A lenda do “mulheres e crianças primeiro”

Jamais vou acreditar que uma pessoa que se diz pró-vida seja de fato a favor da vida, pois sei o quanto esse discurso acaba tendo justamente o efeito contrário, na prática.


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Esse não era o texto que eu tinha pensado para a coluna de junho nem o sentimento coletivo que achei que estaríamos tendo nesse começo de semestre, alinhado à chegada do inverno. Mas não adianta, não teria como entregar algo leve ou com dicas “calientes” depois do peso tremendo que invadiu as manchetes dos jornais e apertou nossos corações nos últimos dias. Antes de seguir, deixo aqui o alerta de gatilho, pois o texto irá conter informações sobre violência sexual e aborto. Caso esse seja um assunto muito sensível para você, não tem nenhum problema em respeitar seu limite e voltar aqui apenas quando quiser ou estiver pronta.

Para quem não soube, recentemente uma criança de 10 anos de idade ficou grávida após ser vítima de estupro, o que já é inaceitável em tantos níveis que seria impossível contar, e teve seu aborto inicialmente negado, mesmo sendo a opção mais segura e urgente para preservar a vida dessa menina, que não possui a menor capacidade física, mental e emocional para ser mãe. Crianças não podem ser mães, e pronto. Logo depois, enquanto eu ainda estava formulando as frases acima, mais uma notícia dilacerante: uma jovem de 21 anos, também vítima de violência sexual, descobriu a gravidez já num estágio muito avançado, optou por entregar o bebê para adoção por via legal e acabou tendo sua vivência exposta de maneira sórdida, sofrendo mais uma série de ataques que envolvem a violação e julgamento das suas escolhas. Nenhuma mulher deveria ser obrigada a ser mãe, muito menos pela via do trauma. Absolutamente ninguém deve ter sua vida invadida e exposta dessas formas, jamais.

Não quero vir aqui dizer o que todas já estão cansadas de saber e nem adentrar mais na vida e no caso dessas vítimas, pois elas já sofreram exposição demais. Quero falar sobre a importância de uma educação sexual honesta como base da nossa criação para a proteção dos nossos corpos. Porque no meio desse The Handmaid’s Tale da vida real, onde o Brasil serviu de palco principal, ainda tivemos um retrocesso histórico sendo marcado nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte suspendeu o direito constitucional ao aborto em vigor há 50 anos no país. Então, é muita coisa para processar em pouquíssimos dias, eu sei, e está tudo ligado pela questão central que envolve os direitos das mulheres. Não se engane, ninguém é a favor do aborto de uma forma celebrativa, ninguém deseja passar por isso, mas uma frase famosa dos grupos pró-escolha da América Latina resume muito bem do que se trata: “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar e aborto legal e seguro para não morrer”.

Penso que a educação sexual possui três pilares primordiais que podem, sim, ser conversados desde cedo. São eles: o consentimento, o prazer e a anatomia/fisiologia corporal. Todos esses três pontos nos levam para a segurança e a proteção, sabe como? Entender o nosso corpo e como ele funciona é importante para que a gente não acredite em mitos danosos e possa, enfim, começar a ter uma autonomia real sobre ele. Falar sobre prazer também importa, porque ele existe para ser sentido de maneira saudável e livre da culpa. É um bônus da natureza no meio do caos e faz um bem danado, mas ele não seria possível sem o consentimento, que nada mais é do que um acordo entre as partes, que envolve a vontade em conjunto da permissão e que possui uma série de nuances, já que não se resume a apenas dizer “sim” ou “não”. A informação nem sempre impede que o pior aconteça, mas ela pode salvar muitas vidas, pois não é só sobre saber identificar quando existe uma violação, mas também saber para quem relatar e como encontrar amparo numa situação assim.

Sexualidade e sexo são coisas muito diferentes! Portanto, educação sexual nunca vai ser sobre ensinar atos eróticos. Estudos realizados em mais de 77 programas escolares e comunitários, que tratavam do tema entre 1994 e 1995 nos EUA, relataram que a inclusão dessas informações no currículo teve como consequências o aumento da idade de iniciação sexual dos alunos, redução do número de parceiros(as), aumento de uso de métodos contraceptivos e a diminuição da gravidez entre os jovens. Absolutamente nenhum constatou avanços prejudiciais ou precoces após as aulas de educação sexual.

