Pelo direito de envelhecer

Sobre o tempo de viver e suas condições.


origin 807



Há algumas semanas a top Linda Evangelista fez um desabafo em suas redes.

Questionada a respeito de sua distância do universo da moda, ela resolveu falar de seus problemas. Integrante da chamada geração das supermodelos, as grandes estrelas das passarelas nos anos 1990, ela já não desfila ou fotografa há tempos.

Outras de suas colegas da época, como Cindy Crawford e Naomi Campbell, ambas na casa dos 50, continuam em atividade. Linda disse que também gostaria de fazer alguns trabalhos, mas sofreu uma sequela pós-tratamento de criolipólise (para eliminar gordura localizada) que a fez engordar de forma desordenada. Os processos para corrigir o problema foram muitos e ineficazes, levando a correções sem fim e a uma depressão.

Linda diz que se sente “desfigurada”, embora suas fotos mostrem uma mulher de 56 anos bastante bonita. Enquanto isso sites publicam comparações de suas fotos recentes com imagens de desfiles de quando ela tinha 20 anos e fofocam sobre como estaria o corpo dela sob as roupas largas. Os comentários, como de costume, são os piores.

Envelhecer sem recorrer a procedimentos estéticos é hoje algo quase fora de questão para milhões de pessoas. Para aquelas que dependem de sua imagem, ainda mais.

Muito já foi dito sobre isso, e a própria indústria de beleza tem feito da questão novas oportunidades de lucro. Produtos de nicho vão trocando o anti-idade por cuidados específicos, sem esquecer a onda do ageless, esse termo bizarro que tenta encobrir a velhice com uma suspensão por decreto publicitário, ou seja, você não está envelhecendo pois “não tem idade”.

Enquanto os círculos mais privilegiados discutem rugas e cabelos brancos, a situação desse “indesejável” chamado envelhecer vem mostrando faces bem mais feias, bem mais ferozes.

A começar pelo fato de que envelhecer não é privilégio de todos. Sim, porque primeiro é necessário estar vivo. A população negra no Brasil tem menor expectativa de vida em relação à branca. A população trans vive menos do que a metade da expectativa de vida média no Brasil, ou seja, cerca de 35 anos. Os mais pobres vivem menos do que os mais ricos. E os muito ricos, os bilionários que andam por aí de jeans e camiseta, bem gente como a gente, estão comprando acesso a tecnologias capazes de aumentar o tempo médio de vida em algumas décadas.

Na vida em comunidade e sociedade não dá para ser ageless. Dá sim para contestar amarras e regras caducas sobre como deve parecer e se comportar uma pessoa com mais de 50, 60 anos. Dá para brigar contra o machismo, para detonar o discurso patriarcal que decreta a morte e o enterro libidinal a partir de certa idade, sobretudo para as mulheres.

Com isso não quero dizer que não se deva falar sobre essas coisas. O ponto aqui é outro. Para além das escolhas individuais podemos nos questionar o quanto dessas decisões vem de algo particular e o quanto vem de uma coação social para manutenção de um certo status. Podemos questionar uma série de outras coisas nesse escopo. Só precisamos reconhecer que esse debate vem sendo feito num terreno delimitado pelo privilégio de classe, mas não só.

Enquanto as mais ricas podem discutir entre procedimentos mais e menos invasivos, sobre o direito de envelhecer naturalmente, as mais pobres são atacadas em suas mínimas vaidades. Delas se espera que lutem pelo básico e vivam em sacrifício, como se sua existência fosse um favor.

A desumanização passa por muitos caminhos menos comentados. E muitas vezes nós só fingimos que não vemos, que não participamos, silenciamos.

A escuta é sempre melhor que publicitarismos e conclusões inventadas a partir de idealizações que, afinal de contas, servem bem a quem? A escuta da comunidade, a escuta social que é possível a partir de modelos de saúde, inclusive mental, que considerem o poder da solidariedade na política.

A idade organiza coisas importantes como benefícios sociais, aposentadoria. Algo que para os mais ricos não faz tanta diferença, mas determina a qualidade e até a possibilidade de vida para a massa trabalhadora. Sob o governo Bolsonaro, graças a Paulo Guedes e seu programa econômico brutal e destruidor, o idoso é cada vez mais maltratado no Brasil.

Perdas de benefícios, a reforma absurda da Previdência, isso tudo aliado ao desemprego recorde que faz de milhões de aposentados a única fonte de renda de famílias inteiras.

O escândalo das acusações contra o presidente e a empresa Prevent Senior refletem esse deprezo. Idosos usados como cobaia, tendo negado até mesmo o direito ao ar que os manteria vivos. Em nome do lucro, do dinheiro.

