Pra que serve o feminismo branco?

Parte 1. Algumas introduções e uma aproximação da pergunta


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Ocansaço está no auge. O país despenca numa velocidade extraordinária, e a cada dia os ataques às mínimas condições de vida da população são mais brutais. Para milhões de mulheres, especialmente as mais pobres e as mais vulneráveis, a situação é insustentável. Nessas condições, por que levantar questões sobre o feminismo nesse registro da cor, da raça? Bom, exatamente para entender o lugar das contribuições que podem ser feitas nesse sentido nesse exato momento.

Minha ideia aqui não é fornecer frases de efeito para cards nem dar respostas prontas para repost. Para isso vocês já têm as banalidades e instruções escritas em um monte de perfis publicitários cada vez mais mal disfarçados de serviço sensível à trend de sofrimento da hora. Esse tipo de coisa cada vez mais se configura como elemento de uma certa troca, de uma espécie de falsa garantia que diariamente reforça o que diz combater. Uma mão automática para dar dois tapinhas nas costas, dois na cabeça, como uma voz mecânica que repete bom menino, boa menina, boe menine, vocês estão seguindo o script e é sobre isso e tá tudo bem, e não é sobre isso e não tá tudo bem. Tanto faz. E isso exige que a gente volte lá para o próximo biscoito motivacional. Não digo que não funcione, mas funciona a um preço e com alcance direcionado.

O que trago aqui parte de pesquisas dos últimos anos, sempre em relação com novas vozes, novas escutas, novos aprendizados. Coisa não muito bem organizada ainda, mas que pretendo colocar aqui em capítulos, fases, não sei. Sei que embora tenha algumas bases, guias e pressupostos, nao tenho exatamente uma tese para provar. Tenho uma questão. Ou seja, esse é um trabalho em construção, do qual quem lê poderá participar por meio de sugestões e observações. As instruções para isso estarão no final desse texto e dos próximos.

Pois bem. Antes de entrar na questão mais diretamente, gostaria de expor algumas considerações importantes. Vou considerar aqui trabalhos escritos por mulheres, homens e pessoas que não se encaixam nas exigências já exaustas do binarismo. Vou considerar entre as mulheres as mulheres trans que assim se identificam, porque de todas as leituras que já fiz e experiências pessoais que já tive, nada passou perto de me convencer do contrário. O mesmo vale para homens trans. Isso não quer dizer que essa posição não vá encontrar pontos de conflito. Quando ocorrer, na medida do que eu conseguir, eles serão discutidos.

Digo também que, apesar de ser impossível para mim ou para qualquer pessoa articular algo sobre feminismo sozinha, afinal temos já um longo histórico e muitas contemporâneas em plena produção, esse recorte que vou tentando construir tem algo de meu. O que é exatamente esse algo, vou construindo enquanto escrevo e trago ideias e citações. Se não é exatamente fundamental, tem no mínimo alguma importância nos rumos que a coisa tomará.

.Confusão 1. O que querem as feministas?

A pergunta é propositalmente irrespondível de cara. Para chegar a algo que se proponha como uma resposta teremos de ir longe, passando por coisas que, acredito, valem a discussão. A resposta já adianto que será sempre parcial, não como uma fase, mas como uma característica. Ou seja, não é como um Pokemon que evolui até seu estágio final. É como um movimento que é sempre um caldeirão do que foi, do que pode ser, do que está sendo, do que já não pode ser, entre outras variáveis.

Mas se assim é de fato, então como manter as coisas sob um guarda-chuva? Se uma coisa muda sempre, como segue sendo ela mesma, o que lhe dá essa noção de unidade? Podemos perguntar isso sobre nós mesmos, o que é sempre um exercício interessante podendo levar não além de um passo e além de muitos horizontes, depende de muita coisa, das quais não excluiria uma certa coragem e sem dúvida tempo e condições mínimas para notar certos oferecimentos do dia-a-dia. Se somos tanta coisa e mudamos tanto em tantos sentidos, como seguimos sendo nós mesmos? Isso vai longe.

Mas e se perguntássemos o mesmo sobre o feminismo? Não é a mesma coisa, mas não deixa de estar conectado ao que acabei de dizer. Se o feminismo são muitos feminismos em movimento, o que nele há em comum para que siga sendo feminismo?

Não se trata apenas da reunião de mulheres, pois essas podem incluir , por exemplo, o mulherismo de Alice Walker e o mulherismo africana proposto por Cleonora Hudson Weems nos anos 80. São movimentos críticos, que embora tenham muito em comum com o feminismo, rejeitam alguns de seus métodos e pressupostos importantes.

