seu discurso de sustentabilidade.

Enquanto o algodão é o grande protagonista dessa narrativa do veneno, a celulose solúvel, matéria-prima de uma das fibras mais utilizadas na indústria da moda, a viscose, é coadjuvante no enredo. Produzida a partir da polpa de celulose extraída principalmente do eucalipto, a celulose solúvel também é coisa do Brasil. A produção nacional da matéria-prima está centralizada nas mãos de duas empresas: Jari e Bracel. A primeira exporta 100% de sua produção, enquanto a segunda, 75%. As duas empresas juntas colocam o Brasil no ranking como 10º maior exportador de celulose solúvel do mundo.

Além de conflitos de terra e disputa de recursos engendrados pelas monoculturas de eucalipto e algodão, ambas culturas utilizam de sete a dez tipos dos agrotóxicos mais vendidos no Brasil, respectivamente. Em especial, o acefato, na 4º posição, com alto potencial carcinogênico atestado em vários estudos em roedores e em um estudo em cães. A exposição crônica a doses baixas é uma preocupação ainda não endereçada pela Anvisa. Já o Imidacloprido, na 7ª posição, é considerado um dos mais fatais para abelhas, polinizadoras importantes, o que gera preocupação tanto do ponto de vista econômico, quanto socioambiental.

Uma moda sem veneno

Considerando a existência de cenários alternativos, como foi muito bem analisado e elaborado no relatório Fios da Moda: Perspectivas Sistêmicas Para Circularidade, por que a moda tem se mantido tão silenciosa e inerte frente ao abuso de agrotóxicos para produção de seus produtos e a um cenário cada vez mais permissivo e indiferente à saúde da população? Essa pergunta, um tanto indigesta, deve ser ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre a relação da moda com a sociedade para muito além do vestir. Nesse sentido, inferir que a indústria da moda tem sido cúmplice da intoxicação da população não seria um exagero, seria uma constatação a partir não apenas do silêncio do setor, mas da sua constante validação do sistema BCI como está posto e seus questionáveis critérios de sustentabilidade.

Marina Colerato é jornalista, Diretora Executiva do Modefica, organização de mídia e pesquisa que atua por justiça socioambiental e climática por meio de uma perspectiva ecofeminista. É co-fundadora da Futuramoda, agência de comunicação e design, além de mestranda em Ciências Sociais pela PUC/SP.

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