E se… ser biodegradável não for sinônimo de sustentabilidade? 

A decomposição de tecidos, mesmo que feitos de fibras naturais, não é tão simples assim. Entenda por que o selo 100% biodegradável não é uma carta branca para o consumo.


Ilustração sobre tecidos biodegradáveis mostra mãos e várias roupas em um fundo com um campo verde
Ilustração: Mariana Baptista



Dentre as inúmeras ‘’buzzwords’’ que surgiram nos últimos anos no mercado da moda, o termo “biodegradável” tem sido um dos preferidos: plástico biodegradável, tecido biodegradável, 100% biodegradável etc.. A ideia é passar aquela tinta verde e ver se cola. Em outras palavras, ser biodegradável não é sinônimo de sustentabilidade, mas estão tentando te convencer que é. Acredito que depois da explicação que farei a seguir, você conseguirá entender minha afirmação. Vamos lá.

A biodegradação pode ser definida como um método usado pela natureza para reciclar resíduos e decompor materiais orgânicos em compostos que podem ser usados ​​como nutrientes por outros organismos. Podemos usar aquele exemplo clássico da fruta que cai do pé, alimenta passarinhos, fungos e bactérias num processo cujo “resíduo” nutrirá o solo para próximas frutificações. Dessa forma, a biodegradabilidade está relacionada principalmente ao potencial daquele material a ser ‘’desmanchado’’ por esses microorganismos [1]. 

Um material é definido como “biodegradável” se for capaz de se decompor em substâncias mais simples por decompositores naturais, e preferencialmente deve ser capaz de ser decomposto em um período de tempo relativamente curto [2]. 

Porém a biodegradabilidade exige algumas condições específicas para acontecer. A degradação de materiais biodegradáveis pode ocorrer de duas formas: aeróbica ou anaeróbica. A biodegradação aeróbica se refere a um processo onde microrganismos convertem oxigênio em água (H2O) para converter outros componentes em produtos mais simples, em um processo de decomposição da matéria orgânica na presença de oxigênio. Ou seja, nesse caso, sem oxigênio, sem biodegradabilidade. Os principais subprodutos do processo aeróbico são CO2 e H2O e o aumento de bactérias, fungos e outros microrganismos [3]. Os microrganismos em uma pilha de compostagem, por exemplo, são aeróbicos e biodegradam a matéria orgânica de maneira rápida e eficiente ao ar livre. 

Já na degradação anaeróbica, a decomposição ocorre pela ação de microrganismos na ausência de oxigênio. Essa degradação é a que acontece em aterros sanitários (e lixões). Nesse caso, os microrganismos não recebem o equilíbrio adequado de umidade, nutrientes e temperatura para biodegradar a matéria orgânica. As condições secas e pobres em oxigênio encontradas em aterros modernos fazem muitas vezes com que a matéria orgânica fique estável em vez de se decompor. 

Nesse processo, a decomposição anaeróbica gera altos níveis de gás metano – um potente gás de efeito estufa. O gás metano (CH4) é um gás com potencial de aquecimento 25 a 36 vezes maior que o CO2. No entanto, pode ser pelo menos parcialmente recuperado e queimado para produção de energia – embora poucas iniciativas estejam atualmente fazendo isso [4]. 

Muitas pessoas acreditam que os aterros são apenas grandes pilhas de compostagem – o que está longe de ser o caso. Além do gás metano gerado e das alterações na qualidade do solo, o chorume resultante do processo da degradação da matéria orgânica pode causar forte poluição nos cursos d’água quando o aterro não é bem construído e administrado [5].

Moda biodegradável?

Quando falamos em produtos de moda, a coisa fica um pouco mais complexa. Para começar, a grande maioria das peças comercializadas como “biodegradáveis”, normalmente devido à matéria-prima do tecido, são costuradas com linhas de poliéster, além de muitas vezes contarem com aviamentos, entretelas, forros, bordados, aplicações, etiquetas e outros acessórios que também são de origem sintética. 