Reunir mulheres é algo que também pode ser feito entre defensoras das maiores atrocidades contra as mulheres, elas mesmas haters do feminismo. Não é disso, portanto, que se trata.

Não me interessa aqui fazer um histórico do feminismo porque as informações, digamos, mais brutas, fora uma tonelada de análises, das melhores às completamente inúteis, estão disponíveis com certa facilidade. Mas não vamos passar sem levantar alguns pontos necessários.

Há certo consenso de que os movimentos feministas estiveram sempre ligados à reivindicação de direitos pelas mulheres. Direitos de início pensados em relação aos já usufruídos pelos homens, evidentemente, não por todos os homens, nem em igualdade entre eles. Evidente também que antes que essa palavra pipocasse em algum lugar da Europa no século 19, mulheres de diferentes lugares e tempos anteriores já haviam se levantado por seus direitos.

De maneira que podemos pensar que feminismo se refere também a alguma ideia de continuidade e a alguma forma de ligação mais ou menos permanente entre diferentes ações e pensamentos, entre grupos, entre lugares etc Seria feminismo o nome para um tipo de relação, para um tipo de vínculo social?

Se naquilo que ficou conhecido como primeira onda feminista o feminismo era comandado sobretudo por mulheres brancas, ele no entanto não era chamado de feminismo branco. Como os estudos sobre feminismo e racismo nos mostram, o feminismo só virou branco a partir das feministas negras. Não porque elas não estivessem lá desde o início, pelo contrário. Mas porque elas estavam lá desde o início e foram ignoradas. Porque seguiram falando e não sendo ouvidas. As feministas negras tiveram de assumir essa tarefa ingrata, a de apontar o feminismo das brancas como branco, não exatamente pela cor, mas pela exclusão que ela determinou. Assim como o branco despontou como ideal supostamente universal na sociedade racista, o feminismo branco se colocava no mesmo patamar, reproduzindo uma série de problemas bastante sérios.

Assim, as feministas negras, tantas vezes acusadas por rachar forças na realidade só fizeram apontar um abismo que, se não endereçado, faria do feminismo algo avesso a qualquer forma de transformação que possa sequer fazer cócegas em um mundo em que o 1% mais rico concentra 38% de todo o dinheiro que existe no mundo. Algo inofensivo, uma novela para “mocinhas”.

O que levanta a questão sobre como e em que o feminismo branco pode se diferenciar do feminismo liberal. Não é uma questão a ser descartada, até porque não é simples de ser respondida.

Há inclusive uma superfalação sobre o feminismo negro a partir de mulheres brancas. Já sobre o elefante branco na sala de jantar já são bem menos numerosas aquelas dispostas a bater um papo. Tanto que coube às mulheres negras mais uma vez marcar sua negritude contra a brancura daquelas que se faziam e ainda se fazem de desentendidas.

É famoso o episódio da marcha das sufragistas de 1913, em que as feministas brancas, temendo a debandada de suas colegas racistas, mandaram as mulheres negras marcharem num bloco no fim da parada. Na verdade, queriam que elas não fossem, para não “misturar” a briga pelo voto com desigualdade racial. Acontece que as mulheres estavam indo para Washington vindas de vários lugares, movimentos e delegações, muitas das quais incluíam mulheres negras e brancas juntas. Ida B. Wells, jornalista pioneira, ativista pelos direitos das pessoas negras, e intelectual influente vinha de Illinois com companheiras brancas. Se recusando a marchar no fundo, ela esperou a parada começar e avançou até alcançar seu grupo, um protesto dentro do protesto.

Apesar de todos os avanços, o caso segue sendo ilustrativo de como a atitude de Ida, como as de tantas outras mulheres negras antes e depois dela, era a que de fato falava de uma união.

Mais recentemente, há uma certa corrente organizada em torno de uma concordância com a multiplicidade. Ou seja, um certo fazer as pazes com a diversidade dos desejos e necessidades das mulheres, sem desconhecer ou ignorar questões como o racismo e os preconceitos com mulheres trans e queer, por exemplo.

Em entrevista à revista Quatro Cinco Um em 2020, Kate Kirkpatrick, biógrafa de Simone de Beauvoir, resumiu de certa forma do que se trata nessa linha de argumentação. “Ao longo da história os homens discordaram sobre qual seria o melhor modo de estruturar a sociedade. Exigir que as mulheres concordem em sua luta parece um parâmetro estranho a ser imposto”. Ela dizia isso no contexto da aceitação dos muitos feminismos.

Claro, o fato de que mulheres em suas diferentes realidades, culturas, questões etc, construam propostas emancipatórias que contemplem essas especificidades me parece inegável. Não se trata, portanto, de propor um consenso completo e inteiro, sem espaço para discordâncias. Porém, não podemos deixar de questionar aí a facilidade dessa saída e dessa colocação. Até porque tudo indica que ela leva a um beco sem saída.

