A negra psicanálise: por que o legado de Virgínia Bicudo permanece oculto?

Todos perdemos com o apagamento do trabalho da primeira psicanalista mulher e negra da história do Brasil.


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Em meados de 2015, levei uma de minhas filhas ao evento de lançamento de um documentário sobre a vida da gigante Lélia Gonzalez. Após a exibição, entramos na fila para pegar um autógrafo da não menos gigante Sueli Carneiro, que havia escrito uma biografia de Lélia Gonzalez, lançada junto do documentário.

Na assinatura, os dizeres emocionaram a mim e à minha filha:

“À menina Marina, herdeira do nosso legado”

A dedicatória simples e carinhosa, mas potente e convidativa, não serviu apenas para minha filha. Me influenciou também e se somou a questionamentos que eu já fazia sobre o passado da produção negra brasileira nas mais variadas áreas do conhecimento.

Passei a levar mais a sério muita coisa que eu fazia através da escrita de maneira instintiva. E todos os meus interesses aparentemente aleatórios ficaram mais focados na descoberta de figuras que construíram um legado que, direta ou indiretamente, influenciaram na minha formação, mas que eu desconhecia. Ou seja, o foco das minhas pesquisas, sempre independentes, mudou. Acirrei as buscas pela “minha turma” nas minhas áreas de interesse e atuação.

Mas, cá entre nós: como é difícil defender o legado dos saberes negros, pois, quando não são apagados, invisibilizados, são descaradamente usurpados e não referenciados, muitas vezes, até mesmo por aqueles que se dizem aliados (branquitude) ou companheiros (negritude) de luta.

O narcisismo intelectual, prática recorrente e silenciosa que ocorre no Brasil, leva aqueles que operam na seara do saber e da informação a se apropriarem de produções que não são suas e apresentá-las como se fossem, ao invés de produzirem e desenvolverem seu potencial reflexivo, criativo e propositivo a partir de referências e legados cuidadosamente construídos por outros.

Resultado: andamos em círculo quando o assunto é intelectualidade, não evoluindo e mantendo sob os holofotes o famoso “mais do mesmo” em quase todas as áreas.

Dentro do “boom antirracista” alavancado pelo assassinato de George Floyd no ano de 2020, muitas ações foram empreendidas, mas poucas discussões sobre os mecanismos de invisibilidade como técnica de desumanização da negritude foram levados a sério e adiante.

Debaixo do tapete da história, muitas figuras negras importantes continuam escondidas, enquanto outras continuam a ser estrategicamente negligenciadas por aqueles que ganham com a centralidade branca e/ou masculina dos debates.

Recentemente, muitas discussões sobre saúde mental e a influência do meio social no desenvolvimento do sofrimento psíquico têm sido levantadas por profissionais e leigos. Mas é desconfortável o tom de ineditismo que cerca essas discussões.

É no mínimo estranho que um/a profissional que pretende trazer para dentro de sua abordagem a tal diversidade, não saiba, por exemplo, que a psicanálise brasileira tem pai e mãe negros.

Juliano Moreira, o médico baiano que sistematizou a disciplina psiquiátrica no Brasil foi o primeiro a levar para sala de aula a viabilidade das teorias freudianas que reverberavam na Europa naquela época. Como era poliglota, teve acesso aos escritos do pai da psicanálise, em alemão, e dividiu com seus alunos o potencial transformador que apurou na produção da figura controversa e rechaçada pela mentalidade provinciana da comunidade médica de seu tempo.

Décadas depois, teríamos em solo brasileiro a primeira psicanalista mulher, negra e não médica concluindo sua formação após ser, também, a primeira mulher na América Latina a deitar em um divã para ser analisada: a desbravadora afetuosa Virgínia Leone Bicudo.

Ela foi atendida pela Dra. Adelheid Lucy Koch, primeira profissional credenciada no Brasil. São tantos os feitos admiráveis de Virgínia Bicudo que uma coluna não é suficiente para apresentar. Logo, entenda esse relato como um convite a conhecer ou se aprofundar na trajetória dessa mulher grandiosa, intelectual brilhante e altamente empática.

Bicudo foi pioneira em diversos aspectos, mas, quanto mais adentro sua história e garimpo sua produção, mais fica nítido que a varredura de sua figura para debaixo do tapete da história é um dano público.

Em seu livro, praticamente desconhecido, Nosso mundo mental, ela reúne uma coletânea de textos que apresentava em sua coluna para o jornal Folha da Manhã (a primeira no Brasil a tratar dessa temática em um veículo de comunicação de massa). O obra foi publicada pela própria direção do periódico matinal, em 1956. Nas palavras dos donos e articulistas da Folha da Manhã: “(…) estamos convencidos de apresentar-lhes um trabalho realmente meritório. A autêntica contribuição para o melhor conhecimento e compreensão da criatura humana, num mundo em que dia a dia aumenta o quinhão de dores e angústias.”

Muitas das considerações presentes nesse livro se chocariam, nos dias de hoje, com a pouca disposição para o entendimento e a muita disposição para o cancelamento de certa ala da intelectualidade dos estudos de gênero, raça e classe, pois Bicudo exerceu uma psicanálise puramente focada nas questões da psique humana. Ela não ignorava, no entanto, que a questão social influenciava sobremaneira no sofrimento psíquico, como pontua nesse mesmo livro: “Quando as instituições sociais, em lugar de promover a satisfação das necessidades, se tornam motivo de frustrações, o indivíduo entra em conflito mental e em choque com a ordem externa”. Esse viés também foi abordado por ela em seu artigo “Incidência da realidade social no trabalho analítico”, escrito e publicado em revista científica no ano de 1972.

O fato é que a psicanálise de Virgínia Bicudo visivelmente sofre forte influência de sua formação como socióloga e amplia seu olhar sobre as angústias humanas da maneira mais cuidadosa e fraternal possível.

É nítido no padrão de escrita da primeira psicanalista mulher e negra da história brasileira, aclamada e respeitada pelas estrelas fundamentais desse campo de estudo, que Bicudo amou essa função de desbravadora do funcionamento da psique humana como poucos.

Entre seus ilustres analisados, esteve por um tempo o atual vereador reeleito em São Paulo, e sempre querido e respeitado senador, Eduardo Matarazzo Suplicy.

Sua despretensão e simplicidade nos fariam muito bem neste momento da história, onde carecemos mais do que nunca de pessoas empenhadas no amparo das dores e questões humanas mal resolvidas. Essa mesma despretensão nos protegeria da inconveniência da competição narcisista na área dos saberes, que, além de excludente e tokenizante, é reducionista e impede nossa evolução enquanto sociedade pensante.

Há muito penso que as opressões que nos constituem enquanto sociedade estão enraizadas no cerne de nossas funções psíquicas. Isso traz a necessidade de se trabalhar, também nessa instância, o mal-estar e a desumanização que fazem com que os modos característicos de nos relacionarmos em sociedade não evoluam. Precisamos de mais cordialidade intelectual do que de disputas por autoafirmação.

Por tudo isso afirmo, sem medo de estar errada, que a ausência da produção de Virgínia Bicudo é um dano público irremediável que serve a hegemonia limitante e impossibilita que a descolonização dos nossos sentimentos e comportamentos seja viável.

Virgínia Leone Bicudo, a psicanalista e socióloga negra que popularizou a psicanálise em meio às massas populares de seu tempo, permanece oculta ao povo para quem ela fez questão de ser facilitadora do entendimento técnico e especializado e para quem produziu um vasto e pioneiro legado, que poderia dar conta do caminho possível para entender as polarizações e necessidades de mitos e messias como sintoma da dependência emocional da nossa persona social.

A única razão pela qual esses legados importantes continuem sendo varridos para debaixo do tapete da história dos saberes brasileiros é o racismo, a desumanização, o preconceito, a vontade autoritária de manter uma hegemonia a serviço da satisfação de vaidades nada produtivas. Até para isso Virgínia Bicudo serve como exemplo:

“Se há preconceito, não há contato com o novo: não pode haver ciência. O preconceito é o avesso da ciência. Eu prezava muito Freud: foi ele que descobriu as leis psíquicas mais importantes. Não podia deixá-lo de lado por preconceito. Foi lá que eu aprendi a ficar atenta ao pré-conceito.” Virgínia Bicudo em uma de suas últimas entrevistas publicadas em Psicossexualidades: feminilidade, masculinidade e gênero (Haudenschild, 2016)

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