Já leu aquele do pôr-do-sol?

Sobre Lygia Fagundes Telles e os terrores do crepúsculo


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Eles nunca vêm sozinhos, os amores e os terrores. Naquele ano eu era feliz, tinha saído da escola do bairro pra uma estadual grande, um caldeirão sem fundo onde ser adolescente não era uma coisa só. Salas com grandes paredes de vidro, praça, jardins internos e um pátio coberto onde o mural descascado via o sol. Querendo, era fácil desaparecer.

Em uma esquina escondida e pouco frequentada ficava a biblioteca, meu lugar de romaria semanal. Voltava às vezes olhando o livro no ônibus, abria a página e catava algumas palavras de canto enquanto ouvia sobre o menino novo na frente da escola, a próxima matinê no Centro ou um emprego no McDonald’s recém-inaugurado. A gente ia balançando no fundo, esperando dar o ponto.

Nessa época minha irmã apareceu com os contos do Allan Poe num livro de capa dura. O Gato Preto e O Coração, que naquela tradução não era delator nem revelador, mas Denunciador, fizeram um sucesso danado. E por algum conluio fantasma também tirei na biblioteca um livro de contos da Lygia Fagundes Telles. Um deles, um dos contos, por motivos cujo mistério é irredutível mesmo às mais detalhadas explicações, impôs sua presença, na verdade está aqui agora mesmo.

Chama-se Venha Ver o Pôr do Sol e nos anos 1990 já era um clássico de duas décadas. Mas não pra mim. Sem internet, sem nada, abrir aquele livro era saber dele pela primeira vez. Nunca tinha ouvido nada sobre Lygia, não que eu me lembrasse. Na biblioteca não havia espaço para leitura, era uma boca cheia de livros no lugar dos dentes. Ela sorria quadrado, a gente entrava e escolhia um, depois saía entregue à própria sorte.

Sim, o Allan Poe era perfeito, inesperado, simplesmente brilhante em tudo. Mas esse terror com palavras de toda hora, gente saltando de táxis, reclamando do sapato, tantas pequenas misérias contemporâneas, aquilo bateu diferente. Um medo difícil de explicar. Quanto mais eu me esforçava pra achar besta e esquecer aquele final mais ele me aterrorizava.

O conto, caso não tenham lido, começa com o encontro de Raquel e seu ex na frente de um cemitério. Eles estão separados, ele enche o saco por um último encontro. Ela agora namora um cara rico, talvez ciumento, parece estar ocupada, mas resolve ir. E vai por algo que só especulamos, algo que Lygia tem a sutileza de jamais apontar com o dedo e que ainda sim escreve no concreto.

Raquel ouve e aceita as lorotas do ex, seus caprichos sem charme, suas palavras mortas. Talvez ainda veja algo ali, talvez cultive uma ilusão, talvez seja outra coisa. Enquanto reclama ela segue em frente, cansada de tropeçar, sugada pela situação. Nós vamos procurando armas, redes, algemas e facas, ameaças não achamos nada além de desculpas e lamentações, uma ironia amarga, o que torna tudo pior, mais claustrofóbico. A gente sente um perigo atmosférico não sabe exatamente do que desviar, parece não haver desvio possível porque ele é o próprio ar.

Então você vai andando com Raquel até o fim. A gente lê nossas vidas nas trepadeiras, nas pedras, no anjo sem cabeça, na lápide à eternidade do amor por uma esposa. Detesto essa palavra. De eternidade e amor eu gosto.

Raquel, Raquel, saia daí, mulher. Raquel, se escute, olha o que você tá dizendo, o quanto você se alerta o tempo inteiro, mas seu corpo vai indo indo indo como se não pudesse fazer outra coisa. Olha o papo dele, esse ressentimento em cada pausa. Que teatro.

Raquel parecia condenada porque pra mim essa se desenhava como a história de uma condenação fantasma, não outra.

O sol nasce no Oriente, Raquel, é pra lá que você tem a viagem marcada, será que tem mesmo? Mesmo assim, por que aceitar esse final, esse pôr-do-sol a contragosto? Eu mesma nunca entendi o que tem de romântico nesse tipo de convite que não fala de lua nem de amanhecer.

O conto vai até seu ponto de corte e nada mais. Lygia recua e te deixa com a marca de ter lido aquilo. É uma escritora. Nos jornais se lê casos piores todo dia, nas esquinas também. Mas o noticiário nem chega perto de escrever o terror, sofre de certas limitações do relato, mesmo o mais bem feito. E nas ruas o silêncio é cru, devastador.

Quantas vezes tentei mudar os passos da Raquel. Ela não ia e não havia conto. Ela tinha secretamente levado uma amiga até aquele fim de mundo, a moça esperava escondida pra salvar o dia. Ela tinha um negócio na bolsa. Ela conseguia, por favor. Mas estava lá o ponto final. Ali era definitivo, estava posto de um jeito sem escapatória, janelinha lacrada.

Tentei ler críticas que falavam de estilo e narrativa, estudos sobre o conto e os simbolismos da morte, sobre a vingança. Tentei fingir que uma história é só uma história, que pode ser garantida e esmiuçada em outras palavras, assim totalmente explicada, uma resposta definitiva, pronta, uma pílula. Não adianta. Tem certo alívio, mas é soprar machucado. Ou a gente decide criar com isso ou carrega nas costas.

O ponto final redondo girando no mesmo lugar. Mas se você der seu jeito cria uma passagem por dentro, dali pra outra coisa. O ponto é um buraco de minhoca, a toca do coelho, olho mágico do monolito, uma geometria de viagem, tombo de livro, um corte. E depois? Depois, outras palavras.

Citando Drummond em uma entrevista que deu a Clarice Lispector, Lygia falou dessas coisas de escrever, do cuidado necessário, da dúvida inegociável, da busca e das escolhas. “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?”.

Que mal ou bem quer de nós esse enigma que despreza a solução?

A chave do conto não estava nas mãos da Raquel naquela sequência de passos, o que foi uma pista inesperada em um mapa cruzado onde o X foi apagado. Quanto mais ela não saía, mais eu me soltava, mais ela me soltava, mais ela se soltava comigo e nos libertávamos juntas de uma certa lógica de cadeado. Às vezes a fechadura aparece quando podemos botar a prisão em nossos termos, não antes. Como arrumei essa chave específica é outra história, não um exemplo. Não foi sozinha.

Lygia tinha uma certa seriedade, e sua escrita um traço responsável de amizade. Não do tipo boazinha nem piedosa, o que torna qualquer um insuportável, talvez um pouco secretamente cruel, com medo de inspirações diabólicas. Clarice, que tinha intimidade com ela e com isso tudo, notou que a amiga carregava rugas de preocupação. Disse pra Lygia desanuviar a testa e comprar um vestido branco. Deixou isso num bilhete, e foi a última vez que se falaram antes de sua morte. Depois já não sei.

Quando conta essa história, descreve a letra da Clarice como “desgarrada”. Achei tão bonito, bem escolhido. Agora ela também desgarrou.

Não pensem que por ser uma burguesa séria, elegante e pensar tanto em esperança não era divertida. Dizia assim: “me leia enquanto estou quente”. Em algum lugar tenho sempre o grau de 14 anos e estou abrindo esse livro, legiões de Lygia, uma escritora espalhada no sinal ou na sombra bem perto do meio-dia.

Vivian Whiteman, escritora e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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