São Paulo, junho de 2020,
Ei, quero-quero
Delícia tudo o que você tem mandado. Me espanta que a gente ainda tenha língua doce no vapor de tanta desgraça. Pensando aqui. Dizem que se inventa a boca pra encontrar o leite. E também se inventa o leite pra dar um sossego à boca, que, claro, pede um monte de coisa. Eu às vezes acho que funciona tipo naquele poema da Adília Lopes: ela não sabe se viu primeiro as estrelas ou o boyzinho e conclui que enxergou estrelas quando ele apareceu. A boca de fora pra dentro, o leite de dentro pra fora, ou também que vice-versa, mas a fome em todo lugar, a fome sempre. Tem gente aí doidinha pra acertar essa ordem querendo entender de tudo. Você deve estar dando risada, e eu também acho tudo engraçado. Penso as maiores bobagens, o que não me impede de cuidar com a maior seriedade dessas coisas, aprendo a não entender tão rápido. Estranho que fome tenha virado sinônimo de passar fome. O mapa da fome mostra quem quer e não tem o que comer. Além de dar fraqueza no corpo isso vai matando a vontade. Se milhões morrem de fome, não é que tenha faltado comida, mais certo é que tenha sobrado projeto de matar. O jogo do urubu vai tirando o alimento, mas quer arrancar mesmo é a fome de viver. A pessoa é tão massacrada que perde a raiz dos dentes, não sobra unha capaz de arranhar o chão. Tem nome pra isso, mas acho que uma amiga chama do melhor jeito, de energia caixão. Na terra da minha mãe as comadres trabalhadoras falavam mal das mulheres da chefia da cidade, gente de política, sobrenome importante. Nessas casas as empregadas cozinhavam, mas não podiam comer. Só na cozinha e depois da “gente de família”. Eles devoravam toda a carne e os acompanhamentos feito uns bichos ferozes, faziam espetáculo. Deixavam o arroz com feijão, os donos da casa, e ainda elogiavam o banquete com língua de cobra. Não à toa, boa parte dessa caixãozada tenha legado à sua descendência um tipo de bico azedo bastante peculiar. Não é bravo nem invocado, é um bico de quem viu comer e não gostou. Um bico de quem, cobiçando a fome do outro e não podendo ter, quis acabar com ela. Um bico que faz questão de mostrar, mas não quer deixar testemunhas…
Xô, ave-fria! A gente vai na contramão. Tentando alimentar o mistério, fazendo brinde com brisa, procurando não se achar nem guardar tanto a última bolacha do pacote. Desejando às vezes um bombom, uma surpresa. Esses dias aqui no prédio disseram que a vizinha estava no hospital, disparando o alerta de micróbio. Desta vez, ainda bem, era alarme falso. Ela voltou pra casa saudável, de braços cheios de vida com seu filho, mais um corajoso botando a cara no sol nesse ano tão pesado. Eu agora escuto os dois e o pai, os três jovenzinhos no barulho e no silêncio da fome recém-nascida, promessa que se renova até no caos. Minha filha diz que não pode gritar demais pra não assustar o sono do bebê. Ela já sabe o que é cuidar. Desejo a todos a mesma chance de paz, a todos os que são e que um dia foram bebês, que o bicho-papão não consiga nunca roubar de vez seu sono, seu alimento, sua música, sua fome. Abro a janela e escuto os piados de manhãzinha. Não é que seja fácil e sem perrengue, mas parece que estão alegres.
Eu sei, na TV, nas manchetes, nos números, nos cemitérios, tudo diz que o homem vem aí espalhando sua energia caixão muito literalmente. Todo dia essa campanha articulada pra transformar a realidade em destino trágico incontornável.
Só que eu bem que vi o bem-te-vi, e muita gente também anda vendo por aí, uma multidão cada vez mais capaz de fazer melhores escolhas. A luta geral segue, me dedico cada vez mais ao trabalho que reconheço como meu no meio do coletivo.
Mas a gente também quer ir pra Vênus, dar asa ao que não existe, tombar com a cara no chão. A fome não liga. Entrega mel, band-aid, boleto, escreve à mão um refrão.
Cartinha de morango, Strawberry letter 23, já ouviu essa?
Chama no amor, beija-flor.
Um beijo,
V.
Ilustração: Marcela Scheid
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