O que orixás têm a ver com Carnaval?

Sobre samba, suor, ritmo e o mistério da risada de Exu


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“O ritmo é a arquitetura do ser humano, a dinâmica interna que lhe dá forma. O ritmo se expressa através de meios os mais materiais, através de linhas, cores, superfícies e formas de pintura, nas artes plásticas e na arquitetura. Através do acento na poesia e na música, através dos movimentos na dança. Com esses meios o ritmo reconduz tudo no plano espiritual: na medida em que ele sensivelmente se encarna, o ritmo ilumina o espírito”. O pensamento é do poeta, político e intelectual senegalês Leopold Senghor, que em suas contribuições ao conceito de negritude não ignorou as belezas da percussão rítmica, uma das grandes bases da música popular brasileira. MPB que sabemos, é essencialmente afro-brasileira.

Num ano atípico, com um Carnaval semi-proibido (nas regiões brancas e ricas sempre dá-se um jeito, o jeitinho brasileiro quase sempre racista, já nas periferias a compreensão é pouca) e outro oficial, embora fora de época. Dado o que temos vivido como país, dois parece até pouco. Não se trata exatamente de ” extravasar”, no sentido de liberar uma carga qualquer, embora isso também esteja envolvido, mas de uma festa capaz de abrir caminhos para que algo de novo se produza, dependendo do envolvimento.

Em seu livro Segredos Guardados, Orixás na Alma Brasileira, o sociólogo Reginaldo Prandi diz assim: “o mito que fala da criação da religião dos orixás ensina que louvar os deuses é cantar para eles e fazê-los dançar junto aos humanos. A união dos homens com os deuses se realiza ritualmente numa assembleia de confraternização presidida pelos toques dos tambores em que ritmos, melodias e letras, sobretudo ritmos, servem para chamar as divindades”. Ele está falando sobre os candomblés, mas a ligação com o Carnaval não é difícil de ouvir. Nesse ano, especialmente, os orixás apareceram nos desfiles das escolas de samba de forma bastante viva e central.

Eles, é claro, estão ligados de muitas formas às origens do samba e do Carnaval, inicialmente na Bahia, com os cortejos e afoxés, mas depois de forma ampla. Mas de certa forma foram sendo afastados da história. Os orixás e as religiões de matriz africana têm acompanhado a história da herança africana no Brasil desde o início dos processos de colonização e escravidão. Não só como testemunha ou lugar de acolhimento pontual, mas como parte ativa nos processos de luta e transformação, como construção de afetos em comunidade.

No entanto, graças às estruturas racistas do sistema, ainda são alvo dos piores preconceitos.

Assim, a entrada majestosa de Exu, dono do enredo da Grande Rio, e de Oxóssi, homenageado pela Mocidade, são carregadas de simbolismo. “Grupos estigmatizados, sistematicamente excluídos, vêm reivindicando participação em várias instâncias da vida social. Não parece justo, por exemplo, que a população negra não possa participar do carnaval de uma maneira mais efetiva depois de ter criado e lutado pra preservar as escolas de samba e o próprio samba”, diz o babalorixá, antropólogo e doutor em Ciências Sociais Rodney William em seu livro Apropriação Cultural.

Se para as religiões afro-brasileiras o corpo é entendido em conjunto a ideia dos “templos vivos que são seus filhos”, nas palavras de Roger Bastide no seu As Religiões Africanas no Brasil, quando Exu aparece comandando a festa muita gente dança com ele. É claro que esse momento pontual não resolverá sozinho o problema da apropriação e da brutalidade da desigualdade, que dá as caras inclusive no auge das festas e da diversão.

Só não é possível ignorar a força dessa presença, especialmente num país onde a escalada evangélica, e sua atual mistura específica de poder econômico, controle político e religião, colocou como uma de suas premissas demonizar e esmagar todos os rituais, mitos e práticas do candomblé e da umbanda, assim como das religiões dos povos indígenas. Não se trata mais aqui do sincretismo, com sua trajetória complexa de perdas e ganhos, entrega e resistência, mas de uma guerra que passa pelo simbólico e chega à literalidade de tocar fogo em terreiros.

