NDA + MDC = a transformadora equação da energia do coletivo

Em gatilho disparado por uma tribo carnavalesca de ciclistas numa tarde de chuva, Erika Palomino fala das modas, das florestas e das nuvens de poeira.


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Chove. O tempo virou de repente. Sob a marquise do museu, ciclistas se protegem, criando um inusitado grupo. Algumas meninas de short jeans e parte de cima de biquíni; garotos com roupas casuais do domingo. As bikes no chão, à espera da chuva passar. Logo se ouve um ambulante oferecendo cerveja. Ah, as dinâmicas da chuva. Do nada aparece alguém vendendo guarda-chuvas a preço de oportunidade ou, mais adequado ali e aqui, uma gelada: aquela chuva não iria passar mesmo tão cedo.

Tentando estabelecer rápidas sinapses, minha mente não reconhece de imediato se 1) eles são todes amigues; 2) se são um coletivo performático (uma das garotas usa uma fantasia e maquiagem teatral); 3) se são um bloco carnavalesco gravando um clip; 4) se são um bloco carnavalesco antecipando o Carnaval num domingo de primavera; 5) NDA.

Talvez fossem somente um grupo que randomicamente se configurou naquele espaço, tendo como mínimo denominador comum o escape da tempestade de raios, amparados pela imponência do vão livre da instituição. Porém, eles estavam muito juntos, muito próximos, e talvez tenha sido essa cena, e essa energia, sobretudo, que meu olhar retiniano y ainda pandêmico não reconheceu. Eram diferentes entre si, entre elas, entre eles mas, juntos/juntes, no coletivo, tinham uma energia, certamente uma energia.

Outro dia, aqui na praia, uma cena me chamou a atenção. Uma garota chega, e cumprimenta a turma. Dá dois beijinhos, como se sabe que é o hábito carioca, abraça carinhosamente quem lá já estava. Sorri. Mais um bug mental. Meu cérebro começa o “search file”, a busca por arquivos na memória que possam informar a causa de tal vertigem. Óbvio. Fazia tempo que não via gente sem máscara, bocas, lábios, beijinhos, gente muito perto uma da outra, ainda mais com pôka rôpa.

O mais perto que cheguei de aglomerações nesse tempo todo foi o transporte público. Hummmm. Talvez eu queira, como na Ásia, adotar o costume de usar máscaras no transporte público. Será? Acho que ninguém mais vai querer usar máscara tão cedo. Nem no Carnaval. O ar que falta, a claustrofobia. As identidades que não se revelam. Por vezes, pode ser bom. No Parque do Flamengo, numa tarde, passou uma pessoa correndo toda coberta. Será que é a Xuxa? Será que é a Kim?

Ah, e o Saara. Atravessar não o deserto mas as barracas de comércio popular de rua no centro do Rio me trouxe palpitação, para não dizer pânico. Apertei a máscara, lembrei que não era para colocar a mão na máscara, me agarrei no álcool gel, respirei fundo, e fui.

Me lembro, no tempo das viagens, de viagens tão longas e tão frequentes, que por um átimo de segundo chegava a esquecer para onde estava indo. E por outro átimo, aquele em que sentimos medo do que vamos encontrar, de excitação diante do desconhecido, que queria não chegar. Ah, melhor ficar aqui nesse avião pra sempre, nesse trem pra sempre, nessa estrada pra sempre. Queria que a viagem, que o percurso, nunca terminassem. Pra não lidar com o que não sabia que iria encontrar. O que tem do outro lado?

Estou imunizada mas querendo muito uma terceira dose.

Do outro lado da pandemia, a imagem é a da nuvem de poeira dos céus do interior paulista. Nossa própria visão do apocalipse. Finalmente produzimos uma à altura dos melhores estúdios de Hollywood. Pode cancelar os efeitos especiais. Temos.

Corta pro red carpet da Balenciaga povoado pelos Simpsons. Demna disse que fez tudo isso porque para ele não fazia sentido a ideia de um desfile. Ufa. Que alívio. Pensei que fosse só eu pensando assim e que aquelas pessoas subindo as escadas do Metropolitan fossem somente habitantes de um mundo que não existe mais. Quer dizer, existe, mas enfim. Gvasalia domina como poucos a arte do simulacro, educado que foi nos anos 1990. O dom de iludir.

A moda hoje não tem. Tem as modas. Muitas modas, múltiplas, existindo em simultaneidade, em sincronicidade. Daqui a pouco vamos usar aquelas silhuetas. Aliás, já podemos usar. Acho que tenho uma calça daquelas, um casaco. Mas aqui faz calor. Então deixa pra lá. Gosto de ver as pessoas se vestindo do jeito que dá. O clima é imperativo, e foram os modernistas do Recife que aboliram os hábitos daquele longínquo século 20 ao decretar o uso do linho e não da lã para os verões brasileiros. Chega de se vestir como se os homens estivessem na Inglaterra, e as mulheres no passeio de Paris.

O clima é imperativo. Há tempos lemos sobre migrações provocadas pelo clima. Sobre condições tão adversas que obriga as populações a se mover, a se mudar. Essas histórias não são mais bíblicas, ocupam noticiários, a internet, a realidade. Que, na real, existe.

Estamos estragando tudo ao deixar passar essa boiada toda. Já poderíamos ter percebido mas, 1000 dias depois, as pragas que não são egípcias, continuam. Corta para a imagem da marcha das mulheres indígenas em Brasília. Em grupo, próximas umas das outras. Em bloco. Vi essa imagem ao vivo, quer dizer, pelo celular, no instagram da @anmigaorg, que é “o” instagram para você seguir agora. Nesta segunda edição, o evento marca a potência dessas mulheres que deixam seus territórios para, reunidas, cantando e dançando, manifestar-se pelos direitos dos povos indígenas. Era 7 de setembro.

Na reunião da ONU, não ele, ele não, ele nunca, mas 200 cientistas alertam sobre a importância da Amazônia e sugerem a escuta dos saberes indígenas. Estamos quase num ponto de não-retorno. Continuamos, brasileiramente, contando com a sorte e deixando tudo para o último minuto. O Brasil é tão maluco que só agora estamos começando a entender que a Amazônia é sim o Brasil.

A imagem dessas mulheres guerreiras e fortes volta, desde então, à minha mente, e eu a persigo, em seu movimento, em sua energia. Fecho os olhos e não quero ver a fumaça, quero terminar essa viagem, chegar do outro lado e encontrar… (complete aqui em 2022).

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