A CPI do lance e do romance

Se você tem a sensação de que sempre é a mais esforçada em um relacionamento heterossexual, saiba que há motivos históricos para isso. Mas existe também um culpado?


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Não sou senadora ou deputada participante de CPI, mas investigação e apuração de fatos também faz parte do meu trabalho. Como agora em junho tivemos o amado/odiado dia dos namorados, aquela data especialmente planejada pelo João Dória (o pai, não o filho) para entrar no calendário, no bolso e no coração do brasileiro, os vários causos de amor que recebi na caixinha de perguntas do Instagram me atravessaram como uma flecha. Mas não no sentido angelical e poético, e sim como uma arma que, quando acerta, causa incômodo.

Das muitas perguntas, uma se repetiu de novo e de novo, sempre no mesmo recorte, que era o seguinte: por que a mulher é sempre a que mais se entrega em uma relação? As mulheres que escreveram contam que sempre ficam com a sensação de ser a pessoa mais apaixonada do casal, a que zela mais por esse sentimento, que deveria ser conjunto, a que demonstra mais afeto e interesse, e por aí vai. Já se viu nessa situação ou viu ela se repetindo ao seu redor? Sim, né? Então, vamos tentar entender o que aconteceu na história para que esse desequilíbrio tenha se tornado tão comum. E, por uma coincidência engraçada do destino, enquanto escrevo essa coluna, o modo aleatório do celular colocou a canceriana perfeita Solange Knowles cantando músicas que casam com o tema. Então, que a gente abra um vinho, cante alto sobre os corações partidos e abrace o melodrama, seja pra rir ou pra chorar, já que vamos adentrar nas construções dos relacionamentos heterossexuais e descobrir se existe algum culpado nessa questão.

Antes de existir o lance

Nem sempre de paixão nossas junções foram feitas. No início dos arranjos matrimoniais, era comum que o principal foco fosse a junção socioeconômica das famílias. O contrato era estabelecido entre as partes interessadas e assinado pelas pessoas escolhidas para desempenharem esse papel de casal. A meta era dar continuidade aos nomes, trabalhos e laços financeiros. Mas isso significava que as pessoas não se apaixonavam na época? Não, e nisso muitos amores clandestinos e fugas dignas de filmes épicos aconteciam (além de fugas necessárias entre meninas-crianças forçadas ao casamento). E sempre lembrando que a heteronormatividade foi imposta como regra, apesar de todos os outros arranjos já existirem e serem absolutamente normais desde sempre.

E depois, permitiram o romance?

Para os cristãos, foi em 1140, com o Decreto Graciano, que o consentimento passou a fazer parte desses acordos, ou seja, acabou essa coisa pavorosa de se casar por obrigação da família. Isso ainda não chega nem perto de como nos relacionamos hoje, até por que os recortes vão muito além de uma religião ou da ocidentalidade, mas pode ter sido um pequeno passo importante para que a vontade tivesse algum espaço.

O amor romântico e suas ciladas

A cilada do Bino (perdão, gente, é uma millennial que está escrevendo este texto) e de muitos de nós foi ter caído nesse conto do amor romântico, que nenhuma proximidade tem com o romance real e genuíno. E agora, não sendo só uma questão da Igreja, mas também do Estado, para o bem da união, nos ensinaram que o outro era absolutamente tudo na nossa vida, nosso chão, nossa prioridade, nosso único foco, nossa metade até que a morte nos separe. Aprendemos que deveríamos nos relacionar só se fosse pra casar, e casar só se fosse pra sempre. Mas como bem disse a psicanalista Maria Homem: “O amor romântico foi uma ficção necessária e historicamente construída”. E ele surgiu não tem muito tempo: foi ali, no final do século 19 e início do século 20, que a ideia começou a se espalhar. Claro, foi algo que entrou na mente de pessoas de todos os gêneros e de todas as sexualidades, mas precisamos focar no quanto esse peso da responsabilidade afetiva e do mantimento da relação foi dado à mulher. Essa é a chave mais importante que nos conecta ao questionamento inicial trazido aqui. Por ter sido uma necessidade construída pela burguesia individualista, não poderia ser diferente, e agora percebemos melhor como isso nos afeta até hoje.

Os recortes de gênero

Socialmente, foi aceito que os homens tivessem mais desejo, que fossem seres mais sexuais e que até construíssem famílias fora do casamento sem nenhuma penalização (diferentemente das mulheres, que ainda sofrem penas severas, judiciais e sociais). Eles receberam esse bônus por uma falácia que se apoiava numa ideia biológica nada concreta. A mulher foi, então, direcionada a se doar para esse amor, mesmo que não correspondido, mesmo que doloroso, porque assim se afirmou na literatura, no audiovisual e na sociedade por inteiro (e, nesse caso, se a vida imitou a arte ou a arte imitou a vida pouco importa). Ficamos com esse fardo de doar até o que não tínhamos e de nos dedicarmos inteiramente ao homem e à família com o nosso tempo, nosso “amor incondicional”, e disposição integral, o que a filósofa Silvia Federici coloca perfeitamente como trabalho não pago. Lembrando: muitas de nós crescemos vendo princesas encantadas que cuidavam do lar e eram seres dóceis, se apaixonando por príncipes que não precisavam fazer praticamente nada e, ainda sim, conquistavam o papel de alma gêmea.

Para bem além da monogamia ou do casamento

Mas agora falamos de um outro tempo, além da necessidade exclusiva do casamento ou de formar uma família. Falamos de querer curtir um lance ou um romance numa boa, seja com uma ou mais pessoas e, ainda sim, todo esse histórico nos persegue. O amor romântico já segue sendo desconstruído e parece que estamos vendo uma ponta de liberdade, mas mesmo na casualidade nos pegamos mais acolhedoras, mais dispostas e mais parceiras que o outro lado. Sendo muito e recebendo pouco, mas e aí? A culpa é nossa?

A tal da responsabilidade afetiva

A mudança da mentalidade é lenta e passamos por várias gerações até conseguir estabelecer aquilo que é aceito como normal. Muitas vezes, mesmo sabendo do fundo de nossos corações o que vai ser melhor para nós, nosso subconsciente trabalha em cima do padrão que vimos se repetindo socialmente e nas nossas famílias. Por isso é possível que ainda estejamos repetindo essa construção de gênero, seja com a conexão rasa no campo afetivo do homem, seja com a superidealização do amor romântico que recaiu sobre a mulher. Então, é necessário atenção, pra que a gente perceba de onde vem o incômodo, seja pela sensação de falta ou excesso dos sentimentos.

A responsabilidade afetiva é quando conseguimos olhar e escutar o outro inteiramente, nos responsabilizar por nossas ações e escolhas, mantendo o diálogo aberto e não criando falsas expectativas, muito menos fazendo “joguinhos”. Aqui, precisamos nos enxergar, entender o que queremos e saber trazer isso com franqueza e carinho.

Então, quem é o culpado do meu lance não ter virado o romance ideal?

Certamente não é você, deusa que sente que ama mais do que o outro. E surpreendentemente nem você, homem que ainda não aprendeu o que é responsabilidade afetiva e foi ensinado que é normal iludir ou não demonstrar todo o carinho que sente. O buraco é tão mais embaixo, que vou deixar esse B.O. nas mãos da sociedade patriarcal que ainda insiste em reforçar comportamentos afetivos egoístas e emocionalmente prejudiciais aos envolvidos. Mas, a partir do momento que temos informações suficientes pra mudar uma situação ruim, é nosso dever arregaçar as mangas e começar a agir, porque a sociedade não muda sozinha! Se você chegou até aqui, saiba que mais importante do que apontar um culpado é saber que ainda conseguimos mudar a situação. E essa mudança vem de dentro, entendendo nossos desejos e potências, pra depois conseguirmos colocar pra fora da maneira mais saudável possível. Agora é o momento de abandonar os vícios do amor romântico, aprender a dialogar, construir afetos sem projeções e idealizações que não condizem com a realidade, e viver trocas verdadeiras e prazerosas. Todos prontos pra vivermos essa nova era de relações mais equilibradas? Eu já estou com a roupa de ir!

(Dica de autoras necessárias:
Regina Navarro Lins
Silvia Federici
Maria Homem
Bell Hooks)

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Ela é também sócia da primeira sex shop brasileira 100% focada no prazer feminino. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, vai responder mensalmente as dúvidas do público da ELLE pelo Instagram e também aqui no site.

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