Samira Makhmalbaf e o que há de errado com as mulheres afegãs (e conosco)
Cineasta iraniana expõe um dos efeitos mais perigosos e cruéis da opressão: a descrença na capacidade coletiva de tomada do poder.
“Instrua a todos os homens devotos que fechem
seus olhos diante de mulheres, e que controlem sua luxúria.
Pois é mais decoroso, e Deus sabe de tudo que fazemos.
E que as mulheres se abstenham de dançar.
Que seus encantos permaneçam escondidos.”
(Trechos de cânticos religiosos proferidas por mulheres em um grupo de rezas do Cabul )
Ainda que eu fosse especialista em geopolítica mundial, não me atreveria a explicar o que se passa no Afeganistão e em todos os conflitos políticos de cunho religioso/imperialista que acontecem nessa região do mundo. Penso que dar conta das complexidades do nosso país e entorno imediato, a América Latina, já é tarefa desgastante o suficiente, mesmo sabendo que as relações internacionais afetam diretamente todas as articulações políticas do nosso país, o que não nos permite um desligamento completo.
Contudo, quando o assunto interfere diretamente nos direitos das mulheres, não há como se permitir algum nível de alienação ou omissão.
A supremacia da masculinidade patriarcal, apesar de não ser novidade no mundo e estar longe de ter um fim, mesmo com avanços inegáveis, estabelece uma correlação que, de alguma forma, une mulheres no mundo todo, mesmo aquelas que não são feministas ou não têm consciência clara sobre a opressão que redesenha socialmente suas existências.
Mas é curioso perceber que os avanços, com todos os limites que implicam, ainda não deixaram suficientemente entendido que certas atitudes não devem mais acontecer, são “cringes” de verdade.
Como a questão do direito à palavra. Suprimir esse direito tem sido uma das práticas ou tecnologias de opressão e dominação das mais eficientes. Se homens têm na imagem do pênis ereto a metáfora de poder que faz com nossa sociedade, além de patriarcal seja falocêntrica, nosso falo é a fala. É através da fala que podemos iniciar o processo de empoderar a nós mesmas e inspirar outras a seguir na busca pelo seu empoderamento, até que a coletividade possa chegar ao mesmo nível e juntas possamos, estrategicamente, traçar nosso caminho de emancipação.
Não por acaso, apesar das literaturas que têm sido produzidas atualmente, a questão do lugar de fala é propositadamente distorcida, especialmente por homens e/ou mulheres subopressoras, que no passado detinham o privilégio social exclusivo da fala como propagadora da história única.
Sempre lutei para que pudesse falar por mim mesma, principalmente por saber que no centro do poder político, que é branco e masculino, se articulam todas as formas de supressão da palavra, seja falada ou escrita, de quem está posicionado no lugar que acima descrevo.
Frente a esse fato, cabe o alerta para pessoas que sofreram e sofrem com a prática do silenciamento (que se dá por meios diversos) tomem todo o cuidado do mundo para não reproduzir aquilo que nos fez e ainda faz tão mal.
Então, me permito falar sempre e seguramente de um lugar que conheço muito: o de mulher, preta, duplamente periférica (por ser afro-latina e morar em um bairro paulistano distante do centro), heteronormativa e assalariada (portanto, pobre).
“Como pode uma mulher com uma criança se tornar presidente?
Você já viu uma mulher sem filhos?
As pessoas não vão escolher uma mulher pra ser presidente!”
(trecho da discussão política entre duas alunas da escola para meninas, no filme Às cinco da tarde)
Por essas e muitas outras nuances que aqui não caberiam, queria muito deixar esse espaço para que uma mulher afegã pudesse falar de si, sobre si.
Ouvir seria um conforto e uma oportunidade para tomar contato com uma realidade que eu não conheço de perto. Ouvir vozes da resistência deveria ser sempre um conforto, e não um confronto.
Mas na impossibilidade desse meu desejo ser atendido, resolvi recorrer ao que estava mais próximo possível disso: o cinema, esse espelho-janela que nos ajuda na compreensão do que nosso olho social não alcança.
Mas não qualquer cinema, e sim o cinema potente feito por uma das minhas preferidas, que não é afegã, mas é vizinha e profunda conhecedora dos meandros que compõem a complexa colcha de retalhos das relações políticas do Oriente Médio: a iraniana Samira Makhmalbaf.
Cineasta por, talvez, influência do meio, de talento sensível e coragem notável, Samira muito contribuiu com minhas reflexões sobre mulheres, solidão política, corpos dissidentes e privação de liberdade com o seu filme de estreia, A maçã, de 1999, uma mistura de reportagem/documentário e pitadas de ficção ou simulação da realidade.
O filme recria o caso de duas irmãs gêmeas que cresceram confinadas dentro de casa pelo pai, um fundamentalista religioso que acreditava que as mulheres são a perdição do mundo e por isso não deveriam ser vistas. Samira teve um segundo filme, igualmente bem sucedido e elogiado, Quadro Negro, de 2002.
Já em seu terceiro filme, Às cinco da tarde, de 2003, uma produção franco-Iraniana, Samira nos traz uma narrativa que tem muito do que já é sua marca pessoal: apresentar problemas sociais complexos de forma (quase) imparcial, convidando o espectador a pensar junto, à medida em que expõe a complexidade dos fatos envolvidos, e formar sua própria opinião. O cinema de Samira não se isenta, mas não é tendencioso nem panfletário e nos ensina que tudo deve ser considerado quando o assunto são problemas sociopolíticos. Pensar assim, talvez, nos livraria dos negacionistas generalizados que pairam sobre nossas cabeças.
