Primavera nas redes?

Sobre amor, psicanálise e encontros nos tempos do corona.


origin 1077



Faz pouco tempo voltei pro Twitter e fiquei muito intrigada com a quantidade de posts falando sobre como os relacionamentos devem ser simples, suaves, sem dúvidas e descomplicados.

O que será complicado? O que será um relacionamento sem dúvidas, existe isso? A resposta parece óbvia, mas pode ser muito diferente de pessoa para pessoa. O que em si já é difícil de descomplicar logo de cara.

Mais curioso ainda é relacionar esses posts com outros que falam da comunicação, do xaveco e dos relacionamentos nos tempos atuais. Em uma semana de pesquisa, guardei dezenas de posts dos dois tipos.

De um lado, a exigência de afinação, harmonia e tudo muito bem resolvido, fácil como um picolé no verão. Os mais exaltados têm uma frase de efeito: isso é o mínimo. Fiquei imaginando quais seriam as exigências de máximo nesse contexto. Eu mesma seria um fracasso completo nesse modo tão rígido de avaliação.

De outro lado, Babilônia em chamas. Confusões virtuais, cansaço, distância, carência, uma porrada de sentimentos em redemoinho diante da necessidade de se criar novas formas de encontro, de chegar em alguém. E muita luta pra renovar os relacionamentos que já existem dentro das novas condições.

Fiz um curso de psicanálise de casais que consistia basicamente em uma analista muito experiente nesse assunto fazendo relatos comentados de casos. Logo de cara ela largou essa: quando analisamos um relacionamento, embora cada um esteja, em geral, ali presente como sujeito, o que está em jogo é o vínculo. Ou seja, o que acontece quando essas pessoas, com suas histórias, corpos, pensamentos e inconscientes, se juntam? Que tipo de vínculo elas estabelecem e como isso vai se formando? Será simples? Talvez sim, mas não se trata de condição, muito menos de uma exigência que possa ser generalizada como sinônimo de certo, de sucesso.

Pra quem não curte, talvez seja difícil aceitar, mas muita gente gosta do drama. E não falo aqui dos que estão presos a um tipo de martírio sofredor. Gente que apenas gosta de uma intensidade extra, de um barraco, de se descabelar de vez em quando, é assim que se sentem satisfeitos, e estão em seu direito de ser o que são. O drama pode ser saudável e muito interessante, excitante. Tem quem se divirta, e muito. Há até quem consiga organizar uma vida a dois (ou a três, a trezentos, vai saber) com muita confusão envolvida.

É bom pra todo mundo? Não. Assim como a vida levinha e suave também não é. Na real, há poucas coisas que funcionam pra todos em termos de um relacionamento legal. O respeito pela gente mesmo e pelo outro é, na minha forma de ver, uma dessas coisas.

Pode haver respeito no drama, na calmaria, na monogamia, na putaria e em tantas outras possibilidades. Uma das coisas que ajuda a identificar o que hoje se chama por aí de relacionamento tóxico ou abusivo, com algumas variações de sentido e intensidade, é a ausência de respeito, o fato de não haver acordo. Em geral, o que se encontra nesses casos são ciclos traumáticos, repetições dolorosas, culpa, jogo sujo e muita manipulação, muita exploração.

Cada caso é um caso, mas, em termos bem amplos, há quase sempre alguém muito enfraquecido em cena, um eu talvez machucado, talvez impedido de se dar o direito de existir e encontrar prazer na vida, alguém que só conheceu o abandono ou que se sente obrigado a aceitar qualquer coisa com um sorriso. Há que se investigar, as possibilidades são inúmeras e podem surpreender. O relacionamento abusivo pode ser inclusive muito simplificado em seu funcionamento, com o mesmo enredo sofrido e cruel sendo repetido até o fim.

Já os relacionamentos saudáveis podem ser e, em alguma medida, sempre são meio complicados. Porque viver também é. O que não é sinônimo de triste nem de ruim, de um lance que traz opressão e sofrimento. A maioria de nós já viveu complicações maravilhosas. E outras ruins, que podem ter nos ensinado alguma coisa. O relacionamento saudável não é isento de dor, mas nele há respeito e confiança.

