“Lindinhas” e a precarização da infância

Filme da cineasta franco-senegalesa Maïmouna Doucouré coloca o dedo na ferida e expõe como a opressão de gênero e o narcisismo social afetam as meninas.


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Apesar das acusações, ou justamente por causa delas, de que incentiva a adultização de crianças, em especial de meninas, Lindinhas (Mignonnes) é um filme necessário, que traz diversas discussões oportunas sobre os diversos atravessamentos machistas que limitam e distorcem a formação e o destino de mulheres no mundo todo. O cenário da trama é a opressão de gênero. E o chamado é para a responsabilidade da sociedade que coloca apenas suas necessidades, dilemas e expectativas como único foco a ser considerado, ignorando por inteiro o universo da criança e do adolescente, suas necessidades e dificuldades diante de um mundo que estão começando a conhecer.

O filme coloca o dedo na ferida o tempo todo e pergunta que tipo de informação está sendo passada para nossas crianças. O que nosso comportamento confuso, nosso desinteresse cotidiano, nosso narcisismo social têm perpetuado no imaginário infantil? Quem ou o que estamos aplaudindo e alçamos ao posto de ideal a ser (per)seguido? Que tipo de discurso estamos proferindo de maneira irresponsável, ainda que muitas vezes inconsciente? Que tipo de sofrimento estamos normatizando e quais estereótipos de vida adulta estamos ajudando a consolidar no imaginário infantil? Tudo isso está presente nos questionamentos que o filme trouxe e, por isso, mais do que as imagens desconfortáveis que associamos à pedofilia, nossa parcela de culpa está sendo descortinada de maneira dolorosa.


A cineasta e roteirista franco-senegalesa Maïmouna Doucouré, estreante na direção de longa-metragem, esbarrou na publicidade tendenciosa da Netflix, que não apenas explorou cenas incômodas tiradas do contexto da proposta crítica do filme, como apresentou textualmente essas cenas como ode à pedofilia e à erotização de corpos infantis, que é justamente a crítica feita (posteriormente, a Netflix tirou o cartaz promocional do ar, mudou o descritivo do filme e publicou um pedido de desculpas). Se essas cenas já são perturbadoras no contexto do filme, deslocadas do seu contexto crítico só poderiam disparar gatilhos emocionais e morais, muito embora a reação desproporcional e sem aprofundamento seja típica do momento social em que vivemos, onde pessoas cultivam um pensamento radicalmente binário e acrítico, eliminando violentamente o espaço para diálogos produtivos, o que também impacta negativamente na formação de nossas crianças. Doucouré se expõe de maneira contundente, levando para o público um roteiro sensível baseado na sua experiência triste de vivência infantil em um mundo que trata crianças como seres sem vida, sem inteligência e sem sentimentos. Muito curioso que pais e educadores que vivem incentivando crianças a se tornarem uma cópia mirim de artistas, figuras midiáticas ou personagens de novelas peçam a proibição do filme. Com ou sem apelo erótico, crianças são crianças e adultos são adultos. E não deveria ser encarada como “natural” a imposição de representatividade adulta para crianças, independentemente do contexto ou da intenção.

A inocência infantil da protagonista toma o primeiro choque quando ela descobre o motivo da constante ausência do pai: um segundo casamento. A família islâmica, com sua prática da poligamia permitida aos homens, raramente é questionada ou expõe o lado das mulheres que se veem obrigadas a vivenciar essa situação. Além disso, os sofrimentos causados pela castração subjetiva de mulheres em nome da religião é uma das críticas da cineasta. A menina Amy, interpretada pela atriz mirim e extremamente competente Fathia Youssouf, absorve o sofrimento materno e passa a acelerar a descaracterização da sua persona infantil, já comprometida pelas exigências de dividir com a mãe a função de cuidar dos irmãos pequenos e da casa. Inconscientemente, Amy mimetiza a mãe e tenta libertar a mulher que sofre pela rejeição e ausência do companheiro através dos apelos de uma suposta liberdade oferecida pelo comportamento feminino do mundo europeu ou de valores ocidentais. Mas essa liberdade que a mulher europeia ostenta seria tão diferente assim da repressão patriarcal e religiosa que o islamismo oferece para as mulheres? Evidente que não. Os sofrimentos mudam de roupagem, mas não de intensidade. E esse é o ápice dos inúmeros questionamentos que o filme brilhantemente propõe: o que é ser uma mulher livre? Liberdade é expor o corpo ao crivo, manipulação e aprovação de uma sociedade tão patriarcal quanto a outra, apesar das distâncias geográficas? A sensualidade moldada pelos padrões machistas eurocêntricos pode ser libertadora ou é tão castradora quanto a repressão da sexualidade imposta pela religião?

Tenho afirmado que ser uma mulher livre é entender perfeitamente as artimanhas e armadilhas das sociedades pautadas pela supremacia masculina e branca, para poder se desviar das falsas promessas de segurança (religião) e de liberdade (eurocentrismo). Mas quando você tem 11 anos isso é tecnicamente impossível de alcançar. Daí que discutir opressão de gênero excluindo a infância como um dos focos centrais, como tem sido feito, torna-se um erro fatal. Então, cabe ao mundo adulto conduzir meninas para escolhas conscientes e que não esgotem um emocional que está apenas no início do “jogo” perverso do machismo. Mas, ao invés disso, preferimos dar vazão a nossa sexualidade reprimida exaltando figuras públicas que estão inseridas (ou perdidas) nesse jogo e que acabam por influenciar crianças em sofrimento pelas ausências e negligências familiares, como Amy e as amigas. Nenhuma delas parece ter uma base familiar onde o amor, as trocas, a compreensão e o acolhimento sejam a práxis. Cada uma a seu modo busca atenção e aprovação alheia para suprir aquilo que não tem em casa, seja pelo pai que tem uma segunda esposa e fragiliza o emocional da mãe, seja pelo excesso de trabalho que distancia pais e filhos ou por outro motivo qualquer, atrelado a questões sociais e culturais.

A psicanalista francesa Françoise Dolto, diz que:
“A criança é o sintoma dos pais”.
Quando vamos levar a sério essa informação para avançarmos o debate a partir do entendimento de que:
“A criança é o sintoma da sociedade”.

Nem as mães (e até os pais) são estritamente culpados, pois obedecem o ciclo obscuro que a sociedade chama de “normal”. Mas também estão longe de serem inocentes, posto que são negligentes. Com as redes sociais e a era do narcisismo escancarado, onde tudo e todos são incentivados para a busca desenfreada por likes e visibilidade sem propósitos responsáveis, nossos fantasmas, como o da adultização de crianças, se potencializam. O filme diz, corajosamente, que foi justamente essa dinâmica que deu o start para a confusão mental e o adoecimento de Amy e das amigas. A própria relação entre elas é um retrato dessa época de cancelamentos e utilitarismo nas relações.

Se mulheres adultas adoecem e se perdem em meio a tantas exigências e castrações, imaginem as meninas. Ao contrário do que a publicidade tendenciosa da Netflix tentou pautar para alavancar a comercialização do filme, a cineasta expõe, como jamais visto antes, a dor e os perigos das informações dúbias que a sociedade joga, literalmente, no colo de meninas e mulheres. O filme é uma excelente oportunidade para iniciar a reflexão urgente do que significa, para nós, mulheres, ser livre em uma sociedade moldada pela supremacia masculina. Descobrir isso é poder direcionar e orientar nossas meninas para uma vida plena e emancipada de verdade. É o grande desafio do feminismo na atualidade.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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