Em Às cinco da tarde, ela dirige seu filme como quem coloca uma cadeira no muro para acompanhar atentamente os problemas que se desenvolvem na casa da vizinha, com respeito e humildade, sem intervir de maneira salvacionista. Como se dissesse: “Eu estou aqui e confio na sua força”.
Mulher iraniana, que já sofreu perseguição política em seu país por ousar usar seu falo, a palavra, para confrontar a supremacia masculina com seu trabalho, ela sabe a importância de não falar pelas mulheres afegãs e entende que a manifestação da sororidade aqui é no sentido de passar para essas mulheres a confiança que o sistema de opressão e dominação tenta minar.
A ambientação cronológica do filme se dá logo após a queda do regime Talibã, em 2001, com o Afeganistão destroçado, mas ainda longe de ter condições de se recompor, já que o imperialismo ainda está presente, batendo com uma mão e acariciando com a outra.
Isso fica sinalizado no filme através dos helicópteros e aviões que sobrevoam o país, enquanto as pessoas no chão, extremamente árido e sem vida, lutam para sobreviver em meio à terrível escassez de recursos básicos, como água e comida, peregrinando entre as ruínas, que nem abrigo físico oferecem. É emblemático os lugares onde eles param para constituir suas moradias – ruínas de prédios institucionais, destroços de avião abandonado etc.
Já as mulheres estão tentando reconstruir seus sonhos, diante da possibilidade de retorno às escolas que haviam sido proibidas durante o regime Talibã (reparem que todo regime autoritário ataca a educação, esse caminho inegável para a formação do livre pensar).
Muitas fazem isso a contragosto da família, como é o caso de Noqreh, vivida pela bela e expressiva atriz Agheleh Rezaie, que finge que vai para um espaço de ensino religioso para poder frequentar a escola. A mudança de sapatos gastos e feios para um par de escarpins brancos de salto médio é a metáfora da mudança de status intelectual que regimes autoritários como o Talibã tentam impedir de acontecer na vida das mulheres. Tão importante quanto o lugar que você pisa é como você pisa: com autoconfiança e esperança ou com submissão internalizada? Seria esse um dos questionamentos contidos nessa metáfora?
E é na escola que Samira nos dá uma das melhores e mais contundentes cenas do filme: a discussão entre duas jovens, depois que uma delas manifesta o sonho de se tornar presidente do Afeganistão, tendo como referência a primeira mulher a governar um país muçulmano, Benazir Buttho, primeira-ministra do Paquistão, assassinada pelo regime fundamentalista do país em 2007, logo após discursar em um comício para sua possível volta ao cargo que ocupou por duas vezes.
Em uma turma com cerca de 100 alunas, menos de cinco sonham em ocupar o cargo de comando mais importante do país, e essas são alvo de deboche das demais. Elas simplesmente não acreditam que mulheres consigam tomar o poder, mesmo após a queda do Talibã e a promessa de um novo tempo trazida pela abertura das escolas para meninas. Nessa cena, Samira expõe um dos efeitos mais perigosos e cruéis da opressão: a descrença, não na capacidade individual, já que as meninas parecem muito felizes e confiantes em um futuro diferente com a retomada dos estudos e todas têm planos de se tornar engenheiras, médicas etc. Mas na capacidade coletiva de tomada do poder, elas não acreditam.
É justamente esse o lugar onde a verdadeira intervenção pode ser articulada salvando a todas ou, pelo menos, parte delas.
Ao não acreditarem que é possível que haja no Afeganistão uma mulher presidenta, a narrativa de Samira nos mostra o que há em comum, e triste, em todas as mulheres, em toda parte do mundo: o esquecimento ou inconsciência da força que emerge quando a coletividade se constitui e acredita em si.
Essa seria a consolidação do trabalho de empoderamento. E estamos longe disso, sobretudo em um Brasil que, às vésperas das eleições, sequer cogita uma articulação política entre mulheres, feministas ou não, como uma terceira via na disputa presidencial. Mais do que nunca é preciso entender que o golpe em Dilma Rousseff, a despeito de seus méritos ou deméritos como presidenta, foi principalmente na luta das mulheres por emancipação e divisão igualitária de poder.
Como podemos ajudar de alguma forma as mulheres afegãs, já que partilhamos da mesma necessidade de retomada da autoconfiança política que elas?
Assim como as mulheres afegãs, não temos medo e não precisamos que falem por nós. Mas não confiamos umas nas outras, não formamos pactos para um bem maior e coletivo, porque estamos, nós, brasileiras, ocupadas demais fortalecendo homens que jamais vão recuar dos privilégios da supremacia em benefício de nossas vidas. Mas ao contrário da expressão paternalista das mulheres brancas do Ocidente, Samira confia na voz e no poder das mulheres afegãs e sabe que é só uma questão de tempo para que a força delas se canalize para ações maiores e coletivas. Não será fácil, mas há de se concretizar.
E cabe a nós fortalecê-las, acertando nossas questões, pois, a despeito da assertividade ou não de Benazir Bhutto, ela conseguiu mostrar que é possível. Essa é a função política da representatividade: nos mostrar ou lembrar que é possível, por mais difícil que pareça.
Talvez, por isso, Samira Makhmalbaf termine o filme com uma metáfora importantíssima expressa por um homem enterrando um Deus que morreu pelas consequências da opressão e dominação. Deus é uma mulher.
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