Etarismo: essa conversa começa pelo racismo

Para as mulheres negras a velhice é sempre precoce. À margem do ideal de feminilidade que se estabeleceu ao longo da história, somos velhas desde a infância.


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“As pessoas falam sobre envelhecer com elegância, que é o que elas querem fazer, é claro. Então, naturalmente, elas não querem olhar para pessoas que podem ter paralisia, as que não podem comer bem, as que podem sentar no meio-fio e atravancar a vizinhança com suas bengalas. Até que nossa sociedade construa (uma) perspectiva mais equilibrada sobre os grupos de idade, isso leva ao retraimento amargo dos idosos.”
Robert Butler, Washington Post, 1969.

O assunto da moda é: etarismo.

Não me entenda mal, eu sou favorável à discussão desse assunto mas, contrária à maneira desleixada e racista com que vem sendo tratado. Por isso, te convido a se aprofundar nele, já que nada do que valha a pena saber nessa vida é raso. Afinal, o que é etarismo e por que esse assunto está intimamente ligado, principalmente, ao racismo?

Bom, a palavra é uma adaptação do inglês ageism, que, ao pé da letra, significa idadismo.

E consiste em um conjunto de práticas baseadas em estereótipos ou em ideias depreciativas que se expressam em atitudes discriminatórias e preconceituosas contra indivíduos ou grupos com base em sua idade ou faixa etária.

Não podemos negar que provavelmente nós já presenciamos situações onde a idade foi motivo de piadas, até certo ponto inocentes ou despretensiosas. Até por isso, muita gente acha estranho que isso seja algo que ganha contornos mais complexos.

Mas, infelizmente, em uma sociedade desigual e hierárquica como a nossa, isso não é apenas casual, ou seja, torna-se uma questão sistêmica, que piora as relações e o desenvolvimento humano de alguns grupos que já são fragilizados pelas estruturas sociais marcadas pelas opressões.

O termo foi cunhado em 1969 por Robert Neil Butler, um médico psiquiatra que tinha 42 anos na época e chefiava o Comitê Consultivo sobre Envelhecimento do Distrito de Columbia, em parceria com a National Capital Housing Authority (NCHA). Em uma entrevista para Washington Post, Butler usou o termo “ageism” para descrever a apreensão de proprietários de casas em Chevy Chase, Maryland, um subúrbio afluente de Washington, DC, que estavam angustiados com a decisão do NCHA de transformar um complexo de apartamentos em habitação pública.

A matéria escrita pelo jornalista Carl Bernstein, intitulada “Idade e medos raciais vistos na oposição à habitação”, teve grande repercussão, e a imprensa passou a usar o termo para falar sobre a questão da pessoa idosa.

A princípio, o etarismo ou preconceito de idade foi observado, principalmente, em relação às pessoas negras e pobres em processo de envelhecimento, cujos estereótipos negativos que carregavam se somavam uma suposta invalidez, que se agravaria com o avançar da idade.

O etarismo é basicamente uma repulsa à velhice e ao processo de envelhecimento, que se manifesta através de práticas discriminatórias contra idosos nas relações sociais em si, sobretudo no âmbito familiar, e em práticas e políticas institucionais que perpetuam estereótipos sobre pessoas idosas, todos eles ligados a incapacidade, degeneração ou degradação física e mental. Pode haver etarismo com os mais jovens?

Sim, mas não é nem de longe com a mesma intensidade e com as consequências trágicas com que acomete os mais velhos. O etarismo com pessoas mais jovens, em geral, se manifesta principalmente no ambiente profissional (negando avanços, com a alegação de incapacidade pela pouca idade) e nas relações afetivas, sobretudo entre heteronormativas, onde o homem privilegia a escolha de mulheres mais novas ou até adolescentes, para que seu poder seja mais proeminente sobre ela.

