Faz de conta que o Brasil é um país

Sobre reivindicar o impossível.


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Todo dia parece igual no Brasil, o que só piora com o fato de não podermos tanta coisa, algumas das mais importantes inclusive. Os amigos dormem mal, comem demais ou de menos, os sonhos chegam a contragosto, é com custo que a gente se anima e ficou até esquisito reclamar se não for coisa grande, dada a magnitude da desgraça nacional.
A noite está especialmente quieta, nem panela se bate mais, o bairro parece asfixiado. Tento dar um tempo de mim, de tudo, boto na TV a série de Martin Scorsese Faz de conta que NY é uma cidade. A coisa toda é sobre a escritora e humorista Fran Lebowitz, um fluxo de ideias, entrevistas, imagens de arquivo. A voz de Fran reclamando dos turistas ou falando do New York Dolls faz o papel de um ruído confortável. Não como os programas da minha infância, que passei a detestar porque hoje me enchem de uma coisa melancólica, um assombro posterior sobre a vida naqueles tempos, mas como quando alguém querido fazia café na cozinha enquanto eu já não dormia, mas também não chegava a abrir os olhos, experimentando uma sensação protegida de preguiça e apreciação do tempo.
Fran Lebowitz é uma reclamadora profissional. Tira graça disso, o que não impede que ela diga boas verdades. E faça um pouco de tipo, mas quem não faz. No final das contas, da banalidade divertida Fran alcança outros níveis de pensamento, chega lá quase no susto. É quando fica séria, talvez porque também se deixe surpreender.
Reclamar é quase sempre usado hoje pra essa coisa meio murcha, muito chata, de queixar-se eternamente. Tem gente que faz disso um modo permanente de expressão, o que em casos muito específicos resulta num certo charme do mau humor. Mas em geral é só uma corrente que se arrasta, uma lamentação por esporte, por like, por hábito, por slogan, por mais que de fato sempre haja alguma coisa torta com a vida de todo dia.
Mas reclamar também é reivindicar, consta no dicionário inclusive. Não essa reivindicação desossada, sem sal nem açúcar, essa ladainha amorfa que no fundo só tenta dar algum enchimento à prática da reclamação conformada, da reclamação que é parte integrante e fundamental na manutenção de tudo o que está errado.
Há uma outra reivindicação, uma que queima sem parar. Alimenta todas as outras com esse fogo, permite que a gente coma. Sem ela nada prospera a não ser o mar morto da reclamação pé na cova. Essa mata cada dia um pouco, acrescenta a cada instante um peso, um peso, um peso.
Reivindicar a vida parece urgente. Nada mais importa. Não o automatismo de levantar e deitar, quando dá, mas a vida. O tempo de viver, um lugar debaixo do sol. Ócio, prazer, contemplação, fazer nada. Estar momentaneamente inútil, aberto a um pouco de acaso, à brisa que vier.
De todos os privilégios dos herdeiros, de gente rica que não sabe o que é ter de trabalhar pra se manter vivo, um dos maiores é o direito a esse tempo sem nome. Tempo sustentado com o sangue e suor de milhões de pessoas que mal podem parar pra almoçar, dormir, dar um passeio, olhar pro céu, pensar qualquer bobagem. Tempo roubado, vida sequestrada, alienada.
Estamos atolados na tarefa de sustentar um país para que genocidas com faixas presidenciais possam distribuir doces favores aos seus pares, um jogo de poder do mais baixo nível, que a cada semana custa milhares de mortos e milhões de existências lançadas à miséria.
Não é mais sobre fazer qualquer coisa, sobre tomar uma atitude como diz a personagem de A vida de Tina. Talvez seja sobre internalizar radicalmente nossa impotência e o horror dessa fantasia em que estamos metidos, e daí tirar força pra pular fora, desandar o círculo.
O momento exige um tipo de reivindicação radical que talvez nunca tenha ocorrido a muitos de nós. Só que é preciso não estar tão ocupado pra reivindicar o impossível. Milhões de nós estão soterrados. Embaixo de boletos, inércia, depressão, racismo, vontade de desaparecer, fome, doença, abandono, miséria generalizada. Se quisermos respirar como sociedade, todos precisam sair dos escombros.
Faz de conta que o Brasil é um país.

Um beijo, V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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