Uma carta eclipsada

Sobre Halston e o mundo que criamos no escuro.


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Às vezes é difícil saber pra onde estamos indo. Sonhamos, com sorte, onde muitos já desistiram, mas nos perdemos em ideias. Parece que não encontramos espaço pra elas na realidade, ficamos presos em nós.

Esses dias assistindo a série, meio novelão, sobre a vida do estilista Halston, pensei nisso. E me senti um pouco inspirada por algumas coisas que ele faz e diz, em como lida com a falta de realidade que lhe sirva, como caminha no escuro com um tipo de confiança absurda e criativa.

É claro, estamos falando de um homem com acesso ao dinheiro e influência de pessoas ricas. Mas isso, de novo, é a realidade dada. Talvez dê pra olhar diferente. Afinal, apesar de se tratar da vida de alguém que existiu, a ficção serve pra isso, pra enxergar no documental uma verdade mais verdadeira do que um simples encadear de fatos e checagens poderia revelar.

Halston acaba conseguindo investimentos de socialites e eventualmente vende seu nome e marca para uma corporação, mas o que me interessou acontece antes disso, antes que ele consiga, antes que tenha sucesso.

Sua atitude de confiança não tem ainda base na realidade. No momento ele é um chapeleiro semifalido que precisa se reinventar porque o chapéu saiu de moda. Está sem dinheiro para investir em sua nova linha de roupas e colecionando fracassos.

Nada diz que ele vá conseguir além de uma realidade interna, do que ele visualiza como plano detalhado ao qual a realidade, mais cedo ou mais tarde, vai responder se abrindo em receptividade.

Não é um pensamento mágico que só espera, mas passos dados em nome de uma aposta. Que enfim, entre trancos e barrancos, acaba por se realizar. Com a ajuda, principalmente, de amigos e convidados que conseguem se relacionar com esse mundo interno de Halston, que ele é capaz de dizer com muito brilho na atuação de Ewan McGregor.

É claro que esse é um exemplo limitado, com condições próprias. Mas tem aí alguma coisa sobre quando certas luzes se apagam e caminhamos no escuro por algum tempo.

Muitas vezes essa caminhada é necessária. Esperar que a realidade se adapte aos nossos planos raramente é uma opção interessante. Podemos esperar melhores conjunturas, pensar estrategicamente, mas muitas vezes fazer a hora é a única opção.

Penso de novo em Halston rasgando um tecido, cortando as tiras sem molde para encaixá-lo no corpo de Liza Minelli. Não seria assim com a realidade? Às vezes não precisamos furar, rasgar e modelar o que parece um tecido contínuo que segue seu próprio desenho pra que ele faça sentido pra nós, nossos olhos, nosso corpo, nossas ideias? Para que isso se transforme.

Beleza, sonhos, mudanças, apostas. Tudo isso que começa em nós mas que não fazemos sozinhos. Às vezes nos ajuda a luz, às vezes nos empurra a escuridão. Os encontros, o acaso.

Tanto medo, tanto susto, tanta certeza petrificada, que acabamos nos esquecendo da beleza do espanto diante do novo que pode acontecer, vamos nos contentando com o que só pode acontecer de novo e de novo, trama repetida.

Nascer, criar e rasgar, afinal, são verbos que conversam.

Um beijo,

V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

Ilustração @viamagalhães

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