Piripaque aflitivo corônico

Como se chama isso que estou vivendo? Já saiu um artigo científico sobre as pessoas que ficaram tanto tempo em isolamento social que agora, mesmo querendo, não querem sair do isolamento?


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Entro no táxi e noto que a máscara do motorista está folgada. O nariz manchado pelo sol se pendura no rosto, caindo para fora do pano preto, e o elástico que se segura ao pescoço parece já não ter a mesma disposição. Está chovendo, abro a janela mesmo assim e ignoro o olhar antipático do homem que não quer que seu carro seja molhado. Do seu celular, a voz avisa para manter a ventilação. Para mim, o mundo está caindo.

Paro para contar há quanto tempo não saio de casa, não vejo amigos, não faço compras no mercado. Minha nova mania é recontar os meses de entregas e isolamento social, que eu segui radicalmente, e que agora me deixa confusa. Se estou desde 11 de março de 2020 sem me permitir ver a rua, a não ser para consultas médicas, poucas, quanto tempo de vida foi suficiente para que eu desaprendesse São Paulo? Eu não conheço mais a cidade, não sinto mais o fluxo da sua cultura, não sei caminhar pelas calçadas sem procurar atônita o prédio onde devo me enfiar rapidamente. De São Paulo, só me restou a tal pressa. A agonia por voltar o mais rápido possível, a angústia para sair logo do elevador, a quase prece que faço sempre que tenho que dividir um espaço fechado com mais de um alguém.

No posto de saúde, todas as pessoas que estão esperando pela vacina se aglomeram debaixo do pequeno teto na entrada da recepção. “Prefiro ficar ensopada.” Estou com meu namorado e, quando seguimos para pegar nossas senhas, somos informados de que não há CoronaVac para ele, apenas a AstraZeneca para mim. Ele é levado para conversar com um enfermeiro enquanto busco abrigo longe das pessoas com máscaras coloridas e frouxas. “Prefiro que meu tênis fique preto de barro.” Não muito distante de mim, duas mulheres conversam sobre a festinha de aniversário da sobrinha de Patrícia. Uma festinha linda, toda com tema de girassol, e um bolo enorme com seis velinhas que, imagino, foram sopradas. Depois as fatias de bolo se entregaram a todas as mãos presentes. Todo mundo comeu o sopro da menininha. “As pessoas estão fazendo festa.” E não sei por que me surpreendo.

Na esquina do prédio onde moro, todos os dias, especialmente nos finais de semana, dezenas de pessoas dão risada, gritam e cantam no karaokê. Muitas vezes consigo entender muito bem o que dizem e a pandemia não é um assunto. Não sei se é uma preocupação. Penso que não o suficiente, caso contrário elas não estariam tão juntas, tão bêbadas, tão de boca aberta. Imagino que alguma delas pode morrer dali a pouco tempo sem ter lembrado da vez em que saiu para o bar com os amigos. “Eu não deveria pensar essas coisas.” Mas será que uma dessas pessoas é aquela que entrou no elevador comigo e ficou conversando pelo celular?

Como se chama isso que estou vivendo? Ansiedade pandêmica? Pânico viral? Piripaque aflitivo corônico? Como se chama isso de não saber mais sair de casa, de odiar ter que pegar na porta do táxi, no papel da senha do posto de saúde. Essa agonia de ter que botar para dentro os tênis que deixei esperando do lado de fora do apartamento? Já saiu um artigo científico sobre as pessoas que ficaram tanto tempo em isolamento social que agora, mesmo querendo, não querem sair do isolamento?

Dia desses perguntei no meu Instagram se alguém mais sentia ansiedade quando tinha que sair de casa. Várias pessoas me disseram que sim. Mesmo aquelas que nunca puderam trabalhar de casa. Mesmo aquelas que trabalham em hospitais. Eu me senti menos sozinha. “Essa coisa pode não ser só minha.” Mas sinto tão parte de mim que é como se tivesse ganhado pulmões aqui dentro e respirasse meu ar junto comigo, me deixando com a respiração entrecortada, fraca e paranoica. “Se eu respirar menos vezes, será que tem menos chance.” “Ah não, não vamos chegar a esse extremo.” “Tá todo mundo saindo, deixa de idiotice.” “Só você é idiota de ainda ter medo de sair.”

Quando volto do posto de saúde – meu namorado ainda sem vacina, tiro a roupa que virou a farda de sair. Enfio o moletom preto na sacola junto com a calça, também de moletom, e a camiseta preta. Brinco que agora me visto igual ao Jungkook, membro do BTS, e dou um sorrisinho para o espelho. Eu bem que mereço um sorriso em troca desse dia.

Escrevo sobre meu novo transtorno mental, meu novo incômodo pensamental, sobre essa coceira no juízo, essa desconfiança crônica. E escrever é tudo o que posso fazer a respeito. Talvez visitar algum parque, um desses bem grandes, depois da segunda dose da vacina. Talvez fazer dos parques o meu único destino. Levar o computador para debaixo de uma árvore e terminar de escrever o livro que me custa tanta mente.

Enquanto esse dia não chega, olho para minhas cutículas e imagino se é mais fácil ficar resto de vírus entre as carninhas doloridas e duras. Minhas unhas nunca estiveram tão curtas. Eu gosto das minhas paredes e da chave que tranca a porta. Não quero, mas desejo ficar aqui dentro.

Quanto tempo é necessário para que eu reaprenda a cidade?

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente”, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura na Categoria Contos e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome”, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis”. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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