O reality show da vida real (ou quase)
Jogos Olímpicos nos fazem refletir sobre vidas extraordinárias e sobre qual sociedade queremos para nós, atletas do cotidiano.
O Olimpo, esse lugar a que pertencem os deuses, materializa-se diante de nossos olhos de quatro em quatro anos. Cinco agora, como se sabe, nesse tempo distendido pela pandemia. E o Olimpo, também se sabe, é esse lugar mais para deuses do que deusas. Por isso faz tão bem, chega a confortar e consolar, ver algumas garotas ocupando seu espaço no pódio, na TV, no noticiário. As Olimpíadas de Tóquio, invadindo as madrugadas, com seu mundo paralelo, trazem até alívio e certo escapismo a nós, telespecs da vida real, reality show que é tão simulacro quanto pós-verdade, com seu elenco de participantes isolado na Vila Olímpica, multado quando sai para turistar na torre de televisão japonesa que é cartão-postal de uma das cidades mais doidas do planeta. Daqui, aguardamos com afã aparecerem os apresentadores de TV em suas camisas azuis de doer a vista, do outro lado do mundo, ao sol, quando dormimos.
Nada parece real. Mas é.
Impossível pra gente saber pelo que passa alguém nesse patamar do esporte, nós, reles mortais. As dores, imagina? Os sacrifícios a que esses corpos são submetidos, a disciplina extrema que essas pessoas têm de ter, as coisas das quais abdicam, ao que renunciam para treinos e mais treinos, as dificuldades para conseguir treinar. Ainda mais no Brasil. Se a vida comum, banal, já se apresenta com o grau de complexidade que vemos e/ou passamos, pensemos numa vida extraordinária. Não dá mesmo nem para imaginar. Daí, os lugares de “superação” aparecem como inversão de narrativa, muitas vezes, sobretudo pela mídia em sua maioria branca, em textos capciosos que resvalam no racismo e no sexismo abismal de cada dia. Rebeca Andrade materializa a vitória de uma cidadã extraordinária, e nos faz sublimar nessas eras tão carentes de inspiração.
Vitória versus derrota, campeões, perdedores, alguém que “caiu”, outra que “não conseguiu”. O vocabulário dessas competições e falas diz muito sobre quem somos. Costumo, fora das Olimpíadas mesmo, ler sobre esporte, me interessa analisar como quem escreve precisa dar conta de narrar as jogadas, os movimentos, a energia do campo e do estádio, traduzir para seu leitorado o que, efetivamente, aconteceu no jogo, e quase sempre com imparcialidade. Gosto de ver onde e como entra a emoção, onde entram adjetivos e pontuações. Além disso, ler sobre esporte me relaxa, enquanto me ocupa a mente, me informa e me inspira. Documentários sobre esporte, como esse recente, de Michael Jordan, me deixam eletrizada e dali sempre tiro coisas para a vida. MJ fala muito sobre estar presente, e em como ele ia jogando cada jogo, sem pensar nos próximos, sem pensar no campeonato, sem pensar na última vitória ou última derrota. De fato, sem ele estar inteiramente presente ali em quadra jamais teria realizado o que fez. Um cara fora da curva, sem dúvida, mas sua qualidade de presença também impressiona.
Fui assistir ao doc de Naomi Osaka, a tenista, que era (ou foi, ou é) “o rosto das Olimpíadas de Tóquio”, e o documentário exala a melancolia da atleta. Ela já havia saído de torneios e se negado a participar dessas entrevistas coletivas bizarras, a que enfrenta sozinha, aquele batalhão de jornalistas, de novo em sua maioria homens brancos. Sua batalha contra a depressão (e o possível pânico), a solidão, suas questões, foram citadas por Simone Biles quando ela também decidiu não participar de provas, trazendo à tona sua saúde mental e sua segurança física. Simone Biles chegava a essa Olimpíada extremamente badalada pela mídia norte-americana em peso, esse peso que, segundo ela, era demasiado mesmo para seus fortes ombros. Sem nem mencionar como ficaram os treinamentos para atletas do mundo todo, no isolamento do coronavírus, a recente luta para colocar no xilindró o médico que a molestava (e a outras centenas de meninas, por anos), já seria assunto suficiente para administrar. E é muito, muito impressionante saber que as violações a que as atletas eram submetidas aconteciam minutos antes e depois de elas entrarem em importantes competições. Tem também um documentário sobre isso.
Simone Biles menciona um certo tilt que acomete atletas da ginástica quando giram, no alto, os “twisties”. Sem saber onde está, pode cair de qualquer jeito, e se machucar, e muito. Curiosamente, essa orientação extrema em sua mente, o fato de girar e girar e cair em pé feito gato, sempre foi uma de suas características. Ao assumir em público, nas redes sociais, em todas as entrevistas, ao falar (e muito) de suas (entre aspas) limitações, a atleta abriu espaço para que a gente possa ver essas e esses jovens de forma mais humana, com mais empatia, acolhendo suas vulnerabilidades. Que, no fundo, é o que queremos para nós.
Lidar com toda essa pressão toda também é algo que o esporte nos proporciona ver. Lidar com os medos, com as inseguranças. Com o que nos aprisiona mentalmente e nos impede de seguir. Mais que no corpo, sabemos, está tudo na mente. Falar disso se faz cada vez mais necessário. Falar, também, parece fácil e até clichê. Mas é complexo, e difícil.
Esses momentos, esses ápices, como a temporalidade dos ciclos olímpicos, de quatro em quatro anos, fazem emergir que tipo de sociedade somos e que queremos ser. Que as mulheres do esporte e da vida real possam usar roupas que não nos sexualizem. Que a gente tenha oportunidades iguais, no esporte e fora dele. E será que se Simone Biles fosse brasileira, nós a trataríamos com afeto e compreensão? Como lidamos com a “derrota”? Como lidamos com nossos “campeões”? Como a gente lida com nossos twisties diários?
Rayssa Leal, a skatista de 13 anos que conquistou os corações do planeta com sua leveza em todos os sentidos, ela que chama Tony Hawk de Toninho, sorri e diz que está apenas se divertindo. Talvez seja esse o segredo da medalha. Que nem precisa ser de ouro.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes