Síndrome de Carrie

Sobre a cidade de certas mulheres e normalidade pós-pandêmica.


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É interessante como a moda fez de Sex and the City algo muito relevante em termos de popularidade. As roupas, os sapatos, mas também os clubes, os restaurantes, os trabalhos e, em última instância, até os namorados e maridos, pareciam compor um catálogo completo de lifestyle prêt-à-porter. Como se vestir, onde ir, o que fazer, com quem transar, pacote fechado.

Arrisco dizer que o público não teria suportado um terço dos dramas enfadonhos, com raras exceções, se estes fossem adaptados a um grupo formado por quatro trabalhadoras duras com looks banais e empregos comuns. O dinheiro, e o que ele pode comprar em termos de vida dentro de uma certa moda conectada a uma identidade “de sucesso”, é a força que dá uma aura especial a essa espiral de labels, papos furados e refeições superfaturadas.

Depois de um longo hiato a série voltou, sem Samantha. Com a sexy Spice de fora, ficaram a protagonista Carrie, a boazinha chata e careta Charlotte e a independente e intelectualizada Miranda. O primeiro episódio é difícil de assistir sem bocejar e dormir. Ele não é bom nem péssimo. É um grande nada, tipo as conversas que se escuta de dondocas em endereços de luxo – os modernos, os “elite antiga”, os família tradicional brasileira, às vezes tanto faz.

Carrie agora faz podcast e street style de Instagram, Miranda está no mestrado, Charlotte cuida da vida das filhas e do marido. As grifes, os papos, os almoços onde ainda se discute calorias de batata frita, um tédio monumental só superado pelos instagrams das top influenciadoras da “vida real”.

Vale dizer que a série se passa no agora pós-pandêmico e que, exatamente como na realidade, a vida da realeza burguesa mudou muito pouco. Nem as máscaras aparecem como sinal do que passou. Da pandemia ficaram vagas memórias, piadas e rituais cultivados durante o isolamento.

Até que veio o segundo episódio. Como já foi amplamente divulgado, Mr. Big, o marido de Carrie, o homem sobre o qual ouvimos durante toda uma década, morre. Depois de seu velório num espaço chic e minimalista ficamos sabendo de uma outra morte, esta pandêmica, do companheiro de uma das convidadas. Ela comenta que ele também teria gostado de uma despedida, mas os enterros pandêmicos não permitiam isso. É o máximo de análise social que temos até o momento.

A morte de Big ao menos foi tratada em termos coerentes com a trama. Estava morrendo de medo de uma virada daquelas, coisas horríveis tipo o neocolonialista bilionário Mark Zuckerberg casando no quintal pra performar humildade, aquele intragável efeito “gente como a gente”. Pelo menos o roteiro nos poupa da mentira de que a morte traz um salto ético ou algum tipo de percepção aguda do mundo para todos. O velório parece uma exposição de arte, Carrie usa um look muito chic, tudo ao gosto da casa, homenageando o morto, um milionário do sistema financeiro quase tão obcecado por ternos finos quanto ela por sapatos.

Ela sofre à sua maneira e vai construindo seu luto como pode. De modo que nesse ponto qualquer crítica é moralista. O luto de uma pessoa amada é uma experiência que se constrói sem mapas, apesar de todos os manuais sobre fases, tempos, dificuldades, conselhos e passos.

Mas é interessante notar como as demais mortes, a dos mortos pandêmicos e a do mundo que ficou para trás, não afetam as personagens. Big morre de infarto, uma morte desconectada da tragédia mundial, uma tragédia que a série ignora em sua complexidade, tratando-a como uma moda ruim que ficou pra trás.

Pensando de novo, porém, mesmo diante das novas variantes, tudo não parece bem realista? Quer dizer, a rotina de luxo geral, a circulação, os privilégios, o “normal” da classe privilegiada não segue mesmo praticamente intocado? As sex and the citiers do mundo estão de volta ao almocinho nas redes ou acaso se transformaram em militantes ou pessoas envolvidas na prática com as questões de seu tempo? Uma consulta ao Instagram não deixará dúvidas…

Charlotte segue sendo Charlotte, envelhecer não é um tipo de magia que dá a todos um saber e sensibilidade renovados. Para mudar é preciso se envolver, querer, se solidarizar. Já Miranda virou uma pessoa desesperada por se mostrar engajada, fazendo drop de pronomes e citações, também muito conectada com a realidade de certo marketing identitário que se vê em muitos setores, inclusive na academia.

Enquanto Carrie retorna para seu antigo apê no terceiro episódio, enquanto lida com o luto e com a desconfiança de que Big se encontrava escondido com sua ex-mulher, Charlotte e Miranda resolvem suas questões num stand up comedy em que y chefe de Carrie no podcast se define como queer, não-binárie e bissexual. Charlotte, cuja filha diz que não se sente menina, se sente contemplada com a fala sobre aceitação e amor familiar. Miranda questiona seu casamento sem sexo e se sente atraída pela fala sobre tensionar certezas e mudar, pinta um clima com y comediante etc.

E assim caminham as melhores representantes da elite. Sensíveis ao que bate à sua porta, que se fecha quando for conveniente deixando de lado os problemas do mundo lá fora.

Se há uma observação válida sobre Sex and the City é de que a série é realista demais sobre os pensamentos e ações de uma classe endinheirada, extremamente privilegiada e quando muito envolvida apoliticamente com certas questões das relações humanas em sociedade.

Mas todo o buzz não se deve exatamente a isso? Personagens representando gente que sai intacta de uma pandemia com cinco milhões de mortos e segue a vida considerando tão somente seus dramas individuais? A uma certa idolatria de gente socialmente blindada? O problema não são os tão criticados bolsas e saltos de grife mas o que eles ao mesmo tempo encobrem e revelam sobre essa aceitação do abismo da desigualdade que chamamos sintomaticamente de “lifestyle”.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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