Incêndios necessários

Por que a série Little Fires Everywhere é mais importante do que parece.


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Já começo dizendo que essa, sem sombra de dúvidas, pode ser considerada uma das melhores séries do ano. Em apenas nove capítulos, Little Fires Everywhere (exibida pela Amazon Prime Video) faz um voo panorâmico por temas como racismos, maternidades, privilégios e comportamento humano, relações abusivas entre mulheres e problemas familiares. São assuntos urgentes a serem discutidos, pela transformação que queremos e precisamos, sobretudo nesse momento histórico. E o início do primeiro episódio não poderia ser mais significativo: uma suntuosa mansão sendo incendiada. A cena é angustiante e fisga nosso interesse, talvez porque ela seja a metáfora perfeita sobre o que precisamos para mudar a sociedade saturada em que vivemos. O fogo é símbolo da transformação. A sociedade é a grande casa que abriga todos nós. Aqui, essa simbologia nos leva a refletir sobre como as velhas representações e estruturas precisam ruir para nos libertar rumo a uma reconstrução lúcida, como jamais foi na história.


A série foi produzida e protagonizada pelas impecáveis Reese Witherspoon (de Big Little Lies) e Kerry Washington (de Scandal). Reese é Elena Richardson, uma jornalista mediana, moradora do provinciano bairro de classe média alta Shaker Heights, onde tudo é forjado para parecer perfeito, a ponto de o gramado das casas ter uma altura padrão a ser obedecida e moradores recém-chegados receberem um manual de instruções para convivência. E o lugar existe mesmo: a autora do best-seller que deu origem a série, Celeste Ng, foi criada nesse bairro. O texto original, no entanto, não traz uma mulher negra como protagonista – e essa é a grande sacada da adaptação do livro para série. Foi uma ideia de Reese, que chamou Kerry porque pensou que seria interessante abordar o racismo.

Elena, casada e com quatro filhos, vive as angústias de quem não tem certeza se fez a melhor escolha ao priorizar a família em vez da carreira. Tradicionalista, moralista e controladora, leva a vida tediosa e previsível à base de regras rígidas, inventadas por ela mesma, como ter dia certo para transar com o marido.

Kerry Washington é Mia Warren, uma artista introspectiva e desconfiada, que vive com a filha adolescente Pearl (Lexi Underwood) de maneira reclusa, praticamente dentro de um carro – Mia justifica o estilo de vida nômade como sendo necessário para produzir sua arte.

Mulher negra e mulher branca de pe na copa

Mia (Kerry Washington) e Elena (Reese Witherspoon): crença em estereótipos cega a personagem de Reese. Foto Hulu/Divulgação

As duas protagonistas se aproximam quando Mia aluga uma casa de Elena, e as diferenças começam a traçar o relacionamento entre elas. Costumo dizer que, em uma sociedade estruturada por opressões como racismo e machismo, as relações interpessoais e interraciais acabam se tornando superficiais, pois as pessoas reagem aos estereótipos antes de conhecer a realidade humana por trás deles. Tal qual um par de óculos para ver filmes em 3D, os estereótipos racistas e machistas deformam a visão das pessoas brancas e impedem o primordial para estabelecer relações: enxergar o ser humano. Isso acontece entre Mia e Elena, quando esta última presume que mulher negra e nômade só pode ser uma sem-teto. Em nenhum momento da série Elena se preocupa em conhecer Mia, ao contrário, inicia uma busca compulsiva por evidências que possam confirmar suas suspeitas racistas sobre Mia. Todas as suas ações são guiadas por uma discreta arrogância paternalista, crente de que suas impressões distorcidas são verdades absolutas. O comportamento de Elena serve de espelho para pessoas brancas que pretendem levar a sério a luta antirracista, pois é muito realista. Um exemplo: quando ela faz uma afirmação equivocada sobre a questão racial, o marido pergunta se aquilo tem fundamento e ela justifica que sim, pois viu uma pessoa negra famosa falando na televisão.

Outra questão fundamental trazida pela série trata das diversas vivências de maternidades e seus conflitos representados: a mãe solo, a mãe casada, a mãe adotiva, a mãe que abandona, a mãe narcisista, a mãe que não consegue engravidar e a mãe de aluguel. É urgente discutir maternidade para além da crença polarizada entre mãe boa e mãe ruim. E a série propõe que se discuta a maternidade de maneira plural e humana, onde as definições sociais viciadas importam menos do que as experiências individuais do ser mãe. Aliás, o que iguala todas as mulheres apresentadas nessa série são as dificuldades que elas experimentam nas suas respectivas maternidades, apesar do abismo racial e social entre elas.

A série também fala sobre como os privilégios determinam caminhos de vida e influenciam definitivamente na formação da nossa personalidade, mas sob o olhar crítico que expõe de maneira muito contundente o quanto ser socialmente privilegiado torna as pessoas limitadas, narcisistas e pouco ou nada empáticas. Sem romantização das experiências sofridas pelas pessoas racializadas ou pobres, lidar com limitações e dificuldades nos torna mais humanos e realistas diante da vida.

Falando em raça, a série traz a narrativa sobre o racismo contra negros, mas também contra asiáticos. E esse é o pano de fundo para abordar levemente a representatividade e a sororidade seletiva, já que em um conflito entre duas experiências de maternidade cada uma apoia a sua igual, assim como tem sido a realidade do feminismo brasileiro: negras e não brancas de um lado, brancas do outro lado. A série foca o tempo todo nas relações desiguais entre mulheres, dada pela supremacia branca, mas não apenas nesse contexto.

A relação de Elena com as duas filhas, sendo que uma é seu espelho e a outra o seu oposto, denuncia como o narcisismo materno é cruel. Ela protege a filha que adere a sua imagem projetada e rejeita a filha que se nega a ser igual à mãe. Por outro lado, o distanciamento de Pearl, filha de Mia, pelo deslumbre com o mundo branco e pela negação dos conflitos raciais que ela enfrenta, é categórico em dizer ao espectador que o racismo fragiliza também a relação entre pessoas negras. Tanto Pearl quanto Brian, namorado de Lexie (a filha “espelho” de Elena), únicos negros em meio a uma família branca que “não vê cor”, priorizam nitidamente a amizade com os filhos de Elena, em uma busca de uma adequação ao mundo branco, mesmo sendo constantemente confrontados pelo racismo (quase velado) presente naquele grupo. A série cai como uma luva para aqueles que têm coragem de encarar as diversas verdades dolorosas presentes em um mundo, que categoriza e hierarquiza pessoas pela raça e pela classe social. E deve servir para alavancar discussões importantes, sem as meias-verdades e autodefesas que abrem ainda mais distâncias, ao invés de aproximar o que já é fragmentado. A série sustenta, do início ao fim, o suspense sobre quem incendiou a casa de Elena (perfeita metáfora da nossa sociedade) e o final não poderia ser mais significativo, mostrando um velho clichê, mas de forma inovadora: “seja a mudança que você quer ver no mundo”.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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