Dizer que não podemos exigir uma base comum para os feminismos é ignorar privilégios. É dizer que, no fim das contas, o feminismo branco não está interessado de fato a se pensar como tal e segue montado no universalismo que finge rejeitar ao ” incluir” as produções de mulheres não-brancas em suas conversas e se proclamar decolonial e antirracista aos quatro ventos.

O “faz o seu aí que eu faço o meu aqui e a gente vai juntando” funciona até certo ponto. E esse ponto, ao que parece, é sempre secundário. Há de se construir na prática algo que na própria prática se constitua como um terreno em comum. Um onde se possa plantar as mais variadas coisas.

No terreno do feminismo libneoliberal jamais nascerá igualdade de direitos ampla. A desigualdade é base de seu funcionamento. Meritocracia, empreendedorismo de si mesmo, transformação de toda instituição em empresa, tudo isso é incompatível no seu núcleo mais duro com qualquer ideia aceitável de igualdade de direitos. O que levanta, sim, a pergunta do motivo que nos leva a manter aqui o nome feminismo.

E aí tudo começa a chegar onde queremos. Ou seja, na complicação, no desabamento, na queda, em uma certa destruição que guarda em si potencial criativo. Não é qualquer destruição e não tem necessariamente o sentido de um sofrimento. Disso, aliás, falaremos em colunas seguintes.

Ironicamente, o tal feminismo liberal é hoje um dos maiores defensores do antirracismo. De que tipo? O antirracismo racista, ultraindividualista. É por aí que a banda toca, nesse ponto. Tokenismo, oportunismo, chantagem passivo-agressiva, sedução pelo dinheiro, os modos são muitos. Inclusive o mais antigo, abrangente e adoecedor, denunciado por Lélia Gonzales, Neusa Santos Souza, Frantz Fanon, Cida Bento, Sueli Carneiro e tantos outros: a busca pelo ideal branco. O absurdo de dizer “antirracismo racista” é proposital para mostrar que aí existe uma disputa. O antirracismo como termo sequestrado e mercantilizado, muitas vezes vai aparecer como puro privilégio de classe e raça: uma pessoa branca e rica garante, por exemplo, seu rótulo antirracista ao doar dinheiro para uma iniciativa “inclusiva” enquanto mantém negócios e empresas que dependem das mais variadas formas de exploração e exclusão.

Em seu Tornar-se Negro, a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza diz assim: “O negro que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido e que endossa a luta para realizar esse modelo. (…) Aqui [no depoimento de um homem negro] branco quer dizer aristocrata, elitista, letrado, bem-sucedido. Noutro momento branco é rico, inteligente, poderoso. Sob quaisquer nuances, (…) branco é o modelo a ser escolhido”.

Portanto, podemos pensar que, para o feminismo liberal ou neoliberal, é mesmo vantajoso adotar esse “antirracismo racista” no qual alguns negros são aceitos e mesmo aplaudidos como exemplo desde que não se coloquem demais em frentes e assuntos que ataquem as bases desse ideal branco. Como num jogo de xadrez, o objetivo maior é proteger o rei.

Isso quer dizer que negros não podem ganhar dinheiro ou serem letrados e bem-sucedidos porque isso é coisa de branco? Evidente que não. E evidente que a ascensão econômica de pessoas negras, mesmo que pontual, incomoda muita gente e desperta mesmo reações das mais brutais. Como a filósofa Sueli Carneiro apontou em sua extraordinária participação no podcast Mano a Mano (nas próximas colunas trarei destaques da entrevista em certos contextos), em uma conversa franca, afetuosa, combativa e criativa com Mano Brown, a questão precisa de cuidado. Ela cita o exemplo de um intelectual negro que colocou o fato de estar no programa de TV de Fátima Bernardes como sinônimo de ser bem-sucedido.

Mesmo quando chegam ao “topo” dos mais ricos, o que é muito mais difícil (por toda sorte de impedimento da estrutura racista) e mais raro do que para uma pessoa branca, a pessoa negra não é tida como igual. O dinheiro e o poder evidentemente ajudam e abrem portas, mas não garantem o reconhecimento social nos termos da estrutura racista. Até mesmo entre as mais “belas almas” isso é evidente. Uma mulher negra que fique muito famosa e milionária será sempre criticada e questionada a respeito de suas boas intenções e feitos sociais. Já as brancas podem viver e morrer sem passar pelas mesmas sabatinas.