Além das milhares de mortes devidas ao atraso criminoso da vacinação, a CPI em andamento mostra que os cidadãos idosos foram em muitas ocasiões descartados, não por acidente, mas por uma política de morte deliberada.

Os ecos disso são muitos, incluindo o aumento dos casos de suicídio entre os mais velhos, que já era alto no país. Levantamento do Ministério da Saúde de 2017 mostra que a taxa geral de suicídio entre os brasileiros é de 5,8 para cada 100 mil habitantes, mas entre pessoas com mais de 70 anos sobe para 8,9 por 100 mil habitantes.

Evidente que não se trata de uma relação direta de causa e efeito, mas de algo que se coloca nesse contexto e que não pode ser ignorado e desprezado no debate.

Envelhecer não é fácil. Há questões com a saúde, com mudanças no corpo, com o trabalho, com a renda. E, muito importante, há, conforme o tempo avança, um acúmulo de perdas que precisa ser endereçado.

Aí pode entrar a escuta analítica. A aposta da psicanálise é que a partir de tantas perdas, tanto de pessoas amadas quanto de certas capacidades, de tantos passados, algo possa ser criado. Aí também parece estar em jogo uma certa presença, digamos, mais presente, da morte. Não só por aqueles que se foram mas pela ideia de que os anos à frente devem ser menos numerosos do que os que já se passaram. É algo que coloca questões, não sentenças.

Sim, há a morte, mas se há 10, 20 ou 30 anos pela frente, eles podem ser vividos criativamente. Seja numa criatividade cheia de projetos, seja mais contemplativa ou ociosa. Viver, diferente de esperar a morte. Tomar pé de envelhecer e não ser encostado, tratado como fardo, como bomba-relógio ou caso de caridade.

Nossa sociedade e seu liberalismo horrendo é viciada em produtividade e eliminação. Produtividade para os trabalhadores enquanto as imensas fortunas são cada vez mais especulativas, menos palpáveis ou traduzíveis em algo que sirva às pessoas. Eliminação dos “restos”, que são gente, em números cada vez mais altos, para sustentar uma elite cada vez menor e capaz de concentrar renda e poder como nunca.

Em Pandemia, livro lançado pelo filósofo Slavoj Žižek em 2020, por conta da Covid-19, o psicanalista Christian Dunker escreve na introdução: “em momentos de guerra e de peste, os improdutivos devem ser deixados para trás. Assim pensa a necropolítica, tendo por pressuposto a biopolítica. Contra isso levantam-se Žižek e a ideia de uma solidariedade incondicional,
ou seja: não é porque o cálculo econômico diz que algumas vidas valem mais que outras que devemos agir politicamente de acordo com isso”.

Pesquisando sobre Linda Evangelista acabo vendo minhas musas dos anos 90. Minha onda adolescente eram as cantoras, bem mais que as modelos. Entre muitas outras, gostava de Laetitia Sadier, a francesa da banda Stereolab com suas letras políticas e seu jeitinho cool. Vi um vídeo dela cantando esses dias, alguém disse que ela fez 53 anos, embora algo dela esteja fixado pra mim em algo que eu sentia com 16 anos. Não é sobre rugas ou rosto, tem a ver com algo menos literal e mais rico, algo da memória. A idade é uma coisa, já o tempo é um outro lance mais complexo.

Lembrei de uma música dela chamada “Ping Pong”, de 1994. Fala sobre pessoas e gerações perdendo suas vidas diante dos nossos olhos, sobre como assistimos a tudo num misto de inércia, impotência e cinismo. “Crises maiores, guerras maiores e recuperação menor. Surtos de fome, guerras mais grandiosas e uma recuperação cada vez mais rasa”. Demorei para traduzir essa letra com meu dicionário escolar, mas quando entendi bateu. No final daquela década a MPB produziria um hit sobre esse mesmo tema, um resumo pop sobre classe e precariedade com o famoso refrão que dizia: “o de cima sobe, e o debaixo desce”. Hit do grupo As Meninas, de Salvador, primo daquela do Tolstói, “os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas”.

Crises, gerações, pobreza hereditária. O resto é o outro ali, o menos-gente, aquele que não sou eu nem se parece comigo. Por enquanto. Em muitos casos é como se um grupo esperasse que outro morra antes dele e que isso se converta num tipo bárbaro de segurança.

Assustamos e calamos as crianças, descartamos os mais velhos, aceitamos que a raça e a classe demarquem graus de direito à vida. Nos isolamos em pequenos grupos e brigamos por um lugar ao sol, esse sol do cálculo econômico que nasce pra cada vez menos gente. Se não morremos, nos bestializamos no processo. Será essa a nossa herança?

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes