Ana Garmendia lança “Verena jogada no chão”

Colaboradora da ELLE em Paris, a jornalista de moda passou a escrever crônicas durante a pandemia e apresenta seu quarto livro.


Ana Garmendia
Foto: Felipe Pelisson



Colaboradora da ELLE em Paris e jornalista experiente na cobertura de moda, Ana Garmendia deu vazão à sua veia literária durante o isolamento social. Em seu apartamento na capital francesa, onde mora há quase 20 anos, ela passou a escrever crônicas diante da incerteza daqueles dias.

Sua produção foi rápida e lançada de forma independente. Primeiro veio O mar é logo ali – Crônicas pandêmicas (2020), seguido por A maresia do Mijo (2021), uma ficção ambientada em Budapeste, e Quando Paris transborda – Crônicas pandêmicas 2 (2022).  

Ana acaba de lançar seu quarto livro, Verena jogada no chão, uma ficção que nasceu de uma personagem de seu primeiro livro de crônicas. Confira com exclusividade um capítulo do novo livro: 

livro anagarmendia

O Tiro

Mesmo depois de tudo resolvido, Verena se sentia bizarra. Em períodos de alma atormentada, tudo aumentava de tamanho. Seus sentidos hiperdimensionavam, como uma imensa casa desmoronando, sem ela ter tempo de juntar os frangalhos que despencavam em cima da sua cabeça… Ela estava tocada, sensibilizada e até com uma certa pena do fim de seu drama malikiano.

E ainda tinha ouvidos afiados e olhos de Lince. Dizia ver até no escuro. E um sono inquieto. Herança de noites dormidas nos quartos onde a mãe aprontava poucas e boas e que nunca sairiam dos seus muitos sentidos. Lembrava-se de muita coisa nas noites mal-vividas. Até do vulto dos homens que passavam pela cama da mãe e, de quebra, também a visitavam. Pequena, frágil, se lembrava disso. Era molestada por esses sombrios seres que no escuro não tinham rosto, mas formas assustadoras refletidas pela luz fraca do abajur com pé de bronze, encostado numa parede mofada do quarto.

A peça destoava de tudo, havia sido dada por um cliente rico da mãe Halina. Ela se lembrava sobretudo das cabeças imensas e mãos. De toques úmidos, hálitos de cigarro, alho, esgoto, uma imensidão de outros odores que a faziam arrepiar a ponto de muitas vezes ter que correr para vomitar, do nada, só de lembrar ou sentir uma brisa mais carregada de ar com cheiro de algo que a transportasse para aqueles apavorantes momentos.

Assim Verena acordou no meio de uma noite com uma repentina lembrança. O quarto invadido pelo odor de carne frita ou de peixe, bizarro. Ela não gostava dele, seu coração batia na boca, nos dentes, um suor caía pelo rosto, salgando os olhos sonolentos. Sempre quando aquele cheiro específico adentrava seu espaço vital, lhe vinha à memória um momento que ela nunca esqueceu na vida. Misturado a isso, seu radar disparava.

No “quase” silêncio da noite, ouvia tudo que passasse em baixo das janelas do cortiço. Se espiasse escondida poderia ver, se apenas colasse o ouvido na veneziana empoeirada, conseguia escutar muita coisa. Já não mais a calmaria que poderia passar despercebida em madrugadas de solidão, mas discussões inflamadas entre amantes, televisões ligadas, máquinas batendo roupas, aspiradores, uma mistura quase infernal de ruídos formando, por vezes, uma sinfonia enlouquecedora para pessoas de ouvidos sensíveis como ela.

De repente tudo veio de novo. Um flash a carregou no tempo. Era um final de semana e ela estava numa viagem de férias com o pai para Dakar, onde visitariam uma de suas tias, a sua preferida, Adama. Adama era uma negra alta, pernas finas, mas tão finas que se tinha a impressão de que eram moldadas por um mestre tipo Amadeo Modigliani, este também de uma vida desgraçada. Para ela, a tia era uma divindade, uma beleza; assim como Verena, Adama tinha os dentes brancos e tão lindos que pareciam de marfim. Os cabelos, cacheados. A tia era solteira, dona de uma cantina e conhecida pela mão para cozinhar os pratos típicos do país, muitos dos quais levam frutos do mar, legumes, especiarias e o peixe seco salgado deles, conhecido como o guedji.

Por lá, sempre perto do horário das refeições, o cheiro do peixe exalava forte pela casa e também pelas ruas da cidade, afinal outras tias, mães, filhas e avós, também cozinhavam suas iguarias à base de peixe. Verena fechava os olhos e tinha a visão da imagem elegante da tia vestida com um conjunto estampado de saia e blusa de mangas curtas, com seus braços cobertos de pulseiras douradas e ainda as unhas pintadas de vermelho, o que era um afronte para uma mulher livre como ela que se virava na vida servindo e preparando comida e de cuja reputação ninguém ousava falar, pois era discreta e furiosa. Ai de quem abrisse a boca para questionar sua vida que ela quebrava tudo. Modo de dizer, bien sür.

Verena devia ter seus seis, sete anos, era um domingo, feriado ou algo assim. Dias de silêncio em que em bairros distantes ouve-se o tilintar dos pratos dos vizinhos, sente-se o cheiro da preparação e escuta-se se as famílias estão em paz ou não. Nesse em especial, depois de virem da missa das 11, a calmaria estava mais presente no ambiente, talvez pelo calor de 40 graus que deixava tudo em câmera lenta, não sei se na cabeça da gente ou se realmente tudo fica em slow-motion. Tenho a impressão de que os dois e também nos mundos paralelos tudo acontece em tempos distintos, mesmo se na mesma hora. Cada um sente a vida de um jeito. Isso é um fato.

Bem, a tia na cozinha e Verena a acompanhava e ajudava a alcançar alguns pratos para terminarem de pôr à mesa. Foi nesse momento que ouviram o estampido forte que na cabeça da pequena não era um tiro até ela descobrir que o vizinho da frente acabara de se suicidar na porta de casa. Ela correu para a janela espiar e viu, por sorte, apenas os pés do morto. Ele caíra com a cabeça para dentro de casa e os pés em forma de V com seus sapatos de verniz, cópias perfeitas dos richelieus italianos, brilhando como espelhos. Tava lá o homem acabado. As tripas da cabeça esparramadas pelo chão impecavelmente bem cuidado da casa da mulher, a dedicada. Por ser pequena, Verena não entendeu nada, o motivo do zumbido e tampouco que aquelas tripas no chão significavam que o homem não levantaria mais. Ela ainda não sabia que a morte era definitiva e nem o que era a danada.

Mais tarde, a tia Adama contou tudo no ímpeto de impedir que a sobrinha continuasse a ter noites insones quando ia passar férias. “Menina, veja se dorme agora. Aquele homem não valia nada. Era um traidor. Fazia tantas coisas horríveis que espero que você nunca se depare com um monstro como ele”. Isso mesmo! Traição! Investigando mais ainda Verena acabou por descobrir, também anos mais tarde com o pai.

Omar Le Bom era um bom contador de histórias, para não dizer fofoqueiro, porque para os homens os termos usados são outros. A nós mulheres, sempre loucas e fofoqueiras, herança da Idade Média incrustada nas nossas almas. O desgraçado do defunto trepava com toda a mulher que caía na lábia dele, até que um dia comeu a funcionária do salão da mulher, que todo mundo chamava de Dona Cleonice. Pois ela descobriu tudo! E deu uma surra nele, ameaçando contar tudo para as filhas, doidas pelo pai. Ele fazia tudo por elas, não deixava nada faltar dentro de casa, mas era um pedófilo. A funcionária tinha 16 anos. Assim, naquele domingo, dia de missa e peixe na casa da tia Adama, o evento mesmo foi o estouro dos tímpanos que o vizinho da casa da frente se deu num disparo só.

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