Uma carta à meia-noite

Sobre verdades que brilham no escuro.


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Meu Deus, uma fala. Não uma frase, uma graça, um plano, uma desfeita. Uma dessas coisas que saem pela ponta da língua e ainda tentamos no último segundo engolir de volta em nome dos bons modos e da conveniência. Parece que nesse ano redobramos o cuidado pra não levantar poeira em área de tempestade. Mas se o vento e a chuva vêm é porque assim é. Cada um que faça disso o melhor que puder.

Já é quase dezembro e me sinto forte, já posso admitir que estou exausta. Já posso viver meu cansaço sem a obrigação de relaxar. Falta pouco, penso. O Ano Novo, talvez, tanto faz. Chegamos até aqui com sorte, cuidado, privilégio. Tomo fôlego de madrugadas insones, sonhos às três da tarde. Não sinto vontade de reclamar, só de mudar uma série de coisas. Escuto as vozes dos meus amigos e de gente que nunca vi. Às vezes me sinto em casa.

Fiquei de escrever sobre mulheres, sobre estupradores protegidos pela lei, sobre o horror cotidiano. As mulheres, quem são elas? As mulheres sou eu também, embora não queira isso como fardo. A verdade, acredito, é que não damos pra essa coisa de grupão. Úteros ou não, somos muito dessemelhantes já de saída. Nossa imensa capacidade para o múltiplo, o mutante, é que nos une. De modo que mulher, da maneira como isso está configurado, talvez seja uma tentativa de nos parar, presas numa era glacial. É assim que gosto de pensar.

Uma mulher, essa mulher que eu sou é o máximo que consigo. Não me sinto ligada a um único grande feminino ancestral. A não ser que isso diga vá e veja lá o que dá pra fazer. Com vozes muito diferentes, que convergem, divergem, se calam ou berram. São milhões de passados, uma multidão de tempos. Pra mim as bruxas são políticas porque ousaram gargalhar em casa, varrer o bosque escuro como chacota e, acima de tudo, meter a boca nas palavras. Como elas brincaram com essa coisa de simpatia.

Gosto mais da palavra feitiço porque diz muito de quem acusa: feiticeira! Feitiço vem de artifício em algum ponto, de modo que o poder das mulheres sobre seus destinos e palavras seria algo de artificial, enquanto o exercido pelos homens foi e em boa parte continua sendo visto como natural, embora não sobreviva sem uma série de anexos, inclusive religiosos. A Natureza só é invocada para o nosso lado como mãe ou como suaves jardins e pomares controlados. Se é pra sermos Natureza, então, reivindicaremos também os vulcões, os furacões e os terremotos. É mais ou menos nesse ponto que passamos a ser chamadas de feministas.

Não sou amiga de muitos, mas sou amiga até o fim. “Tão galera” não combina comigo. A sororidade pra mim é construção e não dado. Entre as assim ditas mulheres há muitas contra tudo o que acredito.

Dos papéis sociais da mulher, gosto de parte deles, só que à minha maneira. Odeio tantos outros. E se é assim com milhões mundo afora é porque há algo de errado, penso eu. Errado não só nas notícias trágicas, nas mortes, estupros, espancamentos, mas no barulho automatizado de cozinhas, camas e risadas das quais mal se sustentam os dentes.

Gosto de ser mãe porque é assim que tive uma filha. Pois se esse amor só pode se construir através da experiência da maternidade, seja qual for essa experiência. Quando uma mulher diz que odeia ser mãe, mas ama seu filho, essas palavras são emprestadas. Talvez ela odeie mesmo é ter que lavar as roupas e as louças e as roupinhas sujas da casa inteira. Talvez não goste de amamentar, talvez sinta culpa pela mamadeira. Talvez deteste os homens sempre ausentes, os ajudantes que esperam palmas. Disseram a ela que ser mãe obriga a isso tudo. Grande mentira.

Uma mãe precisa querer ser isso. E estar presente com seu amor e atenção, especialmente nos primeiros anos de vida de uma criança. Não à toa são essas as decisões que mais tentam tirar de nossas mãos. Reproduzam-se e voltem ao trabalho, é mais ou menos isso. Em troca nos dão tanques e pias cheios, babás, chás de revelação, competição do melhor parto, disputa por uma vaga na creche ou no berçário dos príncipes.

Penso nas milhares, milhões, que não queriam mesmo ser mães e acabaram sendo. Não é raro, absolutamente. Mas era mais proibido de ser dito. Os fascistas no poder detestam a ideia de que uma mulher possa tomar decisões fora dos livros de regras. Nos querem, isso que eles nomeiam a mulher, a mulherada, como frangos de cativeiro. Oferecem ração orgânica e grandes pastos às suas preferidas. Quando rejeitados se irritam. Como são horrorosos.

A violência é tão generalizada que um caso terrível vai se sobrepondo a outro. Uma trilha de ossos, corpos e feridas pelo caminho, a cada passo um cléque.

Mulheres que poderiam ter chegado muito perto de serem elas mesmas, que poderiam ter seguido esse caminho. Não é fácil pra ninguém. Homens também não podem ser muita coisa. Mas crescem com privilégios de vida e morte, crime e castigo. Muitos têm feito o possível pra se livrar disso. Outros seguem atraídos pela chance de destruir conjugada com a possibilidade de não pagar por isso, de abusar, agredir, de matar à vontade e ser bem-sucedido, infelizes para sempre.

O medo gerou a ideia da mulher que será poupada, a protegida. Se for certinha, boazinha, tranquila, feminina o suficiente. Muitas ainda sonham com príncipes e entram em bocas de tubarão enxergando jardins. Muitas são atraídas pelo dinheiro, pelo sucesso, areia movediça. Outras são abatidas na primeira infância.

Quantas só queriam uma temporada divertida. Uma mulher que se diverte de verdade ainda é mal vista, especialmente se o faz acompanhada de um homem, mas sem depender dele. Ela deveria se divertir, mas não tanto, se divertir menos e, no fundo, em função do acompanhante. Há um senso de controle nem sempre explícito. As exigências de santidade mudam de forma, mas seguem fortes, violentas.

No peso do ar contaminado, nas mensagens cheias de medo, sentimos falta uns dos outros. Queremos companhia, respeito, sexo. Tentamos nos conectar. Buscamos mais abraços, mais encontros, melhores palavras. O léxico do poder está carregado de ódio e opressão. Sonho com primeiros beijos, é uma espécie de magia que preservo da adolescência. A magia é o que movimenta o feitiço, o feitiço é o que bota a magia nesse mundo. As pessoas têm medo de velas, eu tenho medo de gente que se acha líder “natural” de qualquer coisa.

O caminho de tentar se manter desencaixado desse estado de coisas, dessa estrutura, não é dos mais fáceis. Muito difícil. Há perigo na esquina e a tentação de se acomodar é grande. O exercício da liberdade é cansativo, até porque ela é sempre relativa e nunca dada, mas sem isso abrir os olhos fica cada vez menos interessante.

Já nos fazem nascer mais livres que outros. Brancos mais que pretos, mulheres menos que homens. É nessa rede que nos prendem e, se não somos ajudados desde cedo, é aí que passamos a vida. Aprendemos a lutar, mas os que mais podem muitas vezes escolhem cruzar os braços. Quando vamos nos soltando das teias é tombo na certa. O que nos sustenta são os companheiros de queda, os que estão nas ruas, nas calçadas.

Os fios das redes me levam pra dentro de labirintos de grandes escritos e fotos vazias. Muitas piadas grotescas, vídeos com linguagem extremamente cruel, pornografia da violência. É um ambiente dos mais hostis, embora exista um tom de normalidade em tudo. Esse tom é que torna tudo ainda pior.

Se o assunto é estupro fala-se de festas, bebidas, roupas, fotos. É sabido que há todo tipo de caso, mas a maioria dos estupros e feminicídios está desconectada de ambientes de festa, de uso de drogas ou de bebidas. Mas tudo segue como um desmentido, como um não-saber renovado. O sangue escorre dos capachos de bem-vindo, dos adesivos de carro família feliz e das plaquinhas de lar doce lar.

Como seria de outro jeito, temos o dever de nos perguntar. Se as crianças fossem ensinadas de outro jeito porque os adultos enfim aprenderam algo de diferente. Se houvesse mais espaço pra conversa na cidade. Outro sistema, outra vida feita pra viver. Você não sente isso? Às vezes posso jurar que a luz na sala durante a madrugada vem daí. A isso chamo amor.

Peço desculpas pela confusão dessa carta, pelas impressões misturadas. Assumo toda a contradição. Estou à meia-noite, um olho aberto pra fora, outro pra dentro, não exija que tudo faça sentido logo de cara. Um olho vê mais brilho que o outro, às vezes alterna. Nem tudo poderá ser direto com começo, meio e fim. O tempo mudou de ponto ao que parece. Às vezes me sinto desnorteada e na falta de bússola me oriento pela presença da indefinição, com ela me ajeito e sigo.

Entre as poucas certezas, a de sustentar o desejo. Beleza, calor, amor, solidariedade, presença. 50 tons de luz, bom dia. Esse é o meu caminho hoje.

Um beijo,

V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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