A informação nem sempre impede que o pior aconteça, mas ela pode salvar muitas vidas, pois não é só sobre saber identificar quando existe uma violação, mas também saber para quem relatar e como encontrar amparo.

Cada faixa etária tem um tema mais específico ou apropriado para ser abordado, porém quanto antes trouxermos o diálogo e a informação, melhor. Precisamos contar para as crianças o que acontece no corpo delas durante seu desenvolvimento. Precisamos dar nomes às partes íntimas sem escondê-las através de apelidos depreciativos e, ao mesmo tempo, sem deixar de lado que são partes privadas, onde ninguém tem o direito de tocar (além dos seus tutores, apenas para a limpeza da região). Que não existe consentimento infantil, visto que nenhuma relação sexual/erótica é ok para essa fase da vida (pelo código penal é tratado como estupro de vulnerável a prática da conjunção carnal ou outro ato libidinoso contra menores de 14 anos, pois eles ainda não se encontram totalmente conscientes da sua sexualidade, do sexo e todas as suas complexidades. Nesses casos, pode até ocorrer submissão, mas nunca consentimento). Que não é porque a menina teve a sua primeira menstruação, que ela agora é “mocinha”, já que ninguém amadurece da noite pro dia. Que se faça entender aos meninos a importância do respeito, do acolhimento e da manifestação das suas próprias emoções, sabendo que a violência não é um bom caminho para demonstrar interesse ou lidar com a falta de interesse do outro. E por aí vai.

Dados assustadores rondam essa falta de ensino adequado no Brasil. Segundo o DataSUS e o Ministério da Saúde, 21 mil crianças tiveram filhos em 2018, enquanto mais de 434,5 mil adolescentes tornam-se mães a cada ano. Trazendo para um recorte ainda mais profundo, 75,32% das gestantes abaixo dos 14 anos no país são negras (fonte: Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua). Já a média ocidental de início de consumo de material pornográfico pelos meninos é de 9 anos, na maioria das vezes, vindo antes mesmo da conversa sobre os três pilares que eu citei acima: consentimento, prazer e anatomia/fisiologia corporal. São por causa de estatísticas assim que bato tanto na tecla de que proibir o acesso a informações sobre nós mesmos nos tira a autonomia, a possibilidade de autopreservação e alimenta a manutenção da cultura do estupro.

Temos uma habilidade muito preciosa de aprender quase tudo. Então, é possível aprender a se entender para conseguir comunicar as próprias vontades com mais clareza, a nos relacionarmos de maneira mais saudável conforme amadurecemos, a entender quais são nossos direitos, opções e amparos em qualquer cenário. E voltando a uma das questões trazidas no começo, o que eu mais admirava nos EUA era justamente a ideia de que, por lá, já haviam aprendido o quanto o procedimento seguro e legal do aborto era capaz de salvar milhões de vidas por ano. Jamais vou acreditar que uma pessoa que se diz pró-vida seja de fato a favor da vida, pois sei o quanto esse discurso acaba tendo justamente o efeito contrário, na prática. Se aprendêssemos mais sobre o que é exatamente esse procedimento, quais são os tipos de métodos disponíveis e como eles são feitos, quais os riscos, quando pode ou não pode ser feito, com certeza, ele não seria esse bicho-de-sete-cabeças. No Brasil, onde não é nem descriminalizado nem legalizado, a cada dois dias uma mulher morre em decorrência de um aborto feito de maneira ilegal e sem segurança.

É, não tinha como escrever algo leve dessa vez, sinto muito por isso. Lamento por nós daqui, que ainda temos muito o que caminhar para ter nossos corpos e direitos respeitados, e por elas do hemisfério norte, que viram seus passos indo para trás mesmo sem desejarem isso. É difícil falar de esperança nesses momentos, mas, enquanto educadora sexual, é o que me resta para além da ação de levantar a voz, a fim de que entendam o nível da importância e seriedade que esse trabalho possui. Sonho muito com esse mundo onde somos gente, não apenas subcategorias menos valiosas que estão condenadas pela ignorância que o moralismo gosta de chamar de bons costumes. Querem salvar mulheres e crianças primeiro? Então, aprendam a educar de maneira real e inclusiva absolutamente todo mundo.

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Ela é também sócia da primeira sex shop brasileira 100% focada no prazer feminino. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, vai responder mensalmente as dúvidas do público da ELLE pelo Instagram e também aqui no site.

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