Estamos viciados em instruções?

Sobre o coach além do coach e outros modos de usar.


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O mundo em que vivemos é cheio de bulas. Como ser isso, ser aquilo, conquistar aquele lance lá que, segundo a prescrição, precisa ser resolvido, alcançado. Você acorda, consulta o tempo, o horóscopo, as notícias, os trending topics, os sugeridos das redes, a nova discussão da qual você precisa participar segundo um roteiro feito meio que quase só pra você, pra te dar um certo resultado.

É fácil culpar os coaches, talvez porque eles sejam o formato mais óbvio dessa coisa tão mais ampla. Não é que o mundo não tenha mais mistério ou que a gente não acorde todos os dias num mar de perguntas sem resposta. É sobre o que fazemos com isso.

Quer dizer, cada vez que uma dúvida nos pega de jeito, que uma situação não dá muitas pistas de como será seu desdobramento ou simplesmente cada vez que estamos diante de uma escolha, cada vez que algo assim se coloca, parece que a única alternativa é buscar um manual de instruções.

Ok, é fato que esses manuais, em seus mais variados formatos, dão uma baixada na ansiedade. Mas por quanto tempo e, mais importante, a que preço exatamente?

Um manual de instrução tem sempre um resultado esperado. Como montar, como instalar, preparar. Mas a vida e suas questões nem sempre tratam de um armário, um ar-condicionado, um cozido no ponto. O que se perde quando acertar e errar são considerados a partir de parâmetros e objetivos não só pré-determinados mas também padronizados, quase monopolizados?

Não se trata de imaginar um vilão malvado que maquina estratégias malévolas para dominar um setor, um país ou o mundo. Mas talvez seja o caso de pensarmos no quanto a ideia de concentração influencia tudo o que fazemos hoje em dia, como está cada vez mais impregnada no nosso modo de viver.

Todos criticam os coaches, não à toa, mas, de fato, eles não estão sozinhos. É como se fosse proibido se relacionar. Estar em algum lugar assim meio perdido, sem pista do que fazer, do que dizer, de que papel seguir. Vocês não sentem às vezes que estão sempre com um script na manga?

Tá, evidente que ninguém vive de fato como uma folha em branco. Tudo o que olhamos e confrontamos está misturado ao que já pudemos ser até agora, ao que vimos, ao que aprendemos, ao que fizemos do que fizeram de nós, ao que pudemos criar aos trancos e barrancos, ao que nos apegamos e ao que, às vezes por desejo, às vezes por imposição brutal, deixamos cair. Ou seja, é verdade que isso mesmo que temos de mais íntimo também veio um monte dos outros e da própria noção de alteridade.

Mas isso não nos impede de ter abertura para a vida. Na real nos lembra de que somos muito mais relação do que destino. Por que então, não raro, tanta gente se sente sufocada?

Quem precisa de BBB se estamos todos em nossas versões da “casa”, regidos por contratos comerciais cada vez mais poderosos mas também cada vez mais fiscais de nós mesmos, agindo a partir de cartilhas sociais forjadas com o mais tóxico metal da bobagem, do especialismo e dos “clínicos gerais” de vida?

Vidas prontas, concentradas em um menu insosso, cheio de restrições da moda, contando calorias e nutrientes numa fórmula exata. Se funciona? Funciona até demais. Nunca fomos tão obcecados em sermos produtivos, funcionais, corretos. Estamos funcionando, dizem que as instituições também, então por que está tudo colapsando?

Basta uma passada de olhos nas redes, em qualquer canal de comunicação. De bruxa a pastor, de chef a personal, de tiktoker a cientista, todo mundo sabe o que fazer e está pronto para dar (ou de preferência vender) a fórmula. Estranho é que quanto mais compramos essa ideia e mais “acertamos”, parece que pior ficamos. O sucesso vai ficando azedo, amargo de um fracasso que não pode ser dito porque às vezes custa a ser percebido de tão encaixado que está com um padrão cristalizado de “dar certo”.

Nunca fomos tão obcecados em sermos produtivos, funcionais, corretos. Estamos funcionando, dizem que as instituições também, então, por que está tudo colapsando?

Não, não estou defendendo aqui adesão a delírios, fake news e terraplanismos diversos, por favor. Não, também não acredito mesmo que o mundo seja só questão de narrativa, essa nova fórmula da covardia. Mas às vezes me pergunto se isso tudo não faz parte de um sintoma criado, entre outras coisas, a partir do excesso de certezas e rotas fixas onde deveria haver espaço para o movimento e, por outro lado, excesso de versões onde estão em um jogo de cartas marcadas a vida e a morte não de todas, mas de certos grupos de pessoas.

Chamamos covardemente as lutas sociais de grupos marginalizados de “identitárias”, mas não enxergamos nossa própria obsessão em ser. Seja quem você é, dizem o tempo inteiro. E à primeira pergunta de, ok, mas que diabos é isso? nos atolam de respostas ou de boas receitas para descobrir.

Faz parte dessa história louca de viver que possamos nos dizer uns aos outros, é assim que entramos na brincadeira. Mas não estamos de saída todos gravados nas pedras de alguma escritura e chegar a ser alguma coisa deveria ser no mínimo uma aventura por fazer. Quem é afinal que queremos agradar com tanto acerto? Se, como dizia Clarice, alguns defeitos é que nos sustentam, quantos de nós desabamos pagando de arranha-céus de virtudes? E com quantas ditas qualidades, essas bem-sucedidas na vida de mercado, se faz um genocida, um comerciante de vidas, um destruidor de futuros?

Vemos mães incapazes de se conectar com seus filhos porque bombardeadas com toneladas insuportáveis de “dos” e “don’ts”, amigos incapazes de estarem de fato vulneráveis diante de amigos porque o card chatíssimo do instagram desconstruído já determinou o que é ser vulnerável, amantes seguindo uma versão qualquer de “as regras”, por mais moderninha que elas sejam. Nossos papéis estão manjados, e isso talvez seja um dos motivos de estarmos sempre tão cansados, tão exaustos.

Parece que o mundo vai sendo dividido entre, de novo, dois grupos úteis. 1. Pessoas cujo trabalho é tão explorado que mal sobra tempo e forças para qualquer coisa que não seja desejar um descanso e uma diversão que, evidentemente, está sendo oferecida por aí em combos promocionais. 2. Pessoas com acesso razoável ou muito amplo ao que se considera diversão e sucesso, cada vez mais miseráveis, mas ainda detentores desses ditos privilégios. Dois grupos que, se olhados pelo ponto de vista zero neutro do sistema que os mantêm funcionando, são um só.

Esse grupo de 99% da humanidade quer ser o 1%, dizem. Não se pode dizer talvez que comandam exatamente a estrutura num sentido direto, mas são donos da grana e, sim, concentram poder. Privilégios sem limites, incluindo o direito de cometer crimes. É isso que queremos? Ser elite num mundo horroroso onde crianças são assassinadas porque empresários querem ampliar seus domínios em terras de pequenos produtores? Ser elite num mundo em que o deserto do Atacama ou todo um oceano vão de maravilha natural a lugar que abriga um lixão? Ser elite no planeta que desperdiça mais comida do que o que seria suficiente para alimentar todos os milhões que passam fome? Ser elite num mundo que manda otários para brincar de foguete no espaço enquanto deixa que recém-nascidos morram de desnutrição? Ser elite com a concentração de renda que temos, num mundo em que alguns podem comer orgânicos enquanto outros devem aceitar que sua comida seja veneno? A que ponto de emburrecimento, de embrutecimento a gente chegou?

Desculpem a crueza dos exemplos, mas às vezes é preciso olhar para o sem-sentido inaceitável, que seguimos aceitando. Por outro lado, abrimos mão do sem-sentido que é nosso por direito, do qual precisamos. Instruções, manuais, tudo isso tem espaço. A questão é como, onde, para quê.

O amor por exemplo virou caso de especialista. Todo mundo sabe o que fazer. Até os que dizem que não dão conselhos em suas práticas privadas enchem as redes com sabedorias de card. Claro, frases de efeito são bons recursos para remeter a textos, encontros, reflexões, diálogos, análises. Mas em geral se bastam em sua sabedoria pronta, não à toa quadrada, enquadrada, coloridinha. Eu, pessoalmente, tenho uma bronca danada disso, negócio mala, passivo-agressivo, sabichão, cansativo.

Eu por agora não tenho nada a ensinar. Só a dizer que até para se perder estão entregando mapa. Outro dia uma leitora me escreveu perguntando, “cara, como a gente sai dessa”? Disse sinceramente que não sei. Mas se eu tivesse que começar um caminho, escolheria encarar a questão que se coloca na encruzilhada.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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