Exu nesse ponto foi dos mais visados. E ler nos grandes portais do país uma série de matérias que o afastam da figura cristã do demônio é no mínimo digno de nota. Exu, mensageiro, senhor dos caminhos, o que abre a gira, a possibilidade de transformar, o que fala todas as línguas, o insubmisso, aquele que mata um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje.

Dado o caráter fascinante de suas características, se fosse grego, cristão ou branco, Exu estaria, como cantou Elza Soares, nas escolas. Não só nas de samba, mas ensinado como parte de nossa cultura. Na psicanálise, por exemplo, é ainda muito recente, e em geral reticente, o estudo dos mitos iorubás ligados às religiões africanas. É algo que precisa ser revisto e mudado.

Ainda no livro de Prandi, ele conta como na casa lendária de Hilária Batista de Almeida, a tia Ciata, a música funcionava como eixo de ligação. Tia Ciata foi mãe de santo e cozinheira, mas nos termos de hoje seria uma agitadora e produtora cultural, uma das maiores, cuja importância no desenvolvimento do samba a partir do Rio de Janeiro foi fundamental. “Em casas como as de tia Ciata conviviam a música sacra dos toques de candomblé, o gênero musical conhecido como choro e, no quintal, o samba de roda trazido da Bahia”, escreve ele.

Se a bossa nova e as mudanças sociais e urbanas trataram de embranquecer o samba e o Carnaval, eles não se tornaram menos pretos por isso. Não se trata apenas de uma questão de preservação ou volta às origens, mas de um jeito de fazer, de um traço que permanece sendo ouvido na confusão das letras, no ritmo dos toques. Embora haja tradição, o Carnaval é também espaço de exercício e criação.

Os orixás são poderosos, mas não são perfeitos, imunes a sentimentos e paixões. Seus itãs (relatos e histórias míticas) são extremamente ricos em forma e conteúdo, e suas contradições botam em xeque as construções de identidade como as conhecemos no capitalismo. Não apenas é uma pena, como projeto de apagamento que eles sejam tão pouco lidos.

Em vez disso somos sufocados com demonizações infundadas, e o racismo se serve de seu arsenal de sempre para atacar tanto pessoas negras como orixás: demoníacos (inferiores), vagabundos, cheios de luxúria, preguiçosos (não-sacrificiais). Há pessoas negras de todas as religiões, evidente, e todas as religiões devem ser respeitada, claro.

Mas dizer isso, “todas as religiões devem ser respeitadas” na atual conjuntura pode cair no mesmo buraco hipócrita dos defensores do “racismo reverso” e do “todas as vidas importam”. A questão é que questões de raça e classe fazem com que as religiões afro-brasileiras sejam alvo.

Uma pesquisa sobre aspecto político na história do candomblé brasileiro e sua importância nas articulações de novas formas sociais pode explicar um pouco o motivo de tanto medo e perseguição.

Escrevendo esse texto me lembrei de uma passagem que li sobre a questão do sincretismo em que uma pessoa contava de seus mais velhos. Que eles olhavam o santo na procissão e cantavam e participavam com respeito mas dedicavam ao orixá. Dedicavam sua voz, seus olhos, sua devoção, seu amor, seu corpo, sua presença. Não porque tanto fizesse, não porque fosse a mesma coisa, não porque eles tivessem escolhido assim, não tinham. Mas não é qualquer coisa esse ato de resistência criativa, uma transformação que ao mesmo tempo que esconde revela. Não é uma solução, não é uma síntese que mata o conflito, mas notícias de um processo em curso, vivo.

Das coisas mais interessantes sobre Exu, e não são poucas, eu destacaria pessoalmente a risada. Aquela que contagia mas que pode desconcertar a ordem estabelecida. É uma risada que não se entende de cara e que pode ir além do sentido. A risada de Exu na encruzilhada não é mero recado, é voz.

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