E se… só comprássemos roupas usadas?

Será mesmo que as roupas mais sustentáveis são aquelas que já existem?


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Talvez você já tenha ouvido falar por aí que “a roupa mais sustentável é aquela que já existe”. O movimento por uma moda mais sustentável, não só no Brasil como no mundo todo, é realmente um grande entusiasta dos brechós, das iniciativas de troca, das lojas de segunda mão, e isso faz sentido.

Na década atual, compramos mais roupas do que jamais compramos na história, e essas roupas estão sendo usadas 36% menos vezes do que 15 anos atrás. Isso tem um enorme custo que não se reflete nos preços da etiqueta.

Peguemos um importante exemplo: a aceleração da produção tem feito as emissões de CO2 por parte da moda dispararem. Estima-se que 5% das emissões de 2015 vieram dessa indústria, porcentagem 21 vezes maior do que os setores de aviação e navegação combinados, totalizando 1.2 bilhão de toneladas de CO2.

Com a produção estimada para 2030, a contribuição da moda para o colapso climático deve aumentar entre 49% e 63%. Visto que essa contribuição deveria diminuir para mantermos o aumento da temperatura global em 1.5ºC, conforme estipulado no Acordo de Paris, e que uma parcela significativa das emissões na moda está na produção de novas fibras e têxteis, o entusiasmo do movimento com as roupas usadas faz realmente bastante sentido.

Entretanto e infelizmente, quando vivemos num sistema complexo como o nosso, nada é tão simples, e ações e reações não acontecem necessariamente de forma linear e isolada.

Se só comprássemos roupas usadas, nós precisaríamos pensar nas cerca de 75 milhões de pessoas que trabalham na indústria da moda em todo o mundo, com mais atenção para as trabalhadoras e trabalhadores do setor da confecção, onde está alocada importante parte da mão de obra da moda. Não é uma mudança impossível. Na verdade, digo que é uma mudança necessária por vários motivos: o trabalho da costura, como ele é na produção em massa (repetitivo, desgastante e pouco criativo), deve acabar.

Mas pensar em como essas trabalhadoras e trabalhadores seriam realocados no mercado de trabalho, e o que precisa ser feito para tal transição, é imprescindível nesse exercício imaginativo. Afinal, se do dia para noite só comprássemos roupas usadas, milhões de pessoas ficariam sem recursos e (mais) vulnerabilizadas. Foi exatamente isso o que aconteceu com a paralisação do varejo por causa da pandemia do coronavírus. No The New York Times, uma matéria da jornalista Elizabeth Paton, intitulada “Nossa situação é apocalíptica”: trabalhadores de vestuário de Bangladesh enfrentam ruínas mostrou o caos que parte da população de um dos maiores países exportadores de vestuário está enfrentando com os shoppings vazios e os pedidos das marcas cancelados ou postergados.

Entender a necessidade de repensar a produção em escala e a dependência econômica de milhões de pessoas deste modelo é crucial para termos conversas mais profundas e atitudes realmente à altura da complexidade dos desafios criados pelo capitalismo global.

Eu estaria contando só meia história caso não falasse também que essa conversa exige olhar para um ponto delicado, porém por vezes ignorado. Só comprar roupas de segunda mão não muda o fato de que essas roupas serão incineradas ou descartadas hora ou outra num aterro sanitário ou lixão. O que significa que comprar roupas de segunda mão exige dar um passo atrás e repensar o fluxo de consumo. O que nós vemos nos espaços de consumo de usados e troca é que o consumismo permanece sendo um motivador importante.

Corremos o risco também de incentivar ainda mais o consumo de produtos novos gerando a sensação de que qualquer compra por impulso pode ser equilibrada pelo sentimento de alívio com a venda ou a troca.

A preços de barganha ou de graça (quando falamos de troca), não é raro pegar no ar a euforia de uma Black Friday. Se não falarmos abertamente sobre sociedade do consumo e o que a move (concentração de capital, publicidade, pertencimento) nós podemos até trocar o produto, mas manteremos a lógica. Corremos o risco também de incentivar ainda mais o consumo de produtos novos gerando a sensação de que qualquer compra por impulso pode ser equilibrada pelo sentimento de alívio com a venda ou a troca.

Aqui, porém, não devemos cair na tentação, tão comum hoje em dia, de “responsabilizar o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas”. O que Karl Marx quer dizer no prefácio da primeira edição d’O Capital, livro 1, é que as mudanças precisam acontecer em âmbito coletivo e sistêmico. Somos parte de uma engrenagem — concentração de capital, publicidade, pertencimento — e não estamos acima dela. Mais importante é questionar as estruturas do que apontar os indivíduos.

Para finalizar a nossa reflexão, eu trago uma última provocação: será mesmo que as roupas mais sustentáveis são aquelas que já existem? As roupas que usamos — que carecem de um verdadeiro processo de design — podem continuar gerando impactos negativos, como liberação de microplásticos, algo que acontece no uso e manutenção de roupas feitas com tecidos sintéticos ou artificiais. Precisamos também levantar uma ampla discussão sobre universalização do saneamento básico, já que cerca de 30% da população global não tem acesso ao serviço. São necessárias medidas efetivas para que esses microplásticos sejam retidos antes de alcançarem mares e lagos e não saiam contaminando animais e seres humanos.

É mais importante questionar as estruturas do que apontar os indivíduos

Por todas essas complexidades — acompanhadas de possibilidades —, a moda é esse vasto campo de geração de ideias para transformações positivas. Se a gente só usasse roupas usadas muitas coisas boas poderiam acontecer, desde que aceitemos o desafio de olhar não só para a moda, mas para a sociedade e contextos políticos e econômicos nos quais ela está inserida.

Marina Colerato é bacharel em Design de Moda pela Belas Artes, pós-graduanda em Gestão de Projetos pela FGV, pesquisadora independente de economia política, mudanças climáticas e questões de gênero. É editora chefe do site Modefica e é co-fundadora da agência de design e comunicação Futuramoda. Organiza o Buen Vivir Book Clube, clube de leitura focado em pós-capitalismo e ecologia a partir de uma perspectiva latino-americana.

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