Os cortes de tecidos por costurar, mesmo que feitos 100% a partir de fibras naturais, também não se salvam tão facilmente assim. A biodegradabilidade dos têxteis é influenciada por diversos fatores, como cristalinidade, grau de orientação, grau de polimerização (DP), hidrofilicidade/hidrofobicidade, a condição dos solos onde estão enterrados e as espécies de microrganismos que existem no ambiente no qual ele será descartado. O tipo de corante usado no tingimento e na estamparia também irão afetar a taxa de biodegradação do tecido ou produto – mesmo se forem utilizados corantes naturais [6]. 

A grande maioria das peças comercializadas como “biodegradáveis”, normalmente devido à matéria-prima do tecido, são costuradas com linhas de poliéster, além de contarem com aviamentos de origem sintética. 

Atualmente, quase nenhum tecido é comercializado sem passar por acabamentos e melhorias que afetam seu potencial de biodegradabilidade. Para atender ao padrão de qualidade da indústria, tecidos precisam passar por inúmeros processos desde a colheita da fibra até seu destino final – e tudo isso irá afetar a taxa de biodegradabilidade. Além desses beneficiamentos, às vezes a própria estrutura da fibra, mesmo que natural, não é propícia à biodegradação. A lã, por exemplo, é bastante resistente ao ataque de microrganismos devido à sua estrutura molecular e à sua superfície, o que dificulta bastante a penetração dos microrganismos na sua estrutura [2].

Quando fibras naturais (algodão, cânhamo, linho, seda) e fibras artificiais (viscose, tencel modal) são enterradas em aterros, elas produzem gases de efeito estufa potentes (por exemplo, metano), além da contaminação do solo por produtos químicos tóxicos de pesticidas, tinturas e tratamentos de acabamento [7]. Ah, e não esquecendo daquele 1 ou 2% de elastano não-biodegradável muitas vezes presente em tecidos vendidos como 100% fibra natural – fato que os fornecedores não tem atualmente a obrigação de informar.

Nesse contexto, poderia ser afirmado que a opção de compostagem (onde ocorre a degradação aeróbica) é a mais segura, tendo em vista os potenciais danos ambientais de têxteis “biodegradáveis” descartados em aterro. No entanto, mesmo em um ambiente propício como uma composteira, o têxtil que passou por todos aqueles beneficiamentos, tingimentos e acabamentos com produtos químicos nocivos ou metais pesados pode interferir de maneira negativa em todo o ecossistema de compostagem. 

Outro ponto importante levantado pela Fundação Ellen MacArthur é o fato de que a alta intensidade de recursos e a energia da atual produção de vestuário fariam com que uma grande quantidade de valor fosse perdida quando peças de vestuário fossem compostadas em vez de recicladas. Além disso, a fundação ressalta que o valor real do nutriente que pode ser restaurado para o solo através da decomposição de têxteis é baixíssimo – o algodão, por exemplo, possui níveis muito baixos de nitrogênio e fósforo.

Porém quantas pessoas realmente conseguiriam fazer a compostagem individual de um produto de moda? Sejamos sinceros – fabricantes de tecidos e peças de vestuário que comercializam seus produtos como “biodegradáveis” não parecem estar pensando de forma realmente circular. O perigo de tais empresas serem acusadas de greenwashing por venderem produtos sob esse adjetivo fica cada vez maior. 

Recentemente, a empresa neozelandesa Kathmandu retirou o anúncio de sua jaqueta BioDown “biodegradável” após uma reclamação à Autoridade de Padrões de Publicidade (ASA).  A reclamação afirmava que o anúncio era enganoso, pois dava a impressão de que a jaqueta se biodegradaria em um ambiente regular de aterros. As minúsculas letras na parte inferior do anúncio, no entanto, diziam que a jaqueta só poderia se biodegradar em um ambiente de aterro anaeróbico biologicamente ativo. A empresa apoia suas alegações com resultados de seus próprios testes científicos. 

A autoridade responsável, porém, informou que o teste provavelmente teria sido feito sob condições controladas e otimizadas em um laboratório, e não em um aterro. As condições do teste podem não refletir a realidade enfrentada pela maioria dos resíduos domésticos na Nova Zelândia, tendo em vista que os resíduos tendem a ser jogados em uma lixeira e acabam em um aterro que, ao contrário do teste, é um ambiente exposto a muitas variáveis ​​e nem sempre é o ideal para a biodegradação.