Não se trata obviamente de fazer picuinha de celebridade, mas de pensar nesses lugares e definições de sucesso. Entre a perversidade racista e criminosa de dizer que negros estão e naturalmente têm de estar sempre ligados a contextos de pobreza, miséria e “humildade” e argumentar que eles têm de reproduzir e habitar os mesmos lugares de sucesso criados e estabelecidos pelos brancos há algo de muito promissor no caminho. Há algo que pode ser criado e que não dá as mãos ao ideal branco.

Para saber se certas feministas brancas são mesmo antirracistas é simples propor algumas observações. Como o impacto positivo/negativo nos negócios, graças aos movimentos negros, a questão racial tornou-se quase incontornável . Muitas empresas, a maioria delas sob pressão econômica, adotaram o vocabulário antirracista da inclusão, da diversidade, da beleza negra, do empreendedorismo negro etc Muitas empresárias e CEOs entraram no jogo, a ponto de pipocarem menções e trabalhos acadêmicos que falavam de feminismo corporativo.

Mas quantas empresas, por exemplo, defenderam os direitos das mulheres se posicionando contra a mudança nas aposentadorias? Quantas atuam na defesa de vagas nas creches e escolas públicas, da inclusão de crianças com alguma deficiência nas escolas públicas? Quantas foram contra o fim do benefício do Bolsa Família que, muitos não sabem, era recebido em nome e diretamente pela mulher da família? Quantas, em suas infindáveis campanhas de “conscientização” sobre saúde da mulher, defendem o SUS, absolutamente essencial de tantas maneiras? Essas questões são só alguns dos muitíssimos problemas políticos que afetam a sociedade toda, mas sobretudo as mulheres negras que, como ainda é necessário repetir, estão na base da pirâmide.

Mulheres negras devem estar onde bem escolherem e podem defender suas próprias estratégias, mas é inegável pensar o lugar do feminismo branco nesse contexto. No que afinal ele difere do liberal?

A jornalista e escritora norte americana Koa Beck, ex-editora executiva do site Jezebel , e autora do best-seller Feminismo Branco: das sufragistas às influencers e quem elas deixaram para trás, apresenta em seu livro a seguinte definição. “[feminismo branco é] autonomia personalizada, riqueza individual, autoaprimoramento perpétuo e supremacia”. Nada promissor.

Poderíamos aqui nos adiantar e dizer que o feminismo branco não serve pra nada hoje e deveria ser descartado porque o feminismo é para todas ou não é. De fato, é tentador. Assim como é tentador dizer que trabalhamos cada uma com seu feminismo, numa boa. Por que sempre parece um tiro no pé ceder a essas tentações? Talvez porque haja trabalho para ser feito antes. Talvez porque de nada adiante mudar o nome para continuar o mesmo. Não se trata de fazer um rebranding do feminismo branco, mas de questioná-lo até os limites da transformação.

Como escreveu Fanon, “antes de se engajar na voz positiva, há a ser realizada uma tentativa de desalienação em prol da liberdade”.

Claro, há falsas soluções constrangedoras e mentirosas em voga. Sabe aquela bobagem do “eu, mulher branca privilegiada, que reconheço meus privilégios”? Quem nunca, mas já chega. Isso é um passo mínimo que sozinho não só não muda nada como reforça da forma mais cínica esse privilégio declarado, se repararmos, com grande gozo. Também não é sobre espetáculos tristes ao estilo ” eu, branca, sou culpada pelos meus ancestrais”. Não, não seja ridícula. Isso é mentiroso, não importa quem diga. Ninguém é de fato culpado por crimes que não cometeu.

A questão é, diante do legado de morte e crueldade que o passado deixou, incluindo os privilégios que você não escolheu ter mas tem por ter nascido branca, o que você está fazendo agora? Como você se posiciona e age no seu tempo, na sua vida, como você se responsabiliza pelas suas escolhas e o que tem a dizer delas em relação ao mundo? Como é que você vive o “não em meu nome”? Como é que você recusa o pacto de morte, o pacto narcísico branco, o pacto racista? Como você se organiza politicamente, seja na escola, no trabalho, no seu bairro, etc?

Se as pessoas negras têm se perguntado e muito sobre racismo e sobre o que é e para que serve sua negritude, o mesmo não se pode dizer dos brancos ou das brancas. Como argumenta o poeta e ensaísta martinicano Aimé Cesaire, aquele que desumaniza o outro, como é característica das relações racistas, não o faz sem necessariamente “bestializar” a si mesmo. Ele dá aos brancos a tarefa de analisar isso em suas vidas, em suas atitudes, em seus sentimentos mais íntimos. Nesse contexto o que as feministas brancas têm a dizer ?

Tentaremos articular algo relacionado a essa pergunta na próxima coluna.

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