Mas o curioso é que o conceito em si, bem como suas reais práticas, como tudo que cai em solo brasileiro, onde as pessoas rejeitam os estudos mais profundos em detrimento das definições rasas ou que soam mais palatáveis ao mercado e ao consumo, tem sido vergonhosamente distorcido.

Todas, absolutamente todas as discussões sobre etarismo devem passar pelo racismo, tendo em vista que foi a partir dele que se pôde observar a ocorrência dessa prática de aprofundamento das opressões de raça e, posteriormente, de gênero.

Isso não tem acontecido nos meios midiáticos, que poderiam levar o debate com qualidade suficiente para conscientizar a população sobre a gerontofobia, por exemplo, que é o medo óbvio que as pessoas desenvolvem do processo de envelhecimento. Para uma mulher branca, autoproclamar orgulho das marcas da idade, exaltar o cabelo branco ou grisalho, expor o corpo flácido e com rugas pela ação do tempo tem sido glamouroso, já que as mulheres brancas sempre foram o padrão único de beleza. É leviano pensar que a idade altera esse privilégio completamente.

É fato que mulheres brancas sofrem com críticas opressivas e cobranças sobre o descolamento entre juventude e beleza. Mas isso não apenas tem sido contornado, como tem se colocado como uma vantagem. Já para as mulheres negras a velhice é sempre precoce: somos velhas desde a infância, simplesmente porque sempre ficamos à margem da ideologia de feminilidade que se estabeleceu ao longo da história e que definia um conjunto de atributos, como não trabalhar fora do ambiente doméstico, ter uma aparência frágil, que denota pouca força física, e um comportamento que não confronta homens. Imagine que as mulheres negras, ativas trabalhadoras braçais do período escravista e sexualmente usurpadas, podiam se dar ao luxo de atender a esse estereótipo? E isso envolvia a juventude e seus sinais, estrategicamente reprimidos nas meninas negras, para justificar a exploração de seus corpos, tanto para o trabalho quanto para o sexo.

O preterimento afetivo se aprofunda com o passar da idade e a solidão torna-se a única alternativa, já que, além da relação afetiva que não acontece,o círculo de amizades também se reduz drasticamente, tendo em vista que, tradicionalmente, estabelecemos relações de amizade dentro da faixa etária a qual pertencemos e, sendo assim, todas estarão, possivelmente, passando pelo mesmo processo.

Ao reduzir a discussão sobre etarismo a mero enfrentamento estético e protestos por relações afetivas com diferenças de idade, tal qual os homens fazem, deixamos de discutir os altos índices de violência contra o idoso, que é uma das faces mais perversas desse conceito.

Outro sinal preocupante de esvaziamento dessa discussão tão importante e intimamente ligada à questão racial e de classe, tanto quanto de gênero, é a falta total de proposições.

A impressão que dá é que colocar mulheres mais velhas em capas de revistas suntuosas é a solução, quando, na verdade, pode ser uma faca de dois gumes, já que abre mais um padrão a ser seguido: o da velhice sensual.

Claro que a sexualidade e a autoestima são parte da abordagem do etarismo, uma vez que a gerontofobia abala e fragiliza muito o bem-estar mental das pessoas em processo de envelhecimento, e devem ser confrontadas no bojo desse assunto. Mas, em um mundo lotado de rígidos padrões excludentes, essencialmente racistas e elitistas, definitivamente não precisamos de mais um.

Por último fica a dica:

– Desconfiem de discussões sobre etarismo que não o situa como um instrumento de opressão e que não tenham uma abordagem interseccional e decolonial (reparem como as mulheres norte-americanas e europeias em processo de envelhecimento, brancas, esguias e ricas, são as que estão sendo estampadas como símbolo de luta contra o etarismo. Mas são as não brancas, latinas e não ocidentais as que mais sofrem com a violência na meia e na terceira idade).

– Discussões sobre etarismo que não abordam a gerontofobia, o medo de envelhecer, também esvaziam o assunto.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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