Quem é essa atriz?

Sobre Kim, Kanye, Julia e os detalhes tão pequenos de nós tantos.


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Ilustração: Mariana Baptista



O casal Kim e Kanye West se separou, mas não se desfez. Seus novos relacionamentos ainda são sobre eles. As notícias, os boatos, as dificuldades, todas as fofocas levam a eles. É difícil se separar. Sempre. Em diferentes termos, sim, mas ainda assim. E assim como os dois estão em pleno luto do relacionamento, o público que acompanha essa trama, esse romance vivido em grande parte diante das câmeras, o público vai aprendendo a desinvestir o casal a partir de sua nova “mutação”, o que inclui de muitas maneiras seus novos pares.

Kim está saindo com um comediante. Mas os holofotes estão dando preferência a Julia Fox, nova namorada de Ye. Atriz, escritora, garota da Playboy, mãe, fotógrafa, Julia tem um passado, fez coisas. Coisas que parecem ter desaparecido, achatadas diante de seu novo caso amoroso, diante de seu namorado.

Sim, sim, a mídia, os fofoqueiros, os machistas, sabemos. Mas tem algo que intriga além disso. Algumas coisas. Uma certa semelhança com a ex, modas e modos. Uma certa aceitação, diria mesmo aqui uma adesão imediata e voluntária ao modo Ye de se relacionar. Disso há algo muito visível. Julia agora se veste com os looks criados pelo namorado em sua grife, mas não só. Ela se veste de acordo com ele.

Pares de vaso, emulando o fatídico conjunto duplo jeans dos então namorados Britney Spears e Justin Timberlake. Kanye aparece em imagens arrumando a roupa de Julia. Nova make, cabelos arranjados de um jeito que já vimos por aí. Julia como modelo de Kanye, para além do marketing.

Julia modelo de Kanye, afinal, o que isso pode querer dizer? A pergunta não é nova. Em algum ponto do relacionamento de Kim e Kanye o mesmo assunto havia surgido. Ele estaria interferindo nas roupas da mulher, exigindo coisas, proibindo outras, ao que ela cedeu até cansar. Então, se pensarmos nessa série, talvez tenhamos não que Kanye esteja tentando apenas vestir Julia como Kim, mas que, já antes dela, tentava vestir Kim como um ideal. Que não é Kim, não é Julia, mas que muito provavelmente está ligado ao olhar do próprio Kanye, embora não coincida com ele. Um padrão, uma repetição, algo da ordem de uma destruição, talvez.

Me lembrei aqui de Vertigo, Um Corpo que Cai, o filme de Hitchcock. Nele o protagonista se apaixona por uma mulher misteriosa que, ele acredita, acaba morrendo. Uma mulher perturbada em sua própria identidade, instável, linda, frágil, suicida. Pois bem, em certo ponto, ele cruza uma garota muito parecida com aquela. E faz de tudo para transformá-la na morta: mesmas roupas, mesmo cabelo, tudo igualzinho. Quanto mais ele investe no cosplay, mais parece que algo falta.

Por fim, ele acaba descobrindo que as duas são a mesma pessoa, que ele foi enganado desde o começo, envolvido em uma trama de crime, grana, mentiras etc. E fica furioso, despenca, perde a linha. Ele tinha afinal se apaixonado por quem? Onde nessa confusão ficava sua paixão? Qual das duas “encarnações” era a verdadeira, a definitiva? Em certo sentido, nenhuma.

Ele fica doido não pela enganação, mas pelo choque do que desaba. Aquela mulher que ele tentava tão diligentemente remontar e seu novo “suporte” eram a mesma pessoa. Mas, ao mesmo tempo, “aquela mulher” não existia em lugar nenhum, em nenhum tempo, a não ser como algo que ele havia criado. Algo que estava, no filme fica evidente, conectado a uma certa imagem, a certos efeitos dessa imagem, a um certo ideal, certos fantasmas. Mas não só.

Para uma mulher como a de Hitchcock ou como tantas de nós que demos um jeito de criar esse plural, pode ser que exista um certo prazer em se deixar enredar, em vestir a roupa, entrar na personagem. Mas até onde, aonde isso pode levar? Qual é o ponto do insustentável?

Ser mulher às vezes é ser examinada a microscópio e telescópio e seguir invisível. Se não somos, e não somos, nada que coincida exatamente com isso que o mundo dos homens enxerga e constrói como sendo “a mulher”, podemos dizer que assim não existimos. Mas não é por não existirmos assim que não estamos bem aqui onde nos criamos. Para além do olhar masculino, um mistério quando todo o mistério cai. Isso pode ir longe, teorizar isso de mulher, o que ainda nos oprime mas pode ter outros rumos.

Nós, os seres humanos, uns mais que outros (o que levanta questões), temos muito problemas com o estranho, a falta, o outro que, por mais que tentemos preencher com os bibelôs e elefantes da nossa passagem sobre a Terra, permanece irritante, amedrontante e irremediavelmente inconsistente, feito também de vazio. O que nos causa um problema ainda maior. O que essa falta no outro denuncia é também um vazio em nós. Um vazio, digamos, formador, que nada pode preencher. Ninguém. Não porque não tentamos, muito pelo contrário.

Isso não faz de nós condenados à solidão, mas antes sempre destinados a reinventar encontro. O encontro não como aquele em que duas metades se completam e muito menos como aquele em que dois inteiros plenos de completude dividem sua maravilhosidade ou horror. Encontro de faltas, que se trombam nas encruzilhadas sob a lei da gravidade.

Daí sai uma estrada longa. Pode sair, vem aí. Teorizada, praticada, romanceada, memetizada. Como diria o sábio Pedro Scooby conversando de longe com Jacques Lacan, “amar é dar o que não se tem”. Ao que Lacan, para o desespero da plateia diante da xepa do ser e não-ser, completaria: “a quem não quer”.

Dar o que não se tem a quem não quer. Podemos dormir com isso.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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