Nossas questões vão com a gente para as nossas relações, precisamos nos conhecer, investir nesse processo e aceitar que estamos em constante desenvolvimento. A dúvida, as fases difíceis, as mudanças, os confrontos, os conflitos internos não estão fora disso. Muitos de nós têm dificuldades até com a alegria, com a felicidade, o que pode ser um problema grave. Soma-se a isso o quanto somos afetados e atravessados pelo social e vice-versa. A pandemia tem mostrado outras faces dessa história, inclusive uma engraçada.

Morro de rir com os memes sentimentais de perfis como Melted Videos ou Gatos Anônimos. Pessoas tentando decifrar uma série de emojis que alguém enviou. Uma mensagem visualizada e não respondida dando origem a toda uma sequência de viagens, noias e teorias de fracasso. Uma mensagem postada por um motivo aleatório, ao menos inicialmente, e que é lida como indireta. Uma música postada como indireta, mas que chega ao outro com a mensagem totalmente invertida. É muito telefone sem fio na vida desses apaixonados, minha gente. Mas estamos todos aprendendo.

E não adianta dizer que só o papo reto modelo pré-Covid ou pré-internet funciona. Outras maneiras de chegar estão rolando e devem ser consideradas em sua validade. Elas não substituem o encontro, óbvio, são novas formas de fazer com que eles aconteçam em tempos difíceis, num país que está sendo massacrado diariamente. Como esse massacre não teria nenhum impacto sobre os relacionamentos? E que bom que as pessoas estão dando seu jeito de deixar o coração aceso mesmo à distância, encontrando maneiras de dar risada, brotando uma Primavera possível. Se mexendo com responsabilidade, sem fingir que nada mudou.

Os desencontros também são tão legais às vezes. O erro faz parte da vida, e o outro é sempre um mistério pra gente em certo ponto. Tem algo sobre o outro que nunca saberemos, essa falta é permanente como a falta que também existe em nós e que não pode ser preenchida por nada nem por ninguém. Ela é parte de quem somos.

Mas como pode ser delicioso conhecer alguém, seja como for o início disso. Admirar em silêncio, pagar mico público e até brigar às vezes. Sim, há brigas muito necessárias, elas fazem parte do caminho. Sim, há inclusive ciúme saudável, moderado. Que não precisa necessariamente existir, mas pode, está ali cumprindo alguma função.

Evidente que isso deve ser observado à luz da sociedade. Há ciúme e há sentimento de posse, de propriedade, que podem e, em boa parte dos casos abusivos, estão juntos. Mas não são a mesma coisa. Há controladores extremos e manipuladores cruéis que não apresentam nenhum traço de ciúme. Ou que usam o ciúme apenas como ferramenta de poder. Os seres humanos, eles são babado, é preciso não ter tanta pressa de catalogá-los.

Há inúmeros casos de pessoas que desabafam nos consultórios reclamando que, poxa vida, um ciuminho maneiro cairia bem. Muitos casais estabelecem acordos ou dinâmicas bem-sucedidos em que o ciúme pontual é de fato útil e agradável para ambos. E julgá-los por isso ou achar que só serão boas pessoas ou felizes de verdade quando se livrarem dessa ideia não é o caminho. Temos muito mais problemas em aceitar os seres humanos em suas especificidades do que achamos.

As lutas sociais, todas elas, nos afetam e modificam. O contato com o feminismo, com o movimento negro, com as lutas LGBTs, com os levantes populares pela terra, por moradia, representa muito pra todos nós, mais ou menos diretamente. Muitas vezes é nesse cenário coletivo que milhões encontram pela primeira vez o reconhecimento de seu sofrimento e um lugar de pertencimento. E isso pode desencadear verdadeiras revoluções pessoais e criar relações que confrontam o sexismo, o racismo, o pensamento colonial. Ser recebido, ser cuidado, ser acolhido, se libertar de padrões, coisas da maior importância.

Mas, por outro lado, isso não resolve nem impede que as pessoas sejam contraditórias, que em suas vidas haja desejos e atitudes que não se encaixem com uma certa visão do que elas deveriam ser. E nada menos revolucionário do que querer encaixotar pessoas em potinhos de virtude, querer consertá-las segundo um molde, mesmo que seja um molde bem bacana. A luta é por mais liberdade de ser, de conviver e de promover bons encontros e acordos justos, em todos os âmbitos.

Hoje em dia parece que podemos fazer qualquer coisa no social, inclusive apoiar o genocídio racista e a destruição criminosa do ambiente, mas temos de responder a uma agenda absolutamente moralista na vida privada. O moralismo religioso que não respeita escolhas e que quer se impor como lei de Estado, inclusive, altamente nocivo e desumano. O moralismo colonial que transforma muitos em mera propriedade de outros. E até o moralismo moderninho, que julga com ar de superioridade as almas pretensamente ultrapassadas, enquanto se adapta com facilidade à crueldade social.

Há relações bacanas e ruins em todos os formatos. Pode haver monogâmicos muito felizes e trisais tristíssimos. Podem rolar casamentos ótimos e lamentáveis, sejam abertos ou fechados, com ou sem filhos. Pode haver barraqueiros alegres e suaves miseráveis. Pode existir muita indiferença se fingindo de paz. Pode rolar muito sorriso e muita exposição nas redes em relações detonadas. Pode haver muito casal low profile vivendo amores quentíssimos bem na deles. E de fato há. Ouvindo as pessoas e colegas com décadas de prática vou aprendendo que tem de tudo.

Uma coisa é lutar sem concessões contra o preconceito e estabelecer a igualdade de direitos e oportunidades nas nossas sociedades e espaços coletivos. O que passa evidentemente por algum nível de educação e determinação de condutas dignas entre as pessoas, tendo como princípio básico que ninguém pode ser mais matável, humilhável ou descartável por conta de sua identidade racial ou de gênero, por causa de sua conta bancária etc. Outra é querer controlar as subjetividades na marra e transformá-las em item pasteurizado para consumo, exposição, exemplo ou descarte.

Falamos muito em diversidade, talvez inclusive pra não lidarmos com a radicalidade com que ela se manifesta entre os seres humanos.

Deveríamos largar mão de tantas fórmulas e focar mais, por exemplo, na desconstrução sentimental e sexual, no sentido de tirar delas o ranço racista, colonial, patriarcal e fóbico diante de qualquer diferença e mudança. E aí o colonial pode inclusive ser puxado à sua origem, que é a de impor uma lógica ao outro. De enquadrar o outro, de não enxergá-lo, de querer dominá-lo e torná-lo funcional conforme determinado manual.

A sexualidade de performance, com a imagem cristalizada por décadas de um certo tipo de pornografia publicitária, sexista e padronizada, também é uma tristeza.

Os jovens deveriam ter acesso, sim, a uma educação sexual que os protegesse de doenças, abusos e violências, que estimulasse comportamentos mais responsáveis, inclusive afetivamente. Mas também se sentirem livres pra aprender a transar entre eles. Não como atletas sexuais ou, com o perdão do termo, metralhadoras de meter que devem provar um padrão absurdo e muitas vezes opressivo de masculinidade ou feminilidade.

Ter experiências significativas, afetuosas, mesmo que pontuais, que envolvam uma ideia mais ampla de prazer. Curtir mais. Nada contra as expressões que fazem parte dos jogos sexuais, mas às vezes é tanto senta, senta que parece que a galera tá adestrando um cachorro. Em outra frente, o exército hipócrita que quer impor o celibato à juventude, tipo a ministra tresloucada e incompetente que, além não fazer o trabalho dela, tipo criar campanhas pra evitar gravidez precoce e DSTs, recomenda apenas que ninguém transe. Ainda bem que os transantes não ouvem, ainda mais depois da seca brava promovida pela quarentena.

De qualquer forma, os imperativos “você tem que transar” ou “você não pode transar a não ser que case” são duas formas de oprimir. E isso tem consequências.

O amor, incluindo a energia sexual bem sintonizada, é a maior força de oposição à nuvem mortífera que vai contaminando as relações, antídoto e arma de defesa da vida.

É claro que aí não temos algo simples, até porque as definições teóricas e percepções do que é amor podem ser e são culturalmente diferentes, elas mesmas atravessadas pelos jogos de poder e dominação. Inclusive entre os colonizados, mesmo quando falam a partir de seu ponto de vista e de sua história anterior. Quando eu conquisto o poder de negar aquilo que o outro me impõe, ainda assim estou em uma relação com esse outro. Não mais de dominação, mas talvez de confronto. E todo confronto tem pontos de contato. E o que pode vir depois? Eita que ficou difícil, mas é assim, as perguntas vão se multiplicando.

Faz um tempo, um colega psicanalista me mandou um trecho dito pelo Lacan em um dos seus seminários. Ele relê O Banquete, de Platão, analisando as falas dos personagens sobre amor. Faz isso pensando na transferência, ou seja, no vínculo que se forma entre analista e paciente num percurso de psicanálise.

Mas destaco aqui um trecho que serve também pra falar desse louco desejo que luta com emojis, com gifs, que briga com a distância, contra o vírus e tenta superar as próprias noias e os novos e velhos obstáculos da comunicação. É claro que não se vive de smiles e visualizações, mas às vezes puxando um like, um coração desenhado, se descobre um corpo, uma história, uma vontade, uma vida inteira. Vai que. Amor também é surpresa.

Lacan vai dizer muitas coisas sobre identificações, sobre objeto do desejo, sobre fetiche e sobre um tal “agalma”, cuja raiz de significado pode se aproximar tanto de eu admiro, quanto de eu tenho ciúmes, de pupila, de brilhante. Pra vocês só sentirem o peso do negócio. Diz também frases de efeito como Afrodite nasce todos os dias e não é uma deusa que sorri. E que a inscrição eterno amor estava no Inferno de Dante. Eu, de minha parte, sou mais Oxum, Iansã e Iemanjá como deusas do amor (com direito àquela música linda do Olodum). E acho que a tal inscrição infernal precisa de uma explicação, tem de ver melhor isso aí.

Ele propõe um mito, uma imagem completa que descreve mais ou menos assim. Suponha que você deseja um fruto, uma flor. Então você estende sua mão pra pegar esse fruto, essa flor, e é como se esse movimento se relacionasse e fosse solidário ao próprio fato de a flor desabrochar, de o fruto estar maduro. Niqui, quando você está quase encostando, sai dessa flor ou desse fruto uma outra mão que se move em direção a você, como se você agora fosse a flor ou o fruto. O que ele vai relacionar com o momento em que o ser amado se transforma naquele que deseja. Pá!

Ele diz também que esse não é um movimento simétrico, tipo amo e sou amado, tipo filme de Hollywood com tudo sincronizado. Alguém se move e, em algum momento, surge uma espécie de resposta não-óbvia, não-lógica, a esse movimento. “Na medida em que a mão se estende é em direção a um objeto. A mão que surge do outro lado é o milagre”, diz Lacan. Esse era um que se amarrava em uma complicação das boas. Enfim, o babado.

No livro se trata de saber o que rola, inclusive que no amor se trata de não saber muito bem. A gente admira, reconhece os feitos, as bonitezas, sabe dizer dezenas de qualidades, mas isso também sabemos dizer de gente que não amamos. E mesmo de quem amamos como companheiro de luta, como família, como amigo.

A amizade é importante, mas o amor escancara a tampa, diz um rap que eu gosto. Escancara e a gente não sabe dizer o que tem de tão unicamente irresistível ali, algo que parece tão familiar e tão indefinível, vê beleza até em certos defeitos, fica pensando, gente, mas que pessoa maravilhosa, serasse ela sabe disso?

A gente não sabe por que ama, também não sabe o porquê de ser amado, mas numa boa hipótese aceita que ama, aceita que pode despertar o amor de alguém por motivos que desconhecemos, mesmo com todas as nossas falhas, imperfeições. Uma luta no gel com as muitas faces do narcisismo, que o amor pode vencer, mesmo que não ganhe tudo, sabe como é.

E que me perdoem desenrolar o mito, mas no meio do caos e da confusão do mundo muita gente só quer às vezes poder viver até o talo a construção do momento de segurar pele com pele essa outra mão que aparece milagrosamente. E depois é depois, cada história é única. Complicado no simples.

Em contato com tudo isso, a psicanálise cria lugares de escuta sem julgamento, ajuda a lidar com tantas questões importantes. O que acontece num tratamento é único e é construído a cada sessão, no contexto de um vínculo muito específico. Mas, embora em outro registro muito diferente, me coloco também a tarefa de exercitar minha escuta no dia-a-dia, fora do setting do consultório, físico ou virtual. E sigo errando e aprendendo, perguntando sempre.

Carta imensa, eu sei. Sou muito grata por esse espaço de reflexão. Muito obrigada a todos que leem, acompanham e mandam suas impressões, considerações e perguntas. Fé na virada de chave, nas boas surpresas e na abertura de caminhos bonitos pra gente passar.

Amor vale amar.

Um beijo,

V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

Ilustração: Marcela Scheid

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