Eu crio, tu crias. Todos somos criativos

A admiração honesta pelo outro, com um olhar neutro e curioso, é um estímulo poderoso para a nossa criatividade.


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Peço licença para atender o chamado carinhoso que tive de leitores queridos, para contar sobre meu processo criativo. Ano passado, 2020, um dos anos mais loucos e angustiantes que vivi em quatro décadas e meia de existência (tenho 45 anos!), fui apontada por uma revista de tecnologia e inovação como uma das 50 pessoas mais criativas da internet no Brasil.

Poxa, eu tenho “militado” ao longo da minha vida pela autonomia do pensamento e das escolhas, pelo desenvolvimento da autoestima, pela autenticidade. Mas não tinha me visto nesse lugar, o de pessoa criativa.

Comecei a pensar sobre isso e conversar com pessoas que achavam a indicação muito merecida, e cheguei a conclusão de que muitas pessoas me veem assim. Isso é uma alegria pra mim.

Mas será que eu sou alguém especial, dotada de uma função humana especial ou um talento acima da média que a maioria das pessoas não alcança?

Indiscutivelmente, não.

Uma rápida (e superficial) pesquisa sobre a etimologia da palavra criatividade nos permite descobrir que “criatividade” é um substantivo feminino que vem do latim creatus, que significa criar.

Nos dicionários tradicionais, como o Aurélio por exemplo, a criatividade é definida como a capacidade de criar, inovar, inventar. Alguns definem criatividade como talento ou inteligência inata ou adquirida para produzir ideias ou trazer soluções diferentes para situações simples.

Em todas as definições, concluímos que a criatividade não é algo extraordinário ou que só algumas pessoas especiais possuem. É uma habilidade que todos temos e que podemos desenvolver e aprimorar ao longo de nossas vidas, desde a infância.

Então, o que me faz criativa? Qual é o meu processo de desenvolvimento dessa habilidade? O contato profundo com pessoas. Você pode se perguntar:

“Só isso?”. Mas saiba que esse “só” é muito mais do que parece. Ao longo da minha vida, sendo uma pessoa negra, tive que lidar com o desinteresse imediato das pessoas, que surge da crença na inferioridade dada pela raça. Eu via pessoas ao meu redor me subestimando, mas sempre me percebi como alguém que tinha imensa vontade de contribuir e disponibilizar minhas habilidades para o crescimento e bem-estar dos que me cercavam. Sofria muito com isso, porque sempre acreditei que todas as pessoas têm muito mais a oferecer do que demonstram. Mas o racismo, por exemplo, é uma das coisas que limitam nossa visão sobre talentos com os quais cruzamos em nossa caminhada humana. Eu resolvi ser diferente, adotar uma atitude diferente da que me foi imposta.

Resolvi sempre mergulhar nas pessoas que admiro e extrair delas algo que pudesse ressoar em mim ou me fazer enxergar algo que poderia me faltar. Independentemente de gostar ou não de alguém, o ato de admirar com honestidade nos faz mais criativos.

Admirar com honestidade é não superestimar ou subestimar nada que captamos das pessoas em um primeiro contato, mas observar com o olhar neutro e curioso cada traço que as compõem.

Pessoas são universos a serem explorados. Isso é uma convicção minha. Quem não admira não enxerga profundamente o infinito particular de cada pessoa que atravessa seu caminho. Pessoas são mares que nos convidam ao mergulho constante. E se permitir esse mergulho é observar, ouvir, interagir, aprender e compreender o que permeia a existência delas. A partir daí, temos elementos para trilhar novos caminhos. E, andando por esses caminhos, descobrimos novas paixões e muitas limitações interiores desconhecidas em nós mesmos. Um exemplo prático para tentarmos sair da abstração: uma pequena empresária em expansão reencontrou uma antiga amizade e, após uma tarde de conversa, chegou à conclusão de que a amiga tinha se tornado irritante. Em nome dos velhos tempos, aceitou convite para novos encontros e teve um insight poderoso. Acabou entendendo que o asco que estava sentindo diante daquela que foi uma de suas maiores amizades da vida se deu porque as afinidades se perderam com o tempo, os interesses eram outros. Teve a ideia de averiguar gostos em comum entre seus funcionários e criou o “dia da aproximação” na sua empresa, que seria um momento em que todos conversariam sobre um determinado assunto. Com isso, seus funcionários passaram a descobrir afinidades em comum e os conflitos no ambiente de trabalho diminuíram. Ela mesma acabou retomando a admiração pela amiga e reconstruindo o relacionamento a partir de novas identificações.

Essa história é bem resumida, não foi assim tão fácil, mas a moral é: enxergar pessoas para além do que os olhos permitem é um processo criativo poderoso e eficiente, que abre portas inimagináveis ou, no mínimo, nos apresenta nossos olhares diante dos fatos, diante da vida. Esse tem sido meu processo criativo.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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