Em conclusão, o termo “biodegradável” não deveria ser utilizado como apelo de sustentabilidade tampouco ser lido como uma forma de lidar com nosso modelo de superprodução e consumo. Utilizar a biodegradação como justificativa para a venda ou consumo é automaticamente sugerir que o produto pode seguramente ser jogado fora, indo parar em um ambiente natural em algum momento (com a ilusão de que irá desaparecer com o passar do tempo). Tal lógica de pensamento acaba incentivando o sistema linear de produzir-extrair-descartar, fazendo com que o consumidor pense que o produto pode ser comprado, usado e descartado de maneira segura e até mesmo “sustentável”. Mais importante seria que produtores e manufatureiros assumissem a responsabilidade de colocar mais um produto no mundo e garantir que aquele produto passará por processos de remanufatura, revenda ou reciclagem – entrando novamente no ciclo técnico, que, conforme os princípios da economia circular, é o caminho mais eficiente a ser seguido (e aqui entra a urgência da rastreabilidade). 

Entre os caminhos possíveis, necessários e capazes de realmente gerar impacto positivo estão: criação de leis e normas relacionadas ao uso do termo “biodegradável” (algo que já é realidade em alguns países) e explorar a possibilidade da criação de um centro de compostagem específico para têxteis (e, portanto, também explorar novos meios de fabricação de tecidos que se adequem aos critérios do processo). Isso pode também ser visto como um conceito potencialmente interessante para o fim de ciclo técnico, evitando colocar em prática ações que podem (e devem) ser consideradas greenwashing

* Com edição de Marina Colerato. 

Eduarda Bastian é mestra em têxtil e moda com foco em sustentabilidade pela ArtEZ University of the Arts. Trabalha com pesquisas relacionadas principalmente a fibras e materiais, e como educadora no SENAI de Santa Catarina. É presidente do comitê têxtil da Associação Nacional do Cânhamo Industrial.

Marina Colerato é jornalista, está como diretora-presidente do Instituto Modefica, faz mestrado em Ciências Sociais na PUC/SP e reflete sobre política, feminismos e o fim do mundo na sua newsletter Lado B. Você pode acompanhá-la no Instagram @marinacolerato.

Referências

[1] Sular, V., e Devrim, G. Biodegradation Behaviour of Different Textile Fibres: Visual, Morphological, Structural Properties and Soil Analyses. FIBRES & TEXTILES in Eastern Europe, 2019, 27, 1 (133), pp. 100-111. DOI: 10.5604/01.3001.0012.7751
[2] Arshad, K., et al. Biodegradation of Natural Textile Materials in Soil. Tekstilec, 2014, 57 (2), pp. 118–132. DOI: 10.14502/Tekstile 2014.57.118–132
[3] Nofal, Reem. Biodegradable Textiles, Recycling, and Sustainability Achievement. Handbook of Biodegradable Materials, 2022, pp. 1-37. DOI: 10.1007/978-3-030-83783-9_54-1
[4] Folino, A., et al. Biodegradation of Wasted Bioplastics in Natural and Industrial Environments: A Review. Sustainability, 2020, 12, 6030. DOI: 10.3390/su12156030
[5] Serafim, A., et al. Impactos ambientais decorrentes do aterro sanitário da região metropolitana de Belém-PA: aplicação de ferramentas de melhoria ambiental. Caminhos de Geografia Uberlândia, 2011, 12 (39), pp. 297 – 305. DOI: https://doi.org/10.14393/RCG
[6] Wojnowska-Baryła, I., et al. Strategies of Recovery and Organic Recycling Used in Textile Waste Management. Int. J. Environ. Res. Public Health, 2022, 19, 5859. DOI: https://doi.org/10.3390/ijerph19105859
[7] Cuiffo, M., et al. Thermochemical degradation of cotton fabric under mild conditions. Fashion and Textiles, 2021, 8 (25). DOI: https://doi.org/10.1186/s40691-021-00263-8 

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