Sobre a vida em duas rodas

Com o vento na cara, Erika Palomino vence a inércia e descobre (tardiamente mas ainda em tempo) as vantagens da bike no deslocamento urbano.


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Equilíbrio nunca foi meu forte. Interprete a frase como quiser. Máximas à parte, fato é que sou mesmo meio destrambelhada. Melhor dizendo: talvez eu não seja ágil. Atlética, muito menos. Esportiva, pouco. Preguiçosa, até, diria.

Vamos ao bom português: passei a pandemia toda parada. Invejei, idolatrei pessoas que caminharam no playground do prédio, levantaram garrafas pet cheias de água, que fizeram yoga no YouTube. Eu mal e mal levava o Muzi para passear. A esteira, enfurnada em um quarto, acumulou poeira e virou cabide, destino triste de muitas, não fosse a Ciça colocá-la para ranger com alegria de quando em quando.

Na garagem, a bicicleta ficou meses dependurada de cabeça para baixo. Ó, falta de paciência para entrar no bicicletário para tirá-la de lá e simplesmente encher o pneu – no posto da esquina. E se eu pegasse coronavírus pedalando sozinha pelo bairro? Balela, desculpinha esfarrapada.

Ou seja: uma belíssima de uma sedentária. E o relógio do tempo marcando, passando, dias, anos… O corpo guarda a memória de anos de ballet e dança mas… Só. Reservas que estão/vão se esgotando, se não as renovamos.

Há coisa de seis/sete meses me mudei para o Rio de Janeiro. Aqui, atividade física é um dos aspectos que definem a cidade, que é uma grande academia ao ar livre. Ver como a população carioca ama muito tudo isso é inspirador. Não vou negar: a vontade de vir para cá passou sim por uma tentativa de sair da inércia, de ter um estilo de vida mais próximo da natureza e mais ativo.

Questão de pôr em prática, né?

Logo nos primeiros findes, fui com Pedro pedalar. Atravessamos a orla, mas era uma ventania danada, e cheguei quase desfalecida ao destino. Em outra feita, o rolé foi o Parque do Flamengo. Aquela imensidão, a quantidade de seres humanos aproveitando a extraordinária stravaganza urbanística de Affonso Eduardo Reidy, Lotta de Macedo Soares e Burle Marx enche os olhos, engrandece o espírito e atiça os sentidos.

Alugamos aquelas bikes do banco (a poverina continuava pendurada de cabeça pra baixo, empoeirada), e desta vez consegui pegar uma elétrica. Que tem pedal assistido: você pedala e ela dá aquele empurrãozinho, aquele impulso que faz toda a diferença.

Continuei a jornada e decidi ir ao trabalho de bike: sorte grande, uma ciclovia quase sempre plana atende o caminho, desde a minha casa. O vento atacou novamente, e tive que parar para uma estratégica água de coco antes de quase desmaiar. Levei mais de uma hora para chegar e, já diante do computador, levei outra uma hora para baixar a temperatura do corpo e conseguir raciocinar de novo. Definitivamente, ainda não tenho esse preparo. Alguns dias depois, outra tentativa, agora com a elétrica, e o percurso encurtou para 30 minutos, o mesmo tempo que eu levaria dentro do metrô, mais os deslocamentos de e para as estações. Descobri então a saída para fugir dos preços absurdos que viraram o uber e o táxi, para minha falta de musculatura, para minha preguiça endêmica, para as crowds do transporte público.

Decidi fazer esse investimento num novo estilo de vida, tirando carros de circulação e me colocando para, de alguma maneira, me movimentar. Comecei a entender o conceito real de mobilidade urbana, que as cidades precisam proporcionar alternativas para que as pessoas se desloquem para trabalhar, para se divertir, para viver.

Ao me colocar sobre duas rodas, enfrento meu desequilíbrio, minhas inseguranças, meus medos e a agorafobia. Escolho os caminhos, descubro coisas novas, prédios, árvores, cheiros, cachorros, buracos, gente de todo tipo e todas as idades que passam por mim em suas bikes também, que incrível, e como pedalam rápido. Cruzo com corpos e corpas em sua diversidade se movendo também, em busca da mesma coisa que eu. Também estou mais empática: olho pedestres, as gentes, a cidade com outros olhos.

Fora que são 30 minutos, 60, ida e volta, que não fico no celular gerando ansiedade e dando scroll na vida dos outros. Que vou ali, no presente, sozinha, cantarolando e refletindo de modo diferente sobre os problemas e sobre o que tenho que fazer. Pensando em tudo, em nada; meditação, contemplação, exercício. Vou pedalando, e uso o conforto da eletricidade quando convém.

Fico/ estou mais esperta, mais atenta, menos atrapalhada a cada trajeto. Ganho autonomia, independência, me sinto mais forte. Chego no trabalho disposta, alerta. Mudei também meus horários, para conseguir sair mais cedo e trafegar para casa ainda à luz do dia. Com isso, passei a dormir ainda mais cedo. E a ler obsessivamente a previsão do tempo!

Como dá pra notar, também ando monotemática, e posso falar disso por horas, percebendo que descobri tardiamente, mas ainda em tempo, os benefícios dessas escolhas.

Dedico com carinho esta coluna à memória de Erika Saluum, jornalista com quem tive a alegria de trabalhar fechando jornal, apaixonada ciclista à frente do blog Ciclocosmo, e que viu tudo isso muito antes. Ela era uma ativista humanitária, que atuou na ONU e pela democratização das cidades, pessoa maravilhosa, sorriso largo e franco, mente rápida, que perdemos em setembro último depois de anos na batalha contra o câncer. Seu companheiro, o fotógrafo Caio Guatelli, segue cuidando das postagens e do projeto de batizar com o nome de Erika a ciclovia do Novo Rio Pinheiros, em São Paulo. Tem todo o meu apoio.

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