O espelho social Conká

Reações de ódio exacerbado ou de complacência falam mais sobre a nossa persona social do que sobre a "vilã" do BBB.


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Se você gosta de reality shows ou não, isso não fez diferença nas últimas semanas. O BBB importunou, perturbou e cutucou (quase) todo mundo.

Como não curto nadar no raso, apesar dos indícios lamentáveis do comportamento problemático da protagonista das polêmicas, fiquei intrigada com as reações de ataque e também de defesa que se seguiram nas últimas semanas, destinadas àquela que, ao que parece, é a participante mais odiada da história desse programa.

Ódios e defesas indiscriminados e confusos têm transformado cada vez mais este país em uma gigantesca arquibancada de jogo de futebol em dia de clássico: tem Fla x Flu sobre tudo e com paixão suficiente para ensurdecer qualquer zen budista meditativo.

Mas se todos somos problemáticos em alguma instância ou em momentos específicos, dá para concluir que todas as manifestações, até aquelas que parecem advindas de uma superioridade moral (de perdão ou de condenação), falam nada sobre Karol Conká e muito sobre nossa persona social? Dá sim.

Odiar pessoas negras só por serem negras ou amá-las de maneira paternalista é comum no racismo brasileiro. Pessoas apresentarem comportamento desajustado também é comum, independentemente da raça, etnia, gênero, orientação sexual, classe social etc. Pessoas são pessoas, e todas essas questões que compõem a nascente das desigualdades são estritamente políticas, por mais que perpassem camadas da nossa vida que, aparentemente, não têm nada a ver – como a afetividade, por exemplo. Portanto, faz parte do processo de humanização de pessoas negras entender que elas podem apresentar mau caráter, comportamento abusivo, nocivo para si e para os demais, tanto quanto pessoas brancas, embora o racismo faça com que essas últimas não sejam cobradas da mesma maneira. Inclusive pessoas negras que são artistas canonizados ou figuras aclamadas.

O que isso está nos dizendo nas entrelinhas?

Aqui, na Terra, lugar que muitos julgam que é o próprio inferno (ou que as pessoas que nele habitam o são, já que “o inferno são os outros”!) a rejeição furiosa da rapper Karol Conká diz muita coisa.

Karol se tornou, em pouquíssimo tempo, um espelho bifurcado, uma espécie de portal entre a realidade suportável e o oculto da alma humana, onde gárgulas, tricksters, daimons e outros seres trevosos repousavam.

De um lado, temos aqueles que se reconhecem, inconscientemente, na personalidade caótica e nociva de Conká e, por isso, defendem o indefensável. Nesse grupo, temos discursos sendo proferidos do alto de uma complacência forjada para alimentar o autoengano de uma superioridade moral narcisista. Esses estariam, como diziam os mais velhos, “colocando as barbas de molho”.

Do outro lado, estão os exacerbados, viciados em projetar no outro as suas debilidades para que odeiem a si mesmos ou não sejam levados pelo impulso de se destruírem. Ambos os grupos estão exercitando mecanismos de defesa do ego ( da teoria freudiana) mais comuns: projeção e negação.

Os da defesa estão negando que uma imagem péssima foi, na verdade, confirmada pela atuação de Conká dentro do programa. Antes da participante entrar, já havia manifestações diversas de desafetos apontando seu comportamento problemático.

Os do linchamento estão projetando na Conká os problemas que são deles, dos quais eles não sabem lidar, mas que atormentam o bastante para necessitar serem jogados para fora.

Conká, com todos os seus problemas comportamentais, não merece colo e tampouco pedras. Merece recolhimento para que espie as origens que movem suas práticas nocivas dentro das relações que estabelece em sociedade. Conká merece embarcar, no seu tempo, em uma viagem interna para enfrentar seu quarto de bagunças interior. E não deve ser tratada nem com permissividade enfraquecedora e nem com punição improdutiva.

Nada mais parecido com o ódio insano do que a complacência forjada e seletiva.

O ódio que ela recebe agora não é dela e nem para ela. É a reação inconsequente de pessoas que não querem entender que podem ser tão ou mais problemáticas do que ela. E a complacência forjada também não é para ou por ela. É para a criança interior que minimiza seu comportamento nocivo e está tão mimada que não se questiona.

No mundo real, tanto quanto no BBB, pessoas erram e devem assumir as consequências dentro do tempo que lhes é humanamente possível. E é isso que as redime e restituirestaur a sua paz de espírito. E cada um que lide com sua Conká interior.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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