É fogo

Sobre vulcões, burnout e pensamentos em chamas.


origin 919



Esses dias passei horas pensando na tal ameaça de tsunami no litoral brasileiro. Mais pelo exercício e pela viagem poética do que pela coisa em si, já que os cientistas vêm dizendo que o risco de isso realmente acontecer como desastre é muito baixo.

Um vulcão nas Ilhas Canárias sob vigilância, potencial causador de uma onda gigante com suas atividades de vulcão, seu jogo de magma explosivo.

Observado, o Cumbre Vieja entrou em erupção. Afinal, parece que ele não vai desabar nem criar tremores formadores de onda. Traço uma linha imaginária entre a cimeira velha e a entrada da Baía de Todos os Santos.

Tsunami em Salvador parece um hit do Olodum. Mas conta a história que certa vez, em 1666, uma onda gigante de poder moderado alagou toda a Cidade Baixa. Apesar dos estragos, o fenômeno encheu tudo com muito peixe, e ficou registrada uma grande festa de pescadores. Vivos e de barriga cheia.

Há vulcões que nunca entram em erupção, as revoluções internas soterradas, cujos esforços podem ser mapeados por cicatrizes e inchaços na superfície, além de outras coisas que os especialistas podem detectar de outras maneiras.

Um deles pode estar lá quieto, dado como morto, mas ainda cheio de energia. Por dentro, muita coisa rolando. Num jogo bobo com o inglês e palavras para fogo e suas consequências, penso num vulcão com burnout.

Burnout é mais uma expressão inventada pra tirar do sistema econômico a responsabilidade por gerações de pessoas cada vez mais esmagadas por um combo que une trabalho, exploração e expectativas vazias e absurdas sobre a vida.

Uma jornalista estadunidense escreveu um desses livros bobos chamado Não aguento mais não aguentar mais, um caça-níqueis para os millennials que faz tudo menos dar nome aos bois ou apresentar algo de novo. Cria sim uma novela geracional ruim sobre o tal burnout, com direito a culpar e desculpar a todos. O tipo de leitura que se esgota indo de volta ao título e gerando ao final mais um sentimento de estagnação dos mais brochantes. O livro, como era de se esperar, é em si um subproduto do que pretende denunciar.

O vulcão pode queimar até parar o fuá das placas tectônicas com a lava espantosa. Mas aí seria burn out, tipo, o que tinha pra queimar queimou. E o vulcão que parece quieto por fora e está ativo por dentro é outra coisa, vai saber o que ele está tramando, questão de tempo.

Burnout é mais uma expressão inventada pra tirar do sistema econômico a responsabilidade por gerações de pessoas cada vez mais esmagadas por um combo que une trabalho, exploração e expectativas vazias e absurdas sobre a vida.

Já o burnout é mais como um inferno queimando constantemente em falso, um calor ressentido que só produz a mesma angústia, a mesma chateação, a mesma comida que quanto mais precisa ser a melhor, com menos gosto fica.

Esse esgotamento, esse só morrer a cada instante e se arrastar em si mesmo não é, como querem os gurus, coisa de millennial. É coisa das fases do capitalismo que temos vivido. Marcadas pela extrema precarização dos direitos e da exploração extrema, pela idealização do sacrifício, pelo empobrecimento das relações e pelo ódio à solidariedade.

O lema do burnouteiro enganado é “trabalhe enquanto eles dormem”, um enunciado triste, solitário. O Brasil é um país com péssimos índices de qualidade de sono, para não falar em stress geral e crises de pico de angústia, o que impacta diretamente no quanto conseguimos descansar. A inflação galopante, a epidemia de fome, vírus e o desemprego recorde também não são exatamente canções de ninar para a classe trabalhadora. Não à toa os sons “para dormir” já são mais procurados do que música em serviços de streaming. Cada um em sua ilha de insônia cercada de medo.

Alguém espirituoso disse, “por mim eu não trabalhava nem enquanto eles trabalham”. O ócio não é vilão, foi injustamente incriminado. A idolatria moral burguesa do trabalho tem sua verdade revelada na destruição sistemática dos direitos trabalhistas. Ou seja, acessar o trabalho do outro, o mais barato possível.

Aí quando a pessoa de 30 anos colapsa sem oportunidade de se sustentar e viver numa boa, seja trabalhando ou sem a menor perspectiva de emprego, a culpa é das redes, dos pais, do destino que o departamento de marketing empurrou à “geração burnout”. Isso para as camadas sociais mais ricas. Os mais pobres são imediatamente alçados à categoria dos vagabundos ou marginais caso não aceitem fazer qualquer coisa em qualquer condição.

O mundo de ilusão que se traduz em imagens e pacotes de vida estereotipados nas redes, as questões familiares e as cobranças de fato existem, mas nessa história são consequências e ferramentas de manutenção da situação e de parte do mal-estar, não sua causa. Pode haver outro tipo de segunda-feira…

Para consertar os estragos vêm outras furadas. Como o imperativo de se cuidar sozinho, de comprar produtos, serviços ou alcançar modelos de estabilidade que seriam garantias de bem-estar. Uma forma mercadologicamente aceitável de estimular o cada um por si e o todos contra todos.

Gosto de pensar em analogias com o magma movendo tudo por dentro. O conjunto de forças explodindo um lugar que não tem mais como se sustentar no silêncio, na permanência. Se não for erupção é abalo, colapso do que estiver condenado. E se abalar o mar levanta.

Ao millennial desnorteado e a todos nós fica a lição do vulcão. Pra tirar esse fogo do estômago, esse engasgo da garganta, o movimento é de massa, a tecnologia é solidária. Lembro de Paulo Freire, cujo aniversário foi celebrado neste ano como que em plena atividade quentíssima: “ninguém liberta ninguém. As pessoas se libertam em